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Tarifa Zero: o direito ao transporte, a crise das empresas e o equilíbrio das contas públicas
Reportagem Especial

Tarifa Zero: o direito ao transporte, a crise das empresas e o equilíbrio das contas públicas

Discutida há três décadas, atualmente a política é vigente em 46 cidades brasileiras de pequeno e médio porte. No País, a maior população atendida é a de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza

Tarifa Zero: o direito ao transporte, a crise das empresas e o equilíbrio das contas públicas

Discutida há três décadas, atualmente a política é vigente em 46 cidades brasileiras de pequeno e médio porte. No País, a maior população atendida é a de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza
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Zerar as tarifas pagas pelos passageiros do transporte coletivo urbano é uma questão de pelo menos três décadas no Brasil. A primeira discussão de maior porte da qual se tem notícia aconteceu durante a gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo, no início dos anos 1990. O tema voltou aos holofotes em junho de 2013, quando manifestantes defendiam o passe livre e diversas organizações da sociedade civil se formaram em torno do tema.

A mais recente ênfase se dá após a liberação das tarifas em mais de 300 municípios nas Eleições de 2022, somada à intenção da atual Prefeitura paulistana em adotar a medida e discussões do governo de transição federal. “A mobilidade urbana vem de décadas em que o pensamento dos transportes públicos ficava entre quem cuida das multas e da fiscalização do trânsito e quem e como se opera os ônibus. Nos últimos anos, ela vem sendo colocada como uma ferramenta de acesso à cidade”, analisa Glaucia Pereira, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Multiplicidade Mobilidade Urbana.

Para Glaucia, a Tarifa Zero “vem discutir que o fato de o transporte coletivo ter tarifas de uso é uma barreira, impede que as pessoas façam coisas que elas gostariam de fazer”. Ela ressalta que, do ponto de vista operacional, a medida demandará melhoras consideráveis na prestação do serviço. “A gente vê que o serviço já é ruim e lotado, na maioria das cidades e principalmente em alguns horários. Com a isenção da tarifa, a esperança é atrair mais passageiros.”

A pesquisadora faz ainda mais uma ressalva: em capitais e regiões metropolitanas, a governança dos diversos modais de transporte coletivo deverá ser articulada. “Hoje os sistemas são muito separados; metrô, ônibus, trens, VLT, tudo separado. E quando se fala em Tarifa Zero, é para o transporte como um todo. Por isso que os debates precisam estar em nível municipal, estadual e federal.”

Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, tornou-se destaque nacional ao adotar a tarifa zero nos ônibus urbanos (Foto: Fábio Lima/ O POVO)
Foto: Fábio Lima/ O POVO Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, tornou-se destaque nacional ao adotar a tarifa zero nos ônibus urbanos

Hoje, 46 cidades brasileiras de pequeno e médio porte adotam a tarifa zero, ainda que em caráter experimental ou temporário, aponta um levantamento realizado pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) em outubro. Juntas, atendem cerca de 4 milhões de habitantes — o equivalente a uma Fortaleza e meia.

Em três delas a tarifa zero é parcial: a paulista Ribeirão Pires adota apenas aos domingos e feriados; a fluminense Volta Redonda isenta apenas as passagens de coletivos elétricos, que têm uma rota específica; e a maranhense São Luís, única capital da lista, tem viagens gratuitas no Expresso Trabalhador, voltado a quem encerra o expediente após as 21 horas. As mineiras Lagoa da Prata e Mariana aderiram em caráter experimental.

Majoritariamente, as isenções foram garantidas nos últimos anos: nove cidades adotaram em 2022 e 12 implementaram a partir de 2021. A principal justificativa é instituir um transporte coletivo público mais acessível e igualitário. Motivações trazidas pela pandemia de Covid-19 ou pela ausência de empresas interessadas em assumir o serviço também são apontadas.

 

"... a grande questão é sair da dimensão somente econômica e priorizar os pontos sociais e ambientais" Glaucia Pereira, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Multiplicidade Mobilidade Urbana

 

Francisco Christovam, presidente-executivo da NTU, aponta que “o setor de transporte coletivo urbano de passageiros por ônibus, em especial, já vinha passando por uma uma certa dificuldade nos últimos anos”. “Vínhamos enfrentando queda de demanda; uma concorrência predatória dos aplicativos; em algumas cidades, uma falta de visão estratégica por parte do poder concedente (executivo municipal e estadual)”, descreve.

“Por ser uma atividade executada pela iniciativa privada há uma tendência errada de achar que o transporte é um assunto de empresa privada à semelhança de um supermercado, uma farmácia, um posto de gasolina, etc”, diz Christovam. “E não, é aquele serviço público que viabiliza a prestação dos demais serviços públicos e de outras atividades da economia. É um serviço estratégico e social, contratado sob contratos de concessão ou de permissão, com regras muito rígidas que temos que cumprir.”

