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Ceará teve maior registro de áreas queimadas em 15 anos
Reportagem Especial

Ceará teve maior registro de áreas queimadas em 15 anos

Dificuldades de monitoramento e de combate aos focos de incêndio dificultam reversão do cenário no Estado em curto prazo. Dados são de 2019, com indicativo de queda pela metade em 2022

Ceará teve maior registro de áreas queimadas em 15 anos

Dificuldades de monitoramento e de combate aos focos de incêndio dificultam reversão do cenário no Estado em curto prazo. Dados são de 2019, com indicativo de queda pela metade em 2022
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Seja por causas naturais, seja por um fator humano, o fogo tem poder devastador quando encontra ambiente propício à sua propagação. Predominante em quase todo o território cearense, a caatinga é um dos biomas que possui maior vulnerabilidade ao fogo.

Sem cascas grossas, que ajudam na proteção das árvores, e com a falta de recursos naturais para recuperação após um incêndio florestal — algo que ocorre em boa parte do cerrado, onde a vegetação possui um acúmulo de água e nutrientes de forma subterrânea —, a caatinga padece de maneira severa diante das chamas.

Em 2019, 70 mil hectares de terras no Ceará foram atingidos pelo fogo. Desde o início da série histórica, em 1985, apenas em quatro oportunidades foram registradas "cicatrizes" mais graves: 1993 (85.700 ha), 2000 (82.470 ha), 2003 (99.800 ha) e 2004 (105.500 ha). Assim, é o maior registro em 15 anos.

Para esta reportagem, a Central de Jornalismo de Dados do O POVO (DATADOC) utilizou informações do Banco de Dados Meteorológicos do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e da rede colaborativa MapBiomas.

Em um recorte dos últimos 15 anos, o levantamento aponta que o solo mais afetado no Ceará é a "Formação Savânica", que concentra 75% da área atingida pelo fogo, o equivalente a 393 mil hectares. De acordo com o MapBiomas, em 2021, os solos caracterizados como tal representavam 62% dos tipos de cobertura de solo no Estado, o que o torna o mais difundido no Ceará.

A denominação "Formação Savânica" é um termo utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como uma subdivisão de vegetações existentes dentro da própria caatinga. O termo é utilizado para áreas que possuem uma savana mais arbustiva, composta por árvores baixas e menos densas.

De acordo com o professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Washington Franca Rocha, coordenador do MapBiomas Caatinga, entre janeiro e outubro de 2022, cerca de 35 mil hectares foram queimados no Ceará, o que mostra uma tendência de queda em relação ao cenário apresentado em 2019.

Por outro lado, a formação savânica (caatinga) segue como a mais atingida em 2022 — 81% das áreas queimadas fazem parte deste território. O especialista destaca que, anualmente, durante o segundo semestre, a situação tende a se agravar.

"Há um padrão climático de maior seca na região, que é um dos fatores que colabora com a queimada. Com temperaturas mais altas e a baixa umidade, é como se tivesse combustível espalhado do solo", avalia. No Ceará, o período de maior concentração de precipitação é a chamada quadra chuvosa, entre fevereiro e maio.

Os incêndios podem ser iniciados de diversas maneiras. Entretanto, o mal uso do fogo por agricultores está entre as principais causas. "Muitos agricultores, até por tradição, antes de iniciarem um novo ciclo de plantação para preparar a terra, eles a queimam. A questão é que esse tipo de manejo tem um risco", destaca o coordenador do MapBiomas.

Para o biólogo e doutor em biologia vegetal, Marcelo Freire Moro, professor do curso de Ciências Ambientais do Labomar da Universidade Federal do Ceará (UFC), é preciso difundir a educação ambiental, além de investir em tecnologia de produção agrícola menos impactante.

Moro destaca que apenas 1,3% da caatinga é protegida por Unidades de Conservação de proteção integral. "É importante que o Brasil identifique as áreas de maior relevância biológica dentro da caatinga e crie novas unidades de conservação como Parques Estaduais e Nacionais", pontua.

