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Formação em psicanálise: modelo criado por Freud resiste ao tempo e é defendido
Reportagem Especial

Formação em psicanálise: modelo criado por Freud resiste ao tempo e é defendido

Analistas defendem a tradicional formação estruturada por Freud em tempos de cursos rápidos e intervenções religiosas

Formação em psicanálise: modelo criado por Freud resiste ao tempo e é defendido

Analistas defendem a tradicional formação estruturada por Freud em tempos de cursos rápidos e intervenções religiosas
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Ao procurar “formação de psicanalistas” em um site de buscas, diversos anúncios de cursos aparecem entre os primeiros resultados utilizando termos como “acesso imediato” ou “formação rápida”. No entanto, esse tipo de lógica imediatista vai de encontro ao que Sigmund Freud, criador da psicanálise, estabeleceu como método para formar analistas há mais de 100 anos. O modelo, que esbarra nas dificuldades de transpor o tempo, ainda segue preservado por quem defende a sua legitimidade.

No fim do século XIX, quando Freud começava a desenvolver as técnicas que são conhecidas como fundamentais para a prática da análise — como a associação livre, na qual o paciente é encorajado a falar tudo que pensar durante a sessão, sem julgamentos —, interessados pelas proposições do neurologista começaram a frequentar o seu gabinete.

Sigmund Freud(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Sigmund Freud

“Eles faziam umas reuniões chamadas de reuniões das quartas-feiras, onde iam discutir a teoria que o Freud tinha começado a elaborar sobre o inconsciente e casos clínicos”, explica Laéria Fontenele, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e diretora da escola de psicanálise Corpo Freudiano.

A partir disso, essas pessoas também iniciaram o processo de análise com Freud ou de autoanálise. Depois, começaram a atender pacientes, relatar os casos para Freud e trocar aprendizados.

Com isso, o tripé de formação dos analistas estava posto: estudar a teoria, passar pela análise e ser supervisionado por pares. Conforme Laéria, não existia uma certificação ou título dado por alguma instituição para que o analista começasse a realizar atendimentos e nem um tempo comum a todos para finalizar a formação. E até hoje a lógica segue a mesma.

Mesmo a Associação Psicanalítica Internacional (IPA), instituição criada nos últimos anos de vida de Freud que seria responsável pela disseminação da formação de analistas no mundo, ou escolas dissidentes criadas a partir de discordâncias com a IPA e da flexibilização do método, seguiam o tripé de formação. Além disso, elas não concediam certificados para aqueles que passavam pelo processo com intuito de se tornar analista.

Sem lei que a regulamenta, conselho ou cursos universitários, formações paralelas de psicanalistas começaram a surgir. No Brasil, a partir dos anos 2000, a psicanálise virou interesse de grupos religiosos, cursos surgiram prometendo formar um analista em um número exato de aulas e sessões e até emitir “carteira” de psicanalista para aqueles que passarem pela carga horária pré-estabelecida. As práticas, no entanto, são criticadas por diversas sociedades de psicanalistas.

 

"As instituições (de psicanálise) divergem numa série de pontos, mas convergem nessa certeza de que a psicanálise precisa permanecer laica, e que não podemos ter diploma, um certificado de psicanalista" Lia Silveira, psicanalista membro do Fórum do Campo Lacaniano em Fortaleza

 

“De alguns anos pra cá está havendo muito problema em relação a isso. Porque um grupo de evangélicos, sabendo que a psicanálise é um ofício, começou a se utilizar de má fé e oferecer formação analítica de um modo totalmente absurdo e selvagem. Pastores analisando as pessoas sem terem uma formação, ou seja, enganando as pessoas”, conta Laéria. Segundo a professora, instituições que misturam conceitos da psicanálise e religiões cristãs surgiram aos montes oferecendo cursos.

“As instituições (de psicanálise) divergem numa série de pontos, mas convergem nessa certeza de que a psicanálise precisa permanecer laica, e que não podemos ter diploma, um certificado de psicanalista”, diz Lia Silveira, psicanalista membro do Fórum do Campo Lacaniano em Fortaleza.

Lia faz parte também do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, que luta há cerca de 20 anos para manter a formação do analista da forma como foi iniciada.

Sigmund Freud, G,S, Stanley, C.G. Jung, A.A. Bril, Ernest Jones, Sándor Ferenczi na Universidade em Worcester, Massachusetts(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Sigmund Freud, G,S, Stanley, C.G. Jung, A.A. Bril, Ernest Jones, Sándor Ferenczi na Universidade em Worcester, Massachusetts

No início de 2022, o movimento se reuniu para defender novamente a formação tradicional ao ser surpreendido pelo lançamento de um curso de bacharelado em psicanálise regulamentado pelo Ministério da Educação. A instituição responsável, Uninter, lançou o curso no formato EAD, com duração de quatro anos.

“Essa graduação é absolutamente incompatível com a psicanálise. Não se aprende psicanálise só partindo da teoria, mas sim a partir da experiência com o inconsciente. Uma graduação não vai ter condições de promover isso. A análise que vai lhe dizer se você tem ou não condição de ser analista”, opina Laéria.

Para a professora, apesar de a psicanálise ser considerada uma ciência, não cabe na lógica de cursos de graduação. “A psicanálise vai tratar um sujeito pela sua singularidade, questões, e isso hoje está completamente em conflito com a lógica do capitalismo. Não podemos mudar (a formação) porque está baseada numa determinada ética.”

 

 

O que a psicanálise oferece?

