Um dos principais focos de atrito do governo de transição até aqui, a relação entre o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os militares tem exigido jogo de cintura da articulação política antes mesmo da posse do novo chefe do Executivo.
A possibilidade de renúncia do comando das forças (Exército, Marinha e Aeronáutica) apenas intensifica o mal-estar hoje visível entre as partes, mesmo com as sucessivas tentativas do petista de fazer a poeira baixar.
Um desses movimentos para atenuar a temperatura do ambiente no pós-eleição passa pela escolha do novo ministro da Defesa, possivelmente o ex-ministro do Tribunal de Contas da União José Múcio Monteiro, quadro mais cotado. Há expectativa de que ele seja confirmado nesta sexta-feira, 8.
Nome do agrado dos militares, Múcio tem trânsito tanto entre parlamentares quanto na caserna. É um civil com interlocução entre o oficialato e fama de bom negociador.
Mas os desafios do governo estão longe de terminar aí. De partida, Lula tem um problema pela frente: o que fazer com os 8 mil militares que ocupam cargos na administração direta e indireta?
Demiti-los de uma tacada só seria um gesto politicamente desastrado, conforme analistas ouvidos pelo O POVO. Mantê-los, por outro lado, seria a continuidade do modelo militarizado da gestão Bolsonaro.
Para eles, a saída encontrada por Lula não irá fugir de uma das características do presidente, que já governou o Brasil entre 2003 e 2010, sem sobressaltos institucionais: a acomodação de interesses eventualmente conflitantes.
Isso sugere que o novo chefe do Executivo deve atuar para diminuir a resistência a seu nome por generais e alto-comando, enquanto refaz as pontes com os quartéis, que aderiram em parte ao governo de Jair Bolsonaro (PL) nos últimos quatro anos e sinalizaram apoio ao ex-capitão nas disputas de 2022.
"O retorno do PT ao Planalto significa a volta do parâmetro institucional de atuação dos militares. Muito provavelmente, haverá uma perda do protagonismo adquirido por esse setor na política nacional", aponta o cientista político e professor Pedro Gustavo de Sousa, da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
"O governo que tomará posse brevemente terá de considerar na relação com a caserna uma série de valores dispersos nos mais diversos agrupamentos", entre os quais "bolsonaristas, antipetistas e aqueles inconformados com essa perda de espaço no Executivo", destaca o pesquisador.
"Historicamente, as Forças Armadas no Brasil, de maneira geral, não tiveram uma relação de proximidade com o campo progressista”, assinala. A isso se soma também o ganho material nos anos recentes, o que explicaria a entrada de cabeça dos militares no governo.
Não houve apenas um alinhamento ideológico com o bolsonarismo, pondera Sousa. O Planalto, desde 2018, se empenhou em aprovar uma reforma da Previdência essencialmente favorável ao segmento, para citar um exemplo.
"O retorno do PT ao Planalto significa a volta do parâmetro institucional de atuação dos militares. Muito provavelmente, haverá uma perda do protagonismo adquirido por esse setor na política nacional"
Professor de Direito da Universidade Regional do Cariri (Urca), Fernando Castelo Branco acredita, contudo, que o grau de tensões entre Lula e as forças pode se desfazer com a manutenção "do critério da nomeação dos oficiais e das promoções".
"Se o governo não altera o que é a tradição dessas armas, que é a promoção com base no critério da hierarquia e da antiguidade, eu não vejo crise. Se respeita o currículo, as notas, a hierarquia e a antiguidade, não vejo por que a troca de comando dentro das forças possa gerar alguma crise e animosidade", pondera, referindo-se à possível saída dos chefes das forças antes de 31 de dezembro.
O episódio, ainda não confirmado, é interpretado como ato de insubordinação do alto-comando das armas nacionais.
Ainda segundo Castelo Branco, um passo importante para evitar escalada nessa crise é de fato a escolha do novo titular da Defesa. “Recolocar um ministro civil nessa pasta”, continua, “é indispensável, passado esse momento de extrema politização das forças e de engajamento de militares no governo”.