Na avaliação de Kurtis Bastos, coordenador do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo/Ibama), é preciso que queimadas entrem nas discussões das políticas públicas no Estado. Para ele, o fogo está sendo usado de forma banal, o que tem gerado graves consequências ao Ceará.

Bastos destaca que é preciso políticas públicas eficientes voltadas para a agricultura familiar, que ainda dependem do fogo para o tratamento da terra. "Quando vemos o pequeno agricultor, do neolítico para os dias de hoje, as ferramentas deles mudaram de pedra para metal, mas continuam sendo rudimentares".

Sobre o trabalho realizado pelo Prevfogo, Bastos destaca que parcerias entre o Ibama e a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc) têm levado a discussão sobre queimadas para as escolas. Para ele, é preciso que o fogo passe a integrar a grade curricular de ensino do Estado, além de ser necessário forte atuação preventiva de forma estratégica em todo o Ceará.

"Não basta só punir, é preciso entender e ter políticas adequadas, a agricultura familiar está envelhecida. Muitas vezes, penalizamos o agricultor, é preciso enxergar o lado dele. Aquela pessoa que acorda às 4h da manhã e não possui ferramentas avançadas para sobreviver".

 

 

Assistência técnica atinge 13% dos agricultores no Ceará

 

A busca pela evolução da agricultura familiar e, consequentemente, a diminuição do uso do fogo na zona rural já faz parte dos planos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará (Ematerce), que atua vinculada à Secretaria do Desenvolvimento Agrário do estado do Ceará (SDA). Entretanto, de acordo com Nizomar Falcão, coordenador de irrigação da Ematerce, a quantidade de pessoas atingidas pela assistência técnica no Estado ainda é pequena.

Técnicos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ematerce) ajudaram os alunos durante o processo com sugestões(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Técnicos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ematerce) ajudaram os alunos durante o processo com sugestões

"O número de agricultores familiares é de cerca de 360 mil, a Ematerce atende entre 40 mil e 50 mil. A grande maioria não tem acesso à assistência, esse é o grande desafio", avalia. Para o representante da Ematerce, é preciso um "pacto coletivo" para que a situação melhore.

"Se não houver uma prestação de assistência técnica pelos governos, a tendência é de que essas crises ambientais sejam cada vez mais graves. É preciso que a assistência seja um compromisso federal, estadual e municipal, e até de organizações não governamentais".

Falcão explica que, dentro do processo de preparação da terra na agricultura familiar, o fogo é utilizado após a derrubada da mata para a "limpeza" do terreno. Questionado se existem outras possibilidades que possam substituir o fogo, o representante da Ematerce afirma que sim, mas ressalta que os meios ainda não são viáveis para a maioria dos que fazem a agricultura familiar.

"O recomendável é transformar essa vegetação em matéria orgânica, isso pode ser feito em máquinas trituradoras e também existem produtos que agilizam esse processo. Para fazer todo esse trabalho é preciso que exista Assistência Técnica de Extensão Rural".

Sobre as ações de educação ambiental, Falcão destaca que muitos municípios já trabalham com essa metodologia, porém, na avaliação dele, é um trabalho que só renderá frutos a longo prazo. "Não adianta só formar, é preciso educar o homem, e educação é um processo lento, não acontece da noite pro dia, e nem com uma única palestra".

Questionado sobre a possibilidade de expansão da assistência técnica no Estado, para que a política chegue a todos os agricultores, Falcão acredita que ainda é difícil imaginar que o Ceará chegue a um cenário ideal a curto prazo.

"Existem muitas dificuldades para que isso seja implementado. É preciso que decisões políticas mais elevadas sejam realizadas para a liberação de recursos, para se universalizar isso".

Visando reverter prejuízos causados pelo fogo, o coordenador de irrigação afirma que, a partir de 2023, o Estado passará a pôr em prática um programa de recaatingamento, que visa distribuir 1 milhão de mudas em cinco anos. O projeto está em fase final de licitação, de acordo com Falcão.

 

 

Municípios mais atingidos pelo fogo sofrem para controlar queimadas 

 

Dos 184 municípios cearenses, Sobral é o que teve mais áreas queimadas no Estado entre os anos de 2005 e 2020. Ao todo, 19.800 hectares de terra foram atingidos pelo fogo em 15 anos.

