A Justiça do Ceará expediu 1.262 mandados de prisão de pais que não pagaram pensão alimentícia nos 70 primeiros dias deste ano. O número é superior ao somatório de todo o ano de 2020, quando as atividades foram afetadas pela pandemia de Covid, e equivale a 82% de todo o ano passado. Os dados são do Tribunal de Justiça do Estado (TJCE).
Entre janeiro de 2019 até 11 de março deste ano, foram expedidos 5.942 mandados de prisão por falta de pagamento da pensão de alimentos.
Em 2019, foram 1.896 mandados de prisão, com média de 5,2 por dia. Em 2020, com a pandemia de Covid, houve diminuição para 1.260, o equivalente a 3,4 ao dia. O número voltou a subir em 2021, com 1.524 mandados, ou 4,1 a cada 24 horas. Já neste 2022, entre 1º de janeiro e 11 de maio, já foram 1.262 expedidos, média de 18 por dia.
A defensora pública Michele Camelo explica que a pensão alimentícia é devida pelo genitor não guardião de filhos, pois se presume que, enquanto o filho for menor de idade, existe o dever dele de prestar alimentação por aquele que não convive com ele.
Quando acontece a separação, os deveres de pai e mãe — sustento, cuidado e educação — permanecem, explica a defensora. O problema é que o genitor não guardião nem sempre cumpre com essas obrigações e é preciso que o outro genitor, em geral a mãe, dê início ao chamado "processo de alimentos". Assim que receber a ação, o juiz precisa se manifestar imediatamente, de acordo com lei, e é estabelecida uma pensão provisória.
Antes mesmo do genitor ter acesso ao processo já é possível que seja exigida a pensão de alimentos. "Você não pode esperar para ter comida, para pagar um colégio, dar uma vestimenta ou um lazer para a criança", relata Michele.
De janeiro a julho deste ano, a Defensoria Pública do Estado registrou 2.708 ações de alimentos, com média de 386 por mês. Já em 2021, nos 12 meses, foram 3.717 ações, ou seja, 309 ações por mês somente entre as tuteladas pelo órgão de assistência jurídica. Ao todo, nos sete primeiros meses deste ano, a Defensoria Pública registrou 81.929 procedimentos na área de Direito da Família.
Conforme a defensora, aquele que não detém a guarda é responsável por todas as responsabilidades, inclusive o cuidado e o afeto. Dentre as barreiras que enfrentam as mulheres que decidem buscar a pensão, Michele cita a dificuldade em localizar o pai e também a falta de pagamento dessa pensão. "Temos sistemas de buscas e o Judiciário viabiliza a localização. É importante que esse pai, ou a mãe que não é guardiã, comece a pagar a pensão", explica.
A defensora explica que, muitas vezes, quando a pessoa é afastado do filho ou da filha, ela desconhece as necessidades e deixa de prestar a pensão. A criança ou adolescente é abandonada materialmente quando deixa de conviver com o genitor, que antes destinava renda superior à pensão alimentícia arbitrada, quando se pensa em 20% do salário.
"O abandono afetivo leva distanciamento do que é necessidade para o filho. E os pais, ignorando isso, deixam de pagar, pagam um mês e deixa de pagar o outro", explica.
O não pagamento de pensão alimentícia pode gerar um mandado de prisão contra o genitor devedor. Conforme Michele, a lei não limita a quantidade de prestações em atraso, mas existe um entendimento que justifica a prisão em três meses de atraso. "Costumo dizer que quem precisa de comida no prato não pode esperar três meses", explica.
Apesar desse entendimento, a defensora afirma que as mães não precisam esperar os três meses para procurar a Justiça, já que o processo exige uma série de documentos e, como trata-se de uma nova ação, há uma demora para a Justiça atender.
A defensora Michele Camelo aponta ainda um quadro emocional recorrente de abandono afetivo sentido por quem está ainda desassistido materialmente. "O genitor passa a não mais se importar, vivenciar o cotidiano. Passa a não mais contribuir materialmente. Quando está próximo, ninguém vai ver a criança passando fome e não fazer nada, mas quando se tem esse abandono, ele vem seguido do distanciamento, um abandono material", descreve.
Conforme Michele, um dos deveres da parentalidade, da maternidade e da paternidade é o cuidado e o afeto. Mas ela ressalta que especialmente o cuidado é algo necessário a ser prestado pelo pai e pela mãe. Quando não é prestado, essa negligência se configura em ilícito civil — não é crime, mas viola o direito da criança e do adolescente.
"Não é possível obrigar a amar, mas é possível que a Justiça obrigue pai e mãe a reparação pelo dano moral gerado pelo abandono afetivo".