Feito isso, a tendência é de que se tenha “posicionamento mais claro tanto da Defesa quanto dos comandos” sobre temas que hoje incomodam o presidente eleito, como a presença de manifestantes nas portas dos quartéis pedindo intervenção militar para barrar a posse.
“Estão acampados em área militar, não interessa se é manifestação pacífica ou não é. São golpistas, estão pedindo que as forças não reconheçam o resultado eleitoral e impeçam a posse do presidente eleito. Mas, para além desse problema, estou falando de uma ocupação que tumultua área militar”, critica o professor.
Exército: general Júlio Cesar Arruda. Aos 63 anos, Arruda, cuiabano, general de 4 estrelas do Exército brasileiro, o posto mais alto da corporação. Foi comandante da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e chefe do Comando Militar do Leste, que engloba Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Conciliador, já liderou 46 mil homens em mais de 100 unidades nos três Estados. Tem doutorado em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado, com ênfase em Engenharia e Operações Especiais. Foi assessor militar do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI).
Marinha: almirante Renato Rodrigues de Aguiar Freire, chefe do Estado-Maior da Armada (Cema).
Aeronáutica: brigadeiro Marcelo Damasceno, chefe do Estado-Maior da Aeronáutica. Foi secretário do ministro da Aeronáutica, comandante do Grupo de Transporte Especial — que realiza os transportes presidenciais e de outras autoridades — e da Base Aérea de Brasília. É formado em Administração de empresas e tem cursos nas áreas de política e estratégia espacial. (Agência Estado) Leia mais aqui
Embora haja uma parcela significativa dos militares que aderiu “à gramática bolsonarista”, como avalia o cientista político Cleyton Monte, esses grupos devem agir de maneira mais cautelosa a partir de agora, com a derrota de Jair Bolsonaro (PL) na disputa eleitoral.
"São servidores públicos. Mesmo esses ligados ao Bolsonaro podem sofrer represálias. Temos militares que se expõem, mas aqueles que têm postos de destaque, depois da eleição, ficaram mais cautelosos", aponta.
Outro fator que deve ir aos poucos arrefecendo a disposição abertamente política desses segmentos das forças, presente tanto na reserva quanto na ativa, é o plano traçado por Lula de reaproximação do alto-comando.
"O governo já disse que quer retomar essa relação com os militares numa base de diálogo", ressalta o pesquisador, acrescentando que o petista "vai tentar se aproximar do alto-comando” ainda em meio ao “processo de transição", mas "sem alarde".
"Lula tem uma postura diferente de Bolsonaro", continua, "não vejo nele uma posição de revanchismo, no sentido de afastar imediatamente os militares (presentes no governo), por exemplo — acho que vai ser uma solução negociada".
Monte supõe que tampouco Lula deva atender aos setores do próprio governo de transição que esperam uma investigação dos atos de militares à frente do Ministério da Saúde durante a pandemia da Covid-19.
"O presidente eleito tem uma tradição de conciliação, que é uma conciliação de fazer avançar pautas do governo junto aos militares e não tocar em questões espinhosas dos militares, que foi o que a Dilma não fez”, diz, numa alusão à Comissão da Verdade, instalada a pedido da petista.
Por outro lado, conforme o cientista político, "o alto-comando das forças é muito pragmático, não legalista, mas pragmático, no sentido de encaminhar interesses pessoais e corporativos", o que deve facilitar os trabalhos de recomposição das pontes entre o novo presidente e o setor.
Afinal, qual o destino dos 8 mil militares que integram hoje os quadros do Governo Federal sob a gestão de Jair Bolsonaro (PL)?
Para o professor Fernando Castelo Branco (Urca), a questão diz respeito à governança do país. “É necessário desmilitarizar o funcionamento do governo”, defende, ao responder sobre os principais desafios nos primeiros meses de Lula à frente do Planalto.
