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Festival de besteira ainda assola o País: 100 anos de Stanislaw Ponte Preta
Reportagem Especial

Festival de besteira ainda assola o País: 100 anos de Stanislaw Ponte Preta

Há 100 anos nascia Sérgio Porto, criador de Stanislaw Ponte Preta e do Febeapá — o Festival de Besteira que Assola o País, uma trincheira do humor na época em que a ditadura militar se encaminhava para o auge

Festival de besteira ainda assola o País: 100 anos de Stanislaw Ponte Preta

Há 100 anos nascia Sérgio Porto, criador de Stanislaw Ponte Preta e do Febeapá — o Festival de Besteira que Assola o País, uma trincheira do humor na época em que a ditadura militar se encaminhava para o auge
Tipo Análise Por

 

Por volta de meados de 1966, Airton Gomes de Araújo, natural de Brejo Santo, foi levado preso ao 23º Batalhão de Caçadores (23BC) por ofender "símbolo nacional". No caso, o símbolo ultrajado era o presidencial pescoço do marechal Castelo Branco, que Airton disse ser parecido ao de uma tartaruga. Depois, tentou se retratar: "Não era o pescoço de S. Exa. que parecia com o da tartaruga: o da tartaruga é que parecia com o de S. Exa." Não colou.

O episódio é narrado no Festival de Besteira que Assola o País, o Febeapá, coletânea de causos reunida por Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, que completa 100 anos de nascimento nesta quarta-feira, 11.

Sérgio Porto(Foto: EBC)
Foto: EBC Sérgio Porto

E aí cabe talvez um reparo sobre o título: o centenário é de Sérgio, jornalista, radialista, cronista, escritor, humorista e boêmio. Stanislaw foi criado em 1951. Ou não, pois essa foi a data em que o pseudônimo passou a ser usado na assinatura de textos. Coexistiu com Sérgio Porto até o fim da década seguinte — havia produção jornalística e até livros assinados por um ou por outro.

Ao prefaciar Tia Zulmira e eu, Porto falou da relação entre os dois: "Praticamente, é meu irmão de criação. Moramos na mesma casa, tivemos a mesma infância e muitas vezes comemos no mesmo prato". Não seria de admirar, portanto, terem nascido na mesma data. Um, o intelectual tímido e vigoroso boêmio, mas marcante personagem da Copacabana dos anos 1950 e 1960. Outro, o cronista ferino e mordaz.

Irônico e sagaz, fazia troça política em anos perigosos. O Febeapá foi lançado em 1966. Foi o primeiro de três volumes. O último, em 1968, ano da precoce morte de Porto.

Na época, a ditadura militar escalava para o auge. Stanislaw fazia piada de notícias reais da política, da cultura, da sociedade, dos costumes. Não escapavam nem os militares ou a ditadura, chamada jocosamente por ele de "redentora".

Carteirinha que acompanhou o Febeapá 2(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Carteirinha que acompanhou o Febeapá 2

O Febeapá narrou, por exemplo, a realização de um júri simbólico de Adolf Hitler, promovido em Campos pelo Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito — ao final do qual decidiu-se pela absolvição do líder nazista. Mostrou também a proposta do deputado Eurico de Oliveira de obrigar autoridades a cantar o Hino Nacional quando tocado em solenidades.

Em outro episódio sobre o Ceará, o Febeapá abordou a polêmica ocorrida em Fortaleza em 1965, sobre a construção de um mictório público na Praça José de Alencar. O equipamento seria instalado diante da estátua do escritor homônimo do logradouro. O Instituto do Ceará, então, protestou contra o que chamou de "incontinência histórica" — colocar o mictório diante do maior escritor da terra, em plenas comemorações do centenário de Iracema.

O prefeito Murilo Borges foi sensível às queixas. O mictório foi construído, mas não na frente e sim atrás da estátua. O instituto agradeceu pois "as pétreas narinas não serão mais molestadas". A esse respeito, Stanislaw Ponte Preta arrematou: "Foi uma solução honrosa, sem dúvida, e agora, se alguém ficar aperreado, como se diz no Ceará, que vá atrás da estátua".

Personagem frequente dos escritos de Stanislaw, inclusive no Febeapá, é Tia Zulmira. Ex-condessa da Prússia, ex-vedete, cozinheira da Coluna Prestes, mulher que "deslumbrou a Europa com sua beleza e os sábios com sua ciência".

Edição do Febeapá 1
Edição do Febeapá 1 Crédito: Reprodução

Na 1ª Guerra Mundial, ela foi espiã e "grande rival de Mata-Hari". Quando morava na Rússia, o marido dela foi fuzilado pelos comunistas em função de usar monócolo, o que o fez ser confundido com a "burguesia reacionária". Ela deixou o País, não sem antes passar uma descompostura em Stalin e Trotski: "Vocês dois são tão calhordas que vão acabar inimigos".

De volta a Sérgio Porto, ele estudou arquitetura, mas abandonou a faculdade para trabalhar no Banco do Brasil. Iniciou mais tarde no jornalismo e por um tempo conciliou com o emprego de bancário. Quando já era humorista famoso — tanto como Porto quanto como Stanislaw — largou o banco. Mas, o jornalismo exigia ainda mais.

"Rapaz, que vida mansa eu levava no banco. Agora estou trabalhando tanto que só levanto os olhos do teclado (da máquina de escrever Remington) para pingar colírio", disse, conforme relato do amigo e cartinusta Jaguar, pseudônimo de Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, no prefácio da edição de 2007 de Tia Zulmira e Eu (editora Agir).

Ao produzir como Sérgio Porto e Stanislaw Ponte Preta, ele trabalhava em dobro, pois "o uísque de nossas noites é ganho com o suor de nossos dias", escreveu Millôr Fernandes no bonito prefácio ao Febeapá em edição de 2006 da Agir.

Sérgio/Stanislaw escreveu para a revista Sombra, para Diário Carioca — onde estreou o pseudônimo que o fez célebre —, Tribuna da Imprensa, Última Hora, Diário da Noite e O Jornal. Criou para rádio, televisão e teatro. Produziu intensamente até morrer aos 45 anos, em 1968, do terceiro infarto que o acometeu ao longo de severa doença cardíaca. Partiu antes de conhecer o AI-5, instituído meses depois.

No ano seguinte, Sérgio Porto e Stanislaw Ponte Preta foram a inspiração para a criação de O Pasquim, provavelmente o mais importante veículo da imprensa alternativa do Brasil, que teve a participação de nomes como Millôr, Jaguar e muitos outros.

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