O engenheiro destaca a diferenciação entre tarifa de remuneração — aquele valor necessário para cobrir o custo da prestação do serviço —, e tarifa de utilização ou tarifa pública — o valor que o passageiro paga para poder usufruir do serviço. “A questão do custo é uma questão de engenharia e de economia. Do outro lado, a tarifa que é necessária para cobrir o custo é uma questão política e social”, diz.

"Vemos uma deficiência dos números sobre os resultados positivos dessas políticas, porque são benefícios de difícil medição. Mas o que a gente vê é uma relação direta entre o maior uso do transporte coletivo e questões como melhoria da segurança no trânsito, da qualidade do ar", acrescenta Glaucia. "São impactos de longo prazo, mas a grande questão é sair da dimensão somente econômica e priorizar os pontos sociais e ambientais", opina. 

 

Linha do tempo: a tarifa zero no Brasil e no Ceará

 

 

No Ceará, quatro municípios zeraram a tarifa para passageiros

A possibilidade de se locomover de forma gratuita pelas ruas da própria cidade é real para alguns cearenses desde 2010. Eusébio, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), foi pioneiro ao implantar a tarifa zero para todo o sistema de ônibus urbano, até hoje disponível aos seus 55.035 habitantes.

Eusébio foi o primeiro município cearense com tarifa zero de ônibus; foto de praça no Centro do município(Foto: Barbara Moira em 13/3/2021)
Foto: Barbara Moira em 13/3/2021 Eusébio foi o primeiro município cearense com tarifa zero de ônibus; foto de praça no Centro do município

Conforme a Prefeitura, em 2022 foram realizadas 92 viagens gratuitas por dia, totalizando 1.840 viagens e 100 mil passageiros por mês. Os custos são arcados com recursos do município e correspondem a 1% do orçamento mensal, afirma a Prefeitura. O poder público afirma ver reflexos positivos: a economia que os munícipes têm em seu orçamento e a economia para as empresas, “pois os trabalhadores têm acesso ao sistema para se deslocarem até os locais de trabalho”.

Desde então, três outros municípios cearenses, todos da RMF, adotaram a política de gratuidade aos passageiros: Aquiraz (2018), Caucaia (2021) e Maracanaú (2022).

Na iniciativa mais recente a viagem é gratuita para pessoas que estão inscritas no CadÚnico, para estudantes e para pessoas cadastradas no Qualifica (programa municipal de qualificação da mão de obra). Em sete meses, Maracanaú contabiliza ter saído de 120 mil para 376 mil passageiros mensais, dos quais 276 mil são usuários com direito à gratuidade.

Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza, adota a política de gratuidade aos passageiros desde 2018(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza, adota a política de gratuidade aos passageiros desde 2018

O serviço de transporte coletivo custa aproximadamente R$ 970 mil por mês, dos quais R$ 711 mil são custeados pelo município e R$ 259 mil pelo usuário pagante. “O aumento da população transportada, reflete mais movimentação comercial e cultural interna do município. Comunidades que estavam distantes, em torno de 10 km a 12 km, passaram a estar inseridas no fluxo cotidiano”, avalia Tibério Guimarães, coordenador de transporte e mobilidade urbana de Maracanaú.

O gestor afirma que a adoção do passe livre parte da visão do transporte público como uma política social. “A questão da pandemia também foi um motivo, pois o sistema de transporte urbano foi severamente atingido.”

“Ainda dentro do projeto de mobilidade urbana, vamos implantar dois terminais de integração de ônibus e ampliar a oferta com mais duas linhas para atender a integração dos terminais”, acrescenta Guimarães. Segundo ele, os terminais, cujos levantamentos de custos estão sendo feitos, são projetos a médio prazo.

A Prefeitura de Aquiraz também foi consultada. Entretanto, não respondeu até o fechamento desta reportagem. Segundo a NTU, a gratuidade no município existe há cinco anos e vale para todo o sistema de transporte urbano por ônibus. 

 

Onde os ônibus têm Tarifa Zero no Brasil 

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Gratuidade em Caucaia é exemplo nacional

“A mudança maior acho tem a ver com o mais uso dos ônibus pela população, pois o gasto com passagem é algo bem pesado às vezes e não ter esse gasto é muito bom”, avalia o fisioterapeuta Matheus Pires sobre o programa Bora de Graça, de Caucaia. “Mudança em si nos transportes não teve. Eles são razoavelmente bons. São ônibus menores, mas relativamente confortáveis.”

Movimentação na Praia do Icaraí aumentou com a tarifa zero em Caucaia
Movimentação na Praia do Icaraí aumentou com a tarifa zero em Caucaia (Foto: FERNANDA BARROS)

No trajeto entre o bairro Nova Metrópole e o Centro, ele conta que, por ser um alívio no orçamento, “as pessoas normalmente gostam”. Antes de zerar a tarifa para os usuários, o transporte coletivo municipal cobrava R$ 3,50 na passagem na cidade e R$ 3,80 no campo.