Segundo ele, esse movimento é fundamental “para iniciar o processo de tirar a política de dentro dos quartéis”, que se acentuou na campanha eleitoral da qual Bolsonaro saiu derrotado.
“Embora os comandos ainda tenham algum grau de controle”, acrescenta, “estamos à beira da insubordinação”.
Para o professor, uma das apostas de Lula para estreitar relações com os militares pode se dar no campo dos investimentos. “O governo Bolsonaro foi uma tragédia em todos os setores, nas forças não foi diferente”, avalia.
Desse modo, caberia ao presidente eleito a retomada de “projetos estratégicos que foram paralisados” por Bolsonaro nesse período de quatro anos.
Parte da responsabilidade pelo ambiente conflituoso atual se deve ao engajamento das forças armadas na política, atendendo, ainda que parcialmente, aos apelos do presidente Jair Bolsonaro (PL), argumenta Rodrigo Prando, professor da Faculdade Mackenzie.
Durante o mandato, Bolsonaro recorreu ao Exército em momentos de crise, estimulando seus apoiadores a crer que tinha a chancela das forças para levar adiante o discurso golpista no enfrentamento contra o STF, principalmente.
Um exemplo disso foi o desfile de blindados em Brasília que marcou o 7 de setembro de 2021.
Depois disso, os militares se envolveram ainda no processo eleitoral, agora a convite do então presidente do TSE, Edson Fachin.
Ao longo da campanha deste ano, membros das forças que compunham a equipe de fiscalização da eleição questionaram a lisura do processo, sem qualquer evidência de irregularidade ou de mal funcionamento do sistema eleitoral brasileiro.
Ao cabo de tudo, o Ministério da Defesa chegou a divulgar relatório no qual, embora não apontasse indícios materiais de problemas nas urnas, não descartava a possibilidade de fraude.
A conclusão contrariava todas as auditorias e estudos feitos por inúmeras instituições no Brasil em relação à confiabilidade das urnas.
Para Rodrigo Prando, não há dúvida de que “houve de fato uma ultrapassagem da fronteira dentro de uma instituição de estado, que deve se manter dentro dos limites constitucionais”.
“Com o bolsonarismo”, ele assegura, “essa fronteira foi rompida, e a gente tem consequências até agora, com manifestantes na frente dos quartéis e a leniência dos militares e não raro até mesmo o estímulo de alguns com esse comportamento de não aceitação do resultado das eleições”.
>> Entrevista Bruna Cavalcanti
Estudiosa das forças armadas e do militarismo na América Latina, a pesquisadora Bruna Cavalcanti avalia que, embora haja tensão hoje entre o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os militares, um entendimento deve se impor entre as partes.
“Acredito na capacidade política de acordo e pacto entre civis e militares no Brasil. Isso sempre foi clássico na nossa trajetória”, diz a docente, que leciona no Departamento de Relações Internacionais e Ciência Política da Universidad de las Américas Puebla, no México.
Doutora em Estado de Direito e Governança Global pela Universidade de Salamanca, Cavalcanti argumenta, em entrevista ao O POVO, que os governos de Lula nunca representaram obstáculo aos interesses das forças no país.
“Lula lidará com isso (atritos com militares) da mesma forma que sempre lidou em seu governo: fazendo acordos e pactuando. Isso também seria o que faria qualquer outro político”, analisa.
"protagonistas ou coadjuvantes, o mais importante para as Forças Armadas brasileiras e o Exército em si é ter a sua autonomia respeitada e garantida. E elas sabem que terão isso com qualquer governo que seja"
O POVO – Os militares tiveram papel central no governo Bolsonaro, inclusive ocupando cargos. Como Lula pode lidar com isso?
Bruna Cavalcanti – Lula lidará com isso da mesma forma que sempre lidou em seu governo: fazendo acordos e pactuando. Isso também seria o que faria qualquer outro político. É importante entender o contexto histórico das Forças Armadas no Brasil, muito além de Lula ou de qualquer outro presidente pós-ditadura. Para fazer isso necessitamos entender a própria transição democrática brasileira, que foi por meio de um pacto e acordos, e também as próprias prerrogativas militares que esses acordos deixaram.
