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100 anos de Saramago: Uma visita à obra do escritor
Reportagem Especial

100 anos de Saramago: Uma visita à obra do escritor

Com narrativa única, o escritor José Saramago (1922 - 2022) utilizou as palavras para motivar reflexões sociais. Em homenagem ao centenário do autor, V&A perpassa pela trajetória do português

100 anos de Saramago: Uma visita à obra do escritor

Com narrativa única, o escritor José Saramago (1922 - 2022) utilizou as palavras para motivar reflexões sociais. Em homenagem ao centenário do autor, V&A perpassa pela trajetória do português
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"Ei-lo que se encontrava mergulhado numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tomando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis". As palavras de "Ensaio Sobre a Cegueira" datam de 1995, mas são capazes de abreviar os tempos mais recentes. Em metáforas, o autor José Saramago (1922 - 2010) utiliza o termo "cegueira branca" para discorrer sobre temas complexos, como ódio e medo, em um livro que toca distintos pontos de supostos valores sociais. As críticas presentes nas obras do escritor português tornam a produção de Saramago precisamente atual e podem, inclusive, retratar o contexto político vigente no seu centenário, celebrado em 16 de novembro.

"Esse livro é um ótimo exemplo para a forma como ele enxerga o mundo. Aquilo que ele falava de uma doença planetária meio que se realizou. Ele não é profeta, é um literato, mas enxergou de alguma forma que certa globalização poderia trazer problemas mundiais por conta da hiperconectividade", relaciona o jornalista e escritor Hamilton Nogueira.

Saramago morreu aos 87 anos, na Espanha(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Saramago morreu aos 87 anos, na Espanha

Nascido em Azinhaga, província situada a 100 km de Lisboa, o autor pouco pôde explorar durante a infância e o início da juventude. Filho de José de Sousa e Maria da Piedade, o português sequer sabia que tinha Saramago - nomenclatura de planta herbácea, que à época servia como alimento - como sobrenome. A descoberta só chegou aos sete anos, quando apresentou documentação na escola e, então, se percebeu enquanto José de Sousa Saramago.

Com uma meninez de pouco poder aquisitivo, o conhecimento da literatura veio com o contato com os livros didáticos. A afinidade com as palavras foi intensificada por meio dos passeios entre as bibliotecas públicas de Lisboa. Ele trabalhou como mecânico e em instituições de segurança social até publicar o primeiro livro, lançado com o título "Terra do Pecado" (1974). Saramago ainda adquiriu a experiência de desenhista, tradutor e editor de periódicos até se dedicar integralmente à literatura com "Levantado do Chão" (1980), depois de testar com poesia e prosa.

O título da década de 1980 marcou a mudança de narrativa do escritor, que passou a ter um ritmo mais corrido, quase sem pontuação, com diálogos que acontecem com pouca ou nenhuma marcação. No primeiro contato de Hamilton com a obra de Saramago, por meio do livro "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" (1991), a estética causou estranheza. "Foi muito estranho ver a narrativa sem travessão, sem ponto e vírgula entre as frases. Você tem que entender quem está trocando de voz e isso exige mais atenção", considera.

 

PARA CONHECER A OBRA DE SARAMAGO

 

Outro ponto que cativou o jornalista foi a ironia depositada nos textos, assim como o contraste entre a crueldade e a sensibilidade presente nos livros do português. "Por pura sorte, fui ler um livro que fala sobre amor e vi aquela pessoa tão ácida e tão líricia". Saramago transita entre realidade e fantasia, o grotesco e o sensível, o profano e o sublime. Com mais de 40 publicações, o escritor ganhou o Nobel da Literatura em 1998 e tem livros traduzidos em mais de 50 países.

Centenário do escritor José Saramago é marcado por lançamento de biografia(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Centenário do escritor José Saramago é marcado por lançamento de biografia

 "Ele é metafórico, não vai falar sobre uma coisa específica da história de Lisboa, ele fala sobre o homem, as relações humanas", considera Hamilton. A ligação com Portugal, inclusive, é tema recorrente em produções como "História do Cerco de Lisboa" (1989), na qual o autor faz a ligação entre memória e território. "A língua portuguesa é o fundamento desta relação. Eu sempre achei a língua portuguesa muito bonita, muito interessante todas as variações. Os portugueses, diferente da gente, sabem a beleza", destaca Nogueira.

Fachada da Fundação José Saramago, em Lisboa(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Fachada da Fundação José Saramago, em Lisboa

Por vezes, o mercado editorial local rejeitou os escritos de Saramago e, em contrapartida, ele permaneceu por mais de 20 anos sem lançamentos. Em 1993, após ter o livro "Evangelho Segundo Jesus Cristo" vetado para o Prêmio Europeu de Literatura pelo governo do Partido Social Democrata, o escritor foi viver em exílio voluntário nas Ilhas Canárias, na Espanha, onde permaneceu até a morte, em 2010, aos 87 anos. O ofício do português continua ecoando por meio da Fundação José Saramago, localizada em Lisboa.

O espaço promove os princípios do homenageado: defesa e divulgação da literatura contemporânea, dos direitos humanos e do meio ambiente. No site, é possível ler os Cadernos do Centenário uma produção textual específica para as comemorações do aniversário de 100 anos do escritor, publicados ano longo de 2022. Como pontua Hamilton, a trajetória do escritor perpassa por questões complexas e abordagens maiores. "Isso o torna eterno", finaliza.

 

 

 

José, Pilar e como a ilha de Lanzarote entrou no mapa

Para comemorar o primeiro centenário de José Saramago, o Canal Brasil exibirá, neste 16 de novembro, o filme "José e Pilar", do cineasta português Miguel Gonçalves Mendes. O documentário lançado em novembro de 2010, foi exibido para uma pequena plateia no Rio, em julho do mesmo ano, era um corte do filme, que ainda estava em edição final.

Na tela surgia um Saramago na intimidade de casa, na ilha de Lanzarote, para onde se mudou com a mulher, Pilar, em 1993 e viveu até sua morte, em 2010. As imagens foram interrompidas pelo menos uma vez enquanto o escritor se recuperava de uma doença. E o tema entra no filme naturalmente enquanto o autor reflete sobre a vida e a finitude. “É injusto”, afirma o escritor, que diz, no filme, ter pressa de concluir o romance “Caim”, lançado em 2009, um ano antes da sua morte.

O documentário revela também detalhes do amor de José Saramago por Maria del Pilar Rio Sánchez, jornalista espanhola, por quem o escritor se apaixonou quando tinha 64 anos. Pilar foi a Portugal entrevistar o autor por ocasião do lançamento do livro “Ano da Morte de Ricardo Reis”, em 1984. Na época, tinha 36 anos. Casaram-se dois anos depois. Em 1993, Saramago muda-se de Lisboa para uma ilha entre a Europa e a África.

Estava em sua ilha quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, único escritor de língua portuguesa a receber a honraria. De lá, Saramago se tornou o autor português mais conhecido no Brasil. Lanzarote tornou-se o local de onde Saramago construía o mundo que passou a colocar na sua literatura.
Gonçalves Mendes revela em José e Pilar não apenas uma história de amor, mas, talvez, principalmente, o trabalho incessante que os unia e levava o escritor a jornadas duras de viagens, palestras e entrevistas as quais ele nem sempre respondia de bom grado. No entanto, os melhores momentos do filme é quando Saramago reflete sobre o amor, a morte, a língua portuguesa, e a literatura. (Regina Ribeiro)

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