Os benzodiazepínicos são uma classe de remédios já conhecidos da indústria farmacêutica e dos consumidores devido ao potencial desses medicamentos como ansiolíticos, hipnóticos, tranquilizantes, anticonvulsivantes e até mesmo relaxantes musculares. De janeiro a outubro de 2021, apenas no Ceará foram vendidas mais de 1,4 milhão de unidades. Nacionalmente, o número passa de 41,5 milhões, de acordo com dados abertos da venda de medicamentos industrializados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC).
O POVO+ analisou a série histórica de 2014 a 2021, considerando os meses de janeiro a outubro de cada ano, dos dados do SNGPC disponíveis no Portal de Dados Abertos do Governo Federal. Foram excluídos os meses de novembro e dezembro devido a uma Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) que influenciou no preenchimento do sistema e levou a uma queda dos registros a partir de novembro de 2021. O objetivo da análise foi compreender a variação nas vendas de 11 princípios ativos: alprazolam, bromazepam, clobazam, clonazepam, cloxazolam, diazepam, lorazepam, midazolam, clordiazepóxido, flurazepam e estazolam.
Na série histórica avaliada, o pico de vendas desses medicamentos foi em 2017, quando foram vendidas 43,4 milhões de unidades no País, mas, entre 2014 e 2021, as vendas nesses meses do ano mantiveram-se com alta demanda e estiveram acima de 37,4 milhões. Na base de dados, são consideradas como unidades dos medicamentos caixas ou frascos.
Usados corretamente, esses princípios ativos são aliados no tratamento de diversos problemas ligados ao sistema nervoso. Isso ocorre porque eles auxiliam a ação do ácido gama-aminobutírico (Gaba), que é um dos principais neurotransmissores inibitórios do sistema nervoso central. Assim, a excitação excessiva do sistema nervoso é impedida, diminuindo os sintomas da ansiedade, por exemplo.
No Ceará, a comercialização de benzodiazepínicos teve pico em 2018, com mais de 2,8 milhões de unidades comercializadas. Três anos depois, em 2021, as vendas tiveram redução de 49,9%. Dentre os mais vendidos para a população cearense no período estão o Rivotril (clonazepam), o Frontal (alprazolam) e o Lexotan (bromazepam).
Por outro lado, a automedicação, além do uso recreativo ou indevido desses medicamentos podem trazer danos à saúde. ”Eles são bons medicamentos quando são bem indicados, quando usados por um tempo adequado à necessidade do paciente”, afirma Mirian Parente, professora do curso de Farmácia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do Grupo de Prevenção ao Uso Indevido de Medicamentos.
"Não é para se estar tomando sem uma real necessidade. Mesmo sendo medicamento controlado, a sociedade burla muito as questões legais. Você ouve relato que pegou [o remédio] do tio, do avô, do amigo, e tá tomando também, consegue receita com alguém conhecido”, diz Mirian.
A farmacêutica explica que o uso prolongado pode afetar a memória, devido ao efeito dos ativos no hipocampo, parte do cérebro envolvida na aquisição de novas memórias. Além disso, doses altas ou misturadas com álcool — que também inibe o sistema nervoso central —, podem causar depressão respiratória e até levar ao coma. Esses medicamentos também são capazes de causar dependência.
De acordo com o sistema de notificação de farmacologia da Anvisa, VigiMed, de janeiro a outubro de 2021 pelo menos 522 suspeitas de eventos adversos envolvendo os princípios ativos foram registrados no Brasil. O número é 97% maior que o registrado em todo o ano de 2020, que conta com 264 notificações. Em 2019, foram 104 eventos adversos computados no sistema.
A Anvisa informa que as suspeitas não podem ser utilizadas para formular taxas sobre a probabilidade da ocorrência de um evento adverso com o uso dos medicamentos, mas apenas para registrar a existência, frequência e severidade dos efeitos.
A analista de mídias sociais Lia Bruno, 26, começou a tomar alprazolam para tratamento de ansiedade e depressão. No entanto, com o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a adição de mais medicamentos, os efeitos colaterais incomodaram, fazendo com que os profissionais que a acompanham mudassem o medicamento para o clonazepam.
“Em 2021, fui diagnosticada, tardiamente, por uma neurologista, com o auxílio de uma psicóloga, com TDAH. Ela já me acompanhava em um longo tratamento contra enxaqueca e acabou percebendo alguns sinais durante as avaliações cognitivas. A partir disso, iniciei o tratamento com ritalina”, conta.