Nesse sentido, a transição significou um processo no qual as Forças Armadas deixaram de ser as grandes protagonistas e passam a ser coadjuvantes. Com Bolsonaro elas voltaram a ser as protagonistas porque passaram a estar no centro do governo, ocupando cargos. No entanto, mais importante que isso, para elas, como instituição, é que possam ter as suas prerrogativas garantidas e respeitadas. Nesse sentido, o governo Lula nunca representou nenhum obstáculo. Basta lembrar do caso Viegas.
E outro exemplo claro de como Lula já está lidando com isso desde agora, antes mesmo de começar o seu governo, é o aceno que faz aos militares para a possibilidade de que o novo ministro de defesa seja José Múcio, um político, com um respaldo por parte do próprio Exército. Ou seja: protagonistas ou coadjuvantes, o mais importante para as Forças Armadas brasileiras e o Exército em si é ter a sua autonomia respeitada e garantida. E elas sabem que terão isso com qualquer governo que seja.
OP – O setor militar segue em atrito com o novo presidente. Atribui isso a um antipetismo da caserna ou a um alinhamento com a visão política de Bolsonaro que tende a continuar?
Bruna – Atribuiria mais a uma visão conservadora de uma parte importante do setor militar. No entanto, é muito importante não atribuir a toda instituição ou a todo o setor essa visão. Explico: muitas vezes temos a visão de que toda a instituição tem uma certa visão política ou um certo alinhamento político. Como instituição, as Forças Armadas são formadas por diversos setores e é importante sempre ver caso a caso. O mais importante é que essa visão ou esse alinhamento nunca levou, em 8 anos de governo Lula, a uma insubordinação. Não creio que isso existirá agora. Acredito na capacidade política de acordo e pacto entre civis e militares no Brasil. Isso sempre foi clássico na nossa trajetória.
"Como partícipes da vida política brasileira, parte desse setor militar se sente no direito, na condição e também na responsabilidade de “opinar” sobre o que passa na sociedade e na classe política brasileira"
OP – Como avalia o papel que as forças armadas têm hoje no Brasil a partir de episódios como aquele post de Villas-Boas antes do julgamento do habeas corpus de Lula (pelo STF em 2018) e de outros mais recentes?
Bruna – Creio que isso é parte do contexto histórico brasileiro. Uma parte do setor militar tem essa tradição de protagonismo e trajetória em alguns momentos políticos. Como mencionei acima, o episódio do caso Viegas no governo Lula seria outro célebre exemplo disso. Nada novo sob o sol. Como partícipes da vida política brasileira, parte desse setor militar se sente no direito, na condição e também na responsabilidade de “opinar” sobre o que passa na sociedade e na classe política brasileira. São parte disso.
Existe um autor, Rafael Martínez, espanhol, que fala que é a própria sociedade que, ao militarizar os seus problemas, dá a uma parte do setor militar o direito de interferir em uma boa parte dos problemas relacionados à sociedade ou à classe política (mas, que não são necessariamente problemas de ordem militar, porque constitucionalmente não são de responsabilidade dos mesmos). Eu concordo completamente com Martinez. Episódios como os de Villas-Boas, ou os mais recentes que pediam a intervenção, ocorrem porque nós, como sociedade, seguimos militarizando problemas que não são militares.
OP – Há algum paralelo entre o quadro local e o dos demais países da América Latina?
Bruna - O paralelo que existe é justamente esse: o da militarização. Em quase todos os países de América Latina, com exceção de Chile e Uruguai, em maior ou menor grado, estão usando os militares em funções ou em cargos políticos. O maior exemplo disso seria o de Nayib Bukele em El Salvador. México também seria outro exemplo. Na maioria desses países é a própria sociedade que reivindica o uso das Forças Armadas por questões de confiança e de segurança frente a outras instituições, como as próprias polícias ou os próprios partidos políticos.