Queimada à margem da BR em Quixadá (Foto: 31 18:50:59)
Foto: 31 18:50:59 Queimada à margem da BR em Quixadá

O ranking dos municípios mais atingidos pelo fogo no Ceará ainda conta com as cidades de Icó (18.800 ha), Acopiara (15.100 ha), Cariús (13.800 ha) e Jucás (13.500 ha).

Na avaliação do comandante da 1ª Companhia do 3º Batalhão de Bombeiros Militar (1ªCia/3ºBBM) de Sobral, tenente coronel Francisco de Morais, o combate ao fogo no Estado enfrenta problemas no efetivo disponível para combate a incêndios florestais.

Segundo o comandante, o Corpo de Bombeiros em Sobral atende a 29 municípios. Entre julho de 2020 e dezembro de 2022 foram 501 ocorrências atendidas pela base. Ao todo, o local conta com o serviço de dez bombeiros militares.

"Em tese, somos bombeiros urbanos, quando se tem um incêndio florestal, precisamos demandar um efetivo extra já que não há hora para acabar", explica.

A situação relatada pelo comandante Morais também faz parte da realidade no Centro-Sul do Estado. Os municípios de Icó, Acopiara, Cariús e Jucás dependem dos serviços do Corpo de Bombeiros de Iguatu. O tempo de deslocamento entre a base e o foco de incêndio florestal na zona rural pode levar horas.

O secretário de meio ambiente de Cariús, Martegiano Lima, lamenta a situação que o município enfrenta. "Não temos condições de enfrentar isso sozinhos. Somos um município muito grande territorialmente. Focamos no trabalho educativo, mas sofremos para combater o fogo".

Em Icó, a situação é bem parecida, segundo relata Efigênia Mota, responsável pela Superintendência do Meio Ambiente (Sudema) do município. "Dependemos do Corpo de Bombeiros de Iguatu, às vezes precisamos da ajuda da população".

Em Jucás, o secretário de desenvolvimento agrário do município, Cláudio Lavôr afirma que a situação piora nessa época do ano, entretanto as chuvas de 2022 e de 2021 amenizaram a situação. "Uma coisa que acontece muito é incêndio na beira da estrada. Vimos que diminuiu, porque o inverno tem começado mais cedo, mas a situação foi crítica nos últimos anos".

Incêndio em beira de estrada de rodovia no Cearã(Foto: Divulgação/ CBMCE)
Foto: Divulgação/ CBMCE Incêndio em beira de estrada de rodovia no Cearã

Em Acopiara, Danilo Bastos, secretário de meio ambiente, aborda outro problema enfrentado pelo município: a dificuldade no processo de fiscalização. "A zona rural é imensa. Nossa atuação é por meio de denúncia, não conseguimos penalizar ninguém, apenas fazemos o levantamento do que ocorreu", afirma.

Diante dos problemas apresentados, o professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Washington Franca Rocha, acredita que a melhora no quadro de queimadas no Ceará não será em breve.

"Sem orientação, sem extensão rural, sem uma atitude de advertência e até punição para reincidentes, esse padrão vai continuar ocorrendo. É preciso tornar isso público e fazer com que os gestores sejam forçados a dar condições aos produtores ruais", finaliza.

 

 

Metodologia

Para esta reportagem foram coletados dados pluviométricos, de queimadas e de superfícies de água. Foram feitas análises exploratórias a partir das informações das estações automáticas e convencionais do Ceará do Banco de Dados Meteorológicos do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e dos dados de cicatrizes de fogo e de superfície de água da rede colaborativa MapBiomas.

Como forma de garantir a integridade e confiabilidade deste material, disponibilizamos a metodologia detalhada do projeto, as fontes utilizadas e nossas análises, assim como os dados agregados e o conjunto de códigos desenvolvidos, na página do GitHub da DATADOC.

 

Expediente

  • Texto Gabriel Borges
  • Análise e visualização de dados Alexandre Cajazeira
  • Edição André Bloc e Grabriela Custódio
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