O desejo por investigações, detalhes de crimes que chocaram determinada comunidade e a vontade de entender casos que marcaram época...
Tudo isso e muito mais são aspectos importantes e presentes nas mais diversas formas de conteúdo true crime. Na tradução livre do inglês, estamos falando dos crimes reais, conhecidos pela sua crueldade e complexidade, os quais têm cadeira cativa na indústria do entretenimento. Retratados em filmes, séries, documentários, livros e podcasts, o gênero tem ajudado a trazer reflexões fora daquelas do dia a dia sobre o que é um crime.
Nos últimos anos, as plataformas de streaming abriram ainda mais espaço para histórias com características peculiares contadas em jornais e revistas, em rádios e TVs, em determinado período e região. Desta vez, no entanto, ao contrário de quando exibidos na época em que ocorreram, o foco sobre esses crimes, bem como sua narrativa e estética, se amplifica.
Agora a busca é a de alargar as discussões e trazer novos incômodos, questionamentos e análises fora do calor e da emoção do momento. Justamente por isso, sentimentos, detalhes e novidades de cada caso revisitado passam a ser mais explorados, com o intuito de encontrar novos olhares sobre as histórias.
“É um fenômeno relativamente recente no Brasil”, analisa o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Christian Dunker. Nos Estados Unidos, por exemplo, o gosto pelo crime existe há muitos anos, enquanto que por aqui é um gênero que ainda engatinha.
Por outro lado, como a internet, junto com as redes sociais, encurtaram as distâncias físicas e materiais, a cultura daqui passou a incorporar parte da cultura de fora. Desta forma, fez com que um mesmo tipo de comportamento fosse repetido, inclusive o de consumir conteúdos que têm os crimes reais como plano de fundo.
Diante disso, é certo que o público pode querer saber detalhes de como agiam Ted Bundy, Charles Manson e Jeffrey Dahmer. Certo?
Mas será que especialmente os brasileiros também gostariam de fossem recontadas histórias marcantes como de Elize Matsunaga, do Caso Evandro e de Daniella Perez? De acordo com Christian Dunker, a resposta é positiva por um motivo evidente:
"Dentro dos true crime não basta ser um criminoso longínquo. Tem que ser alguém próximo"
Somado a isso, menciona que a formação recente de um grupo de novos escritores, narradores e investigadores, com acesso a esse universo, chega para atender essa demanda crescente de produção sobre crimes locais.
Ainda assim, novas perguntas continuam surgindo quando pensamos sobre algo bem característico e que nos diferencia, por exemplo, do próprio EUA. O Brasil é dono de índices alarmantes na segurança pública. Conforme o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, sigla em inglês), vivemos no oitavo país mais violento do mundo.
Então porque ter como entretenimento aquilo que está à nossa volta cotidianamente e trazendo tantos males?
Para ganhar destaque e ser retratado em um produto da indústria do entretenimento, como filme, série, podcast ou livro, o crime precisa conter algumas características próprias. Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência, da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC), Luiz Fábio Paiva menciona algumas dessas características, as quais são capazes de tornar um caso comum em um caso extraordinário.
“Hoje temos centenas de crimes e mortes que acabam sendo irrelevantes, que nunca vão se transformar em documentários. Esses crimes pegam aspectos de excepcionalidade que as pessoas não esperam”, afirma Paiva.
Particularmente no Brasil, esses pontos fora da curva podem estar diretamente relacionados à forma violenta como o crime é realizado; como também conta o fato de estarem associados ao perfil de quem comete a violência ou é violentado.
“Geralmente são pessoas brancas, que ocupam posições na sociedade que são retratos de sucesso (a exemplo de Suzane Von Richthofen e Danielle Perez). As pessoas esperam que elas tenham uma vida digna. Quando um crime acontece na vida de alguém que goza de capital social, uma curiosidade maior é despertada. A morte violenta traz uma questão importante, pois são casos que perturbam a sociedade. Quebram certos estereótipos, quebram expectativas”, completa.