Em seus 100 anos de existência, a psicanálise entrou no imaginário popular e na cultura pop, com sessões sendo retratadas em filmes e séries, virando assunto de podcasts e até peças de teatro de comédia. Porém, quem nunca fez uma sessão de análise sabe o que acontece nelas? O divã existe, mas como é utilizado? A figura do analista sério, frio e de óculos pode ser parte da experiência de alguns, mas não é universal. Afinal, como acontece uma sessão e o que a psicanálise oferece para os analisados?

Tudo começa com o analista sendo capaz de garantir uma postura neutra em relação ao que é relatado pelo paciente. Por isso, os sofrimentos, traumas e angústias do profissional devem ser tratados na análise que é feita durante a formação dele.

“Para ele poder escutar o outro sem misturar as angústias dele com as de quem ele está recebendo, é preciso que a análise dele tenha levado a um ponto em que ele consiga fazer outra coisa com isso que é traumático para ele”, explica a psicanalista Lia Silveira.

Seriado "Freud", do Netflix, retrata psicanalista em busca de serial killer, ao mesmo tempo em que expõe algumas de suas contribuições para os estudos da psiquê humana(Foto: divulgação Netflix)
Foto: divulgação Netflix Seriado "Freud", do Netflix, retrata psicanalista em busca de serial killer, ao mesmo tempo em que expõe algumas de suas contribuições para os estudos da psiquê humana

Com essa habilidade é que o profissional pode ajudar o paciente a pôr em prática uma das regras fundamentais da psicanálise: a associação livre.

“A psicanálise vai pedir ‘fale tudo que lhe vier à cabeça, sem censura, sem selecionar o que vai dizer’. A nossa aposta é que, como o sintoma é estruturado na linguagem, à medida que o sujeito fala, esse sintoma fala”, diz a analista. Para auxiliar,  o paciente pode utilizar o divã, um tipo de sofá de um só braço, para relaxar e se entregar ao processo.

 

 

Tripé da formação de um psicanalista

Nesse contexto, surge a imagem de um psicanalista distante e calado. No entanto, Lia explica que é necessário o profissional deixar o analisado falar para conseguir encontrar padrões, repetições, sintomas e fazer interpretações.

“Ele não pode partir dos seus preconceitos. Se alguém me procura dizendo que quer saber se separa ou não, se casa ou não, deixa o trabalho ou não, eu não posso colocar o que eu faria nessa situação, porque não se trata do meu eu. Então, eu tenho que me abster de dizer o que eu penso como pessoa”, afirma.

Fenômeno midiático, a psicanálise virou pop. Freud em série na Netflix(Foto: Reprodução / Freud-historia-real)
Foto: Reprodução / Freud-historia-real Fenômeno midiático, a psicanálise virou pop. Freud em série na Netflix

No entanto, o profissional não deve ficar completamente calado.

“Se ele não interpreta, se ele não ajuda a pessoa a falar, se ele não acalma as vezes a angústia, o tratamento se interrompe. Ele não pode ficar igual uma pedra só ouvindo a pessoa falar, ele precisa comparecer, não comparecer com a sua pessoa, mas com o que a gente chama de seu desejo de analista, para que aquele tratamento possa prosseguir.”

Apesar de ter conceitos fundamentais, as sessões de psicanálise são únicas, dependendo da relação estabelecida entre psicanalista e paciente. A entrega, honestidade e abertura do analisado influencia no seu tratamento.

“Vamos pensar aqui juntos, vamos ver de onde isso veio, o que isso tem a ver com você, com sua história. A análise convoca o sujeito a ter que responder a ele mesmo diante da sua angústia, uma coisa que a gente não costuma querer hoje em dia. As pessoas querem respostas rápidas que não façam elas terem que pensar muito. A análise vai no sentido contrário”, diz Lia.

 


Sobre psiquiatria, psicanálise e psicoterapia 

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Consciente e inconsciente

O comportamento ocorre por processos inconscientes e não somente pelos processos conscientes, ou seja, as pessoas não são coerentes ou unificadas. Cada um tem uma explicação consciente ou inconsciente, mas eles ocorrem espontaneamente. Freud os descreve ligando um evento consciente a outro. (Mirla Nobre)

 

Id, Ego e Superego

 

Psicanálise não é psicologia

O psicólogo e psicanalista Ronald de Paula explica que nem todo psicólogo busca formação em psicanálise, e que é necessário a pessoa sentir necessidade de uma análise pessoal para chegar a se tornar um psicanalista, além de outros caminhos. “Eu sou analista hoje porque eu precisei de psicanálise, uma questão pessoal. Isso há uns 25 anos. Aí eu fui me interessando pelos estudos. Eu não saí de casa em busca de ser psicanalista”, disse.

Ainda segundo o psicólogo e membro fundador do Corpo Freudiano, Escola de Psicanálise de Fortaleza, para uma pessoa precisar de uma análise ela deve estar passando por algum sofrimento, por exemplo, e a partir disso procura uma análise pessoal. “Você precisa estar precisando de uma psicanálise. São pessoas que estão passando por algum sofrimento e que procuram uma análise porque precisam”, comenta.

O psicanalista ainda explica que a psicanálise não é uma psicologia, e que o psicólogo deve procurar a formação em psicanálise fora da universidade a partir do momento que ele vai procurar a sua análise. “A psicanálise não é um curso. O tripé de formação do psicanalista é, primeiro, a base mais forte desse tripé, a análise pessoal.”

Os outros alicerces de formação estão relacionados ao estudo teórico e à supervisão. “A supervisão é procurar um analista que seja mais antigo e trazer os casos que esse analista mais novo passa a atender para mostrar, falar e elaborar como ele escuta o 'analisante' dele para esse analista mais antigo. Mas, é mais para forma de escutar como ele está escutando. E tudo isso a instituição psicanalítica que tem que dar apoio. Isso é impossível em uma universidade”, pontua o psicólogo. (Mirla Nobre) 

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