Para Andréa Maria do Nascimento Damasceno, tecnóloga em Hotelaria, “as viagens tornaram-se mais práticas”. “Além de economia, há um ganho de tempo, já que não há um cobrador no coletivo”, analisa. “Mudou positivamente meu cotidiano, posso ir e vir dentro da cidade. Muitas vezes o transporte coletivo é o único disponível e necessitamos nos deslocar através de dois a três ônibus até o destino final”, aponta a moradora da região do Garrote que está desempregada.

“Em contrapartida, as viagens até as praias da região de Cumbuco e Icaraí ficaram bem mais inseguras devido à grande quantidade de passageiros e poucos transportes para suprir a demanda”, continua Andréa. “Não há segurança nas paradas de ônibus devido a demora e isso também interfere nas viagens”, completa, acrescentando que a criação de um terminal de ônibus poderia trazer mais segurança.

 Caucaia é a segunda cidade mais populosa do Ceará e implantou a tarifa zero em 2021(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Caucaia é a segunda cidade mais populosa do Ceará e implantou a tarifa zero em 2021

A segunda cidade mais populosa do Ceará, ficando atrás apenas de Fortaleza, é a também a cidade mais populosa do Brasil a optar pela tarifa zero. Desde setembro de 2021, Caucaia investe cerca de R$ 2 milhões por mês para custear a locomoção pública de todos os seus 368.918 habitantes. São 77 ônibus rodando em 21 linhas diariamente.

A Secretaria Municipal de Patrimônio e Transporte (SPT) destaca como resultado a multiplicação de pessoas atendidas. Cerca de 510 mil passagens foram pagas em agosto de 2021. Durante o primeiro ano da gratuidade, o sistema registrou uma média de 1,8 milhão de passageiros mensais.

Outro ponto quantificado pela Prefeitura é o financeiro. Segundo o executivo caucaiense, as famílias têm economizado de 15% a 36% da renda. “A iniciativa movimenta a economia local e promove a democratização dos espaços públicos e o acesso aos locais de lazer e cultura da cidade”, prossegue em nota. A redução nas emissões diárias de CO2 e de acidentes de trânsito também é considerada.

Quanto à segurança nos deslocamentos, a Prefeitura afirma que todos os ônibus possuem câmeras de vídeo monitoramento, GPS e botão de pânico que funciona em interface com a Polícia Militar. Questionada sobre a previsão de instalar terminais de ônibus, a gestão explica que “a maioria das linhas municipais ligam os bairros ao Centro de Caucaia, local de ponto final da grande maioria dos itinerários e, através de ruas paralelas, se organiza o embarque e desembarque destes trajetos e/ou ponto final”. 

 

Em Fortaleza tem gratuidade?

A Capital não tem previsão de considerar a Tarifa Zero. As gratuidades no transporte coletivo de Fortaleza são previstas por legislações específicas. Idosos têm esse direito desde 1988. O cartão gratuidade para pessoa com deficiência (PcD) passou a ser emitido em 2008; acompanhantes de PcDs graves também têm passe livre.

No sistema de transporte público de Fortaleza, a gratuidade determinada por lei abrange segmentos. Não há previsão para a universalização da tarifa zero
No sistema de transporte público de Fortaleza, a gratuidade determinada por lei abrange segmentos. Não há previsão para a universalização da tarifa zero (Foto: FERNANDA BARROS)

De janeiro a setembro deste ano, os ônibus de Fortaleza registraram 3 milhões de passagens pelo cartão do idoso e 4,1 milhões pelo cartão para PcD. Média de mais de 450 mil por mês.

Crianças de até 1,10m, carteiros devidamente fardados, guardas municipais em serviço, policiais militares, bombeiros militares, policiais civis, oficiais da Justiça federal e Agentes de Inspeção do Trabalho também são isentos. 

 

Priorizando o transporte por ônibus

Ao todo, 86 cidades brasileiras têm ações que priorizam o transporte coletivo em ônibus. As medidas contemplam Sistemas BRT, corredores e faixas exclusivas, algumas vezes presentes simultaneamente nas cidades.

São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE), Fortaleza, Brasília (DF), Curitiba (PR), Porto Alegre (RS), Campinas (SP), Mauá (SP) e Belo Horizonte (MG) são, nesta ordem, as 10 cidades com mais quilômetros operacionalizados de priorização de transporte público por ônibus.

Considerando os quilômetros de priorização para cada 100 mil passageiros equivalentes transportados por dia, o ranking fica com: Mogi das Cruzes (SP), Fortaleza, João Pessoa (PB), Natal (RN), Curitiba (PR), Maceió (AL), São Paulo (SP), Recife (PE), Porto Alegre (RS) e Brasília (DF).

Fonte: NTU. Levantamento realizado em novembro/2022

 

Uma proposta: o Sistema Único de Mobilidade

Criado em 2012, o Plano Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) até hoje carece de um diálogo entre as três esferas de poder para efetivação plena. A responsabilidade direta dos municípios não tem bastado para garantir um transporte coletivo público com qualidade e equidade. Em setembro, 145 organizações assinaram e publicaram um manifesto pela criação do Sistema Único de Mobilidade (SUM).

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