Também professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC, Paiva chega a diferenciar o modo como episódios criminosos são retratados na época em que ocorrem e quando são revisitados. Citando os programas policiais, o pesquisador afirma que estes ficam muitas das vezes apenas na superficialidade dos casos, sendo comandados por apresentadores que desconsideram histórias e possíveis causas mais profundas dos crimes.
“Os documentários também usam de sensacionalismo em determinados momentos, mas é um produto que busca uma discussão, uma reflexão. Traz uma diversidade ao debate da segurança pública. Refletir sobre os crimes e sobre os criminosos traz uma reflexão importante para entender como o crime acontece e em quais circunstâncias. Refletir sobre isso é algo que eles trazem, e às vezes isso incomoda”, aponta.
A vontade de assistir, ler ou ouvir um true crime pode se intensificar de pessoa para pessoa, principalmente se nela existir uma característica bem específica: ser mulher. O público feminino é o que mais consome esse tipo de conteúdo, conforme apontam diferentes pesquisas. Pelo Spotify, por exemplo, o assunto é considerado “um tópico quente entre as ouvintes”, que formaram 70% dessa audiência na plataforma em 2021.
As explicações para esse fenômeno são várias, podendo ir desde o interesse em “compreender as motivações dos crimes às táticas para escapar deles, obtendo algum tipo de controle sobre a violência a que são alvo”, aponta estudo do Departamento de Psicologia da Universidade de Illinois.
“É um pouco dos dois. Fico querendo saber da investigação e de como o criminoso arquitetou o crime”, afirma a jornalista cearense Sabrina Souza. Apaixonada pelo segmento, ela conta que consome true crime tanto em podcast como em documentários, séries, filmes e nas redes sociais: “Sou muito viciada mesmo. Na Netflix já assisti praticamente todos.”
Aos 23 anos, informa que o gosto por esses conteúdos nasceu ainda na adolescência e que acompanha tanto casos brasileiros como estrangeiros, “dos mais conhecidos aos mais desconhecidos”.
“Mas gosto de casos fechados. Quando acontecem casos abertos eu fico para morrer e questionando o porquê que não foi concluído. O que passou despercebido pela investigação? Daí assisto de novo para tentar descobrir”, completa.
O apetite por investigação carregado por Sabrina, que inclusive já chegou a cogitar mudar de carreira para “tentar algo nessa área do direito e da perícia”, foi o que tomou conta de quem viria a ser uma de suas produtoras de conteúdo favoritas: a paranaense Jaqueline Guerreiro.
Apresentando-se como dona do maior canal de true crime do YouTube Brasil, ela diz que em 2018 encontrou uma oportunidade de falar daquilo que já amava no momento em que “ninguém” estava produzindo algo na plataforma sobre esse segmento.
De lá para cá, são mais de 270 vídeos em que narra histórias, detalhes e curiosidades de crimes nas mais diferentes perspectivas no quadro conhecido como “Quinta misteriosa”. “Meu público sempre gostou de todos os tipos de casos, o que é muito bacana. Desde o início do Quinta eles me pedem casos específicos. Sempre anoto todos, tenho uma lista gigante”, revela.
Com mais de 3,4 milhões de inscritos e 401 milhões de visualizações no YouTube, ela não titubeia quando questionada sobre qual seu público majoritário: “Mulheres! Eu acho que podem ser vários fatores para isso. A curiosidade, a informação que sempre tiramos de cada caso, até mesmo uma forma de se proteger, sabe?”
Para conhecer mais sobre o trabalho de Jaqueline Guerreiro, ela própria selecionou cinco vídeos de destaque em seu canal tanto para quem é iniciante na área do true crime como para quem já está por dentro deste universo. Confira!
Em cada entrevista, O POVO solicitou indicações de produtos true crimes para você desfrutar assim que acabar esta reportagem.