O reconhecimento de paternidade pode ser feito voluntariamente, inclusive em cartório, independendo assim de ação jurídica. No entanto, quando não existe o reconhecimento voluntário, a Justiça é procurada para que seja reconhecida a paternidade para posterior estabelecimento de pensão alimentícia, direito previdenciário, entre outros.
Se o pai não registrou essa criança, mas existe a paternidade biológica, a mãe pode entrar na Justiça representando o filho com a ação de investigação de paternidade. Ainda é possível, também, buscar a pensão já quando se está grávida.
Nos sete primeiros meses de 2022 foram 446 ações de reconhecimento e investigação de paternidade foram iniciadas, quando em todo ano passado esse número foi de 545. Os dados incluem ainda ações de investigação de paternidade post-mortem (após a morte).
Quando existe a dúvida, é preciso realizar o exame de DNA. "Essa já foi uma ação demorada, mas hoje já não é. A Defensoria Pública realiza mutirão de reconhecimento de paternidade. Existem exames de material genético, de DNA, com preços acessíveis e é possível fazer esses exames pagos pelo Estado", explica.
Michele relata ainda que as audiências mais delicadas são as de exoneração de alimentos — ou seja, quando a criança ou adolescente virou adulto e o genitor solicita o fim do pagamento da pensão de alimentos. "São as mais difíceis, pois existe muita mágoa. Esse recurso material, ele não supre a necessidade afetiva dessa criança. São audiências muito fortes", explica.
Após cinco anos em uma união estável, a mãe de nome preservado, tinha 22 anos e estava grávida quando se separou do companheiro. " Como era uma relação abusiva, eu não estava trabalhando, tava sem amigos porque ele fazia eu me afastar de todo mundo. Então, precisei da ajuda financeira no início, que estava completamente sem renda", relatou.
Nos seis primeiros meses, o ex-companheiro e pai do bebê pagou o valor que havia sido acordado entre os dois. Depois desse período, ele entrou na Justiça para reduzir o valor a quase zero, alegando que não tinha renda.
A mãe relata que o processo foi iniciado a partir do genitor, no entanto, ela comprovou que ele estava mentindo com fotografias dele em viagens internacionais. "Juiz negou a revisão e perguntou se eu não queria subir. Decidi manter porque queria trabalhar e o básico pro meu filho. A pensão, na época, pagava o plano de saúde e alimentação. Era tipo 800 reais", relata.
Hoje, a mãe possui renda, mas precisa abdicar de muitas coisas para não suprir as necessidades do filho. "Com certeza essa contribuição financeira daria uma qualidade de vida melhor, para o meu filho ter uma alimentação boa, saúde e educação eu preciso abrir mão de coisas para mim", relata.
O abandono afetivo esteve presente desde o nascimento da criança. O genitor só viu o menino uma vez, quando ele tinha um ano de idade. A mãe relata que tem o desejo de fazer uma pós-graduação, mas a escola é cara, além do fardamento e livros.
"Enquanto o pai dele tava curtindo, fazendo viagens para o Exterior, eu passava o dia trabalhando muito, chegando em casa cansada, mas tentando aproveitar o tempo com o meu filho, me desdobrando em mil para estar presente, conseguir arcar com todas as despesas", descreve.
A genitora explica que o ex-companheiro ficou sem pagar a pensão alimentícia e ela só não passou por necessidades, pois teve ajuda de familiares. Atualmente, o menino tem 11 anos de idade, o pai está foragido, pois há um mandado de prisão para ele em razão da pensão de alimentos.
>> Entrevista
Ao O POVO, a juíza de Direito da 10ª Vara de Família de Fortaleza, Valeska Alves Alencar Rolim explica que o mandado de prisão é expedido pelas varas de família ou aquelas com competência cível. A magistrada aponta que as justificativas mais usados pelos pais que não pagam a pensão são desemprego, surgimento de outros filhos, constituição de uma nova família ou ainda o desconhecimento sobre a obrigação alimentar. Há ainda uma recorrência de pedido de revisão do valor por pais que alegam que a cifra é desproporcional à renda.
Segundo a magistrada, a pessoa devedora de alimentos pode ficar presa de 30 a 90 dias, o que depende do mandado de prisão, mas que o alvará de soltura é expedido assim que é comprovado o pagamento.
O POVO - Em quais circunstâncias a Justiça expede o mandado de prisão para o responsável pela criança?
Valeska Alves Alencar Rolim - O mandado de prisão civil é expedido pela Varas de Família ou aquelas com competência cível, na ausência desta Justiça especializada, oriundo dos cumprimentos de sentença ou de decisão interlocutória. (É expedida) após formada a relação processual, oportunizada a justificação e quando comprovado o inadimplemento voluntário — ou seja, ficar demonstrado que aquele que está obrigado a pagar a pensão alimentar não a paga porque não quer. Tudo em conformidade com o artigo 528 do CPC (Código de Processo Civil).
No entanto, a prisão civil não é expedida em toda e qualquer circunstância, visto ser uma medida extremamente gravosa ao alimentante. Assim, caso exista outro meio de se garantir o pagamento dos alimentos, o juízo buscará a sua implementação antes de decretar a prisão. Como exemplo, cito o desconto em folha, onde a Justiça determina diretamente ao empregador do alimentante que retenha em folha o percentual dos alimentos.
O POVO - Na maioria desses casos, o que a defesa dos pais alega para o não pagamento da pensão?
Valeska - Atual desemprego, surgimento de outros filhos ou constituição de nova família, desconhecimento da obrigação alimentar, alegam que o valor é desproporcional à renda que percebe, desconhecem os dados bancários da parte exequente para fins de depósito da pensão, a parte exequente recusou-se a receber. Esses são os mais comuns.
O POVO - As situações relacionadas a pensão de alimentos também trazem à tona o abandono afetivo?
Valeska - O abandono afetivo é uma conduta que consiste na negligência afetiva dos filhos, ou seja, corresponde à omissão na prestação de assistência psíquica, moral e social aos filhos, deixando de prestar cuidados referentes a criação e educação deles.
O tema específico ainda não é regulado expressamente pelo nosso ordenamento jurídico, havendo em algumas leis — tais como o Estatuto da Criança e do Adolescente —, o estabelecimento de deveres que está relacionado ao amparo afetivo, mas não há instituição de penalidades em caso de descumprimento. Assim, a saída viável seria o ingresso com uma ação de indenização da seara civil, para buscar a reparação pelos danos morais causados pelo pai que praticou tal conduta.
De todo modo, tal abandono afetivo pode se refletir em outras formas de abandono, tal como o financeiro. Em muitos casos é possível se observar a coexistência destas formas de abandono, já que alguns pais que não possuem afeto pelo próprio filho acabam por negligenciar, além do afeto que os mesmos necessitam, ainda a provisão que os mesmos dependem.
No entanto, tal conduta possui penalidades expressa em lei, e das mais severas, visto que pode ser aplicada a prisão civil ao genitor que deixar de prestar alimentos dos quais estiver obrigado por título judicial ou extrajudicial.
O POVO - Em que deve ser utilizada a pensão de alimentos?
Valeska - A destinação desta verba mensal deve ser somada ao que a genitora percebe para custear gastos decorrentes da alimentação, lazer e educação, vestuário, saúde, dentre outros. O objetivo supremo desta ajuda financeira determinada por decisão judicial é que visa garantir uma vida digna à criança.
O POVO - Como é calculada a pensão de alimentos? Com base nos gastos da criança, no salário da pessoa responsável?
Valeska - A pensão alimentícia fixada judicialmente é um valor fixo que deve ser pago, normalmente pelo pai aos filhos, que recai sobre os vencimentos e vantagens, excetuados os descontos legais quando o genitor possui vínculo empregatício ou pode recair sobre um percentual a incidir sobre o valor do salário mínimo nacional ou outro índice oficial do Governo. Calcula-se através dos gastos do filho, porquanto menor e são presumidas. Leva-se em consideração ainda na existência ou não de outros filhos do alimentante/pai e, às vezes, pode ocorrer de se levar em consideração as condições de saúde do alimentante.
O POVO - Quando a criança se torna adulta, automaticamente ela perde o direito a pensão por alimentos?
Valeska - Não. Aquela pensão arbitrada judicialmente só pode ser modificada, tanto para reduzir quanto para exonerar, através de ações revisionais. Nesta ação, diante da maioridade do alimentado, permanece o vínculo pela parentalidade, o qual deve se comprovar a condição de estudante e ainda a necessidade do suporte financeiro do genitor. Todavia, criou-se entendimentos jurisprudenciais que aos 24 anos, podem cessar tal verba alimentar.
O POVO - Normalmente, quanto tempo fica presa a pessoa por pensão de alimentos? Ela é solta assim que comprova o pagamento? E se não pagar permanece presa por quanto tempo?
Valeska - A pessoa devedora de alimentos pode ficar presa de 30 a 90 dias, a depender da decisão judicial que decretou a sua prisão civil. Ao se comprovar judicialmente o pagamento do débito pelo devedor ou pela própria parte exequente, é expedido o alvará de soltura. O tempo de prisão, como dito, em face do inadimplemento pelo devedor, está descrito na ordem de prisão baseada no decisório do Juiz, o qual deverá observar o limite legal de 30 a 90 dias, previsto no art. 528 do CPC.