O clonazepam, no caso de Lia, foi utilizado por ser um remédio de ação imediata que melhorava os efeitos adversos da ritalina. “Além disso, ele também me ajuda a me sentir mais relaxada e menos tensa, facilitando na concentração”, diz.
A psiquiatra Lia Sanders explica que esse uso é comum. “Quando o paciente tem alguma queixa de insônia, enquanto os antidepressivos não começam a fazer efeito, quando precisa de um efeito mais rápido, a gente associa os benzodiazepínicos nessas situações”, diz.
Segundo Sanders, o uso inicial dos benzodiazepínicos era voltado para o tratamento de convulsões. No entanto, o uso clínico e pesquisas mostravam que eles também agiam como ansiolíticos.
“Mas surgiram alguns estudos que apontaram o uso prolongado e o risco de demência na terceira idade. Isso mudou um pouco da visão que se tinha dessas medicações”, afirma. Com o passar do tempo, outras medicações mais “úteis a longo prazo” surgiram no mercado e foram ganhando preferência dos psiquiatras para o tratamento dos pacientes.
Com os efeitos na memória e os casos de dependência, os benzodiazepínicos passaram a ser menos prescritos para o tratamento de insônia. A partir da década de 1990, outro hipnótico, o Zolpidem, ganhou mais popularidade. Nos últimos anos, as vendas do medicamento dispararam no Brasil. Na série histórica entre 2014 e 2021, o remédio passou a ser 261,63% mais comercializado. O total de unidades do fármaco vendidas em todo o País passou de 3,87 milhões para mais de 14 milhões.
Entre os estados onde houve mais consumo de Zolpidem, destaca-se o Rio Grande do Norte, com taxa de 28 unidades vendidas por 100 habitantes no período de janeiro a outubro de 2021. É mais que o dobro do Distrito Federal, que ficou em segundo lugar, com taxa de 12,5. O Ceará está entre os estados com menor taxa de unidades vendidas por 100 habitantes: 3,5.
Esse remédio não é da classe dos benzodiazepínicos, apesar de também atuar no ácido gama-aminobutírico (Gaba). Segundo a membro da Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental (SBFTE) Stela Rates, o Zolpidem age em receptores biológicos diferentes.
“Por isso não agem sobre a ansiedade, agem principalmente como indutores do sono. No entanto, podem apresentar efeitos adversos importantes e seu uso deve ser criterioso, também realizado sob prescrição e supervisão médica”, comenta. O remédio pode ainda causar dependência.
Com a popularização, se tornou comum ver postagens nas redes sociais de pessoas que tomam o remédio e acabam fazendo ou falando coisas desconexas, descobertas ao acordar apenas pelos registros de mensagens, vídeos ou relatos de pessoas próximas.
A professora Mirian Parente explica que tanto os benzodiazepínicos quanto o Zolpidem podem causar amnésia, fazendo com que as pessoas não lembrem o que aconteceu antes e depois de o remédio fazer efeito. “Quando o médico prescreve, ele diz que você já tome em casa, próximo ao horário de dormir, já se deitando. Porque alguns têm início de ação muito rápido”, afirma.
Mirian chama atenção ainda para o fato de que os jovens devem procurar formas não medicamentosas para lidar com a insônia também.
“Do ponto de vista fisiológico, eles têm toda a condição de indução de sono adequada que o idoso, por exemplo, não tem”, afirma. Para ela, a mudança de hábitos, como não utilizar equipamentos eletrônicos logo antes de ir dormir, praticar exercícios físicos e comer bem, são meios de lidar com o problema para além da medicação.
Nesta reportagem, O POVO+ utilizou dados de Venda de Medicamentos Industrializados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), disponíveis no Portal de Dados Abertos do Governo Federal, e da Prévia da População dos Municípios com base nos dados do Censo Demográfico 2022 coletados até 25/12/2022, disponibilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Foi analisada a série histórica de 2014 a 2021, considerando os meses de janeiro a outubro, uma vez que a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 586/2021 suspendeu temporariamente os prazos previstos na RDC nº 22, de 29 de abril de 2014, que estabelece o uso do SNGPC por farmácias e drogarias para registro sobre medicamentos e insumos farmacêuticos. Como consequência, houve redução nos registros a partir de novembro de 2021.
Durante a coleta de dados, o mês de julho de 2020 estava faltando na base original. A reportagem entrou em contato com assessoria de imprensa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e enviou notificação sobre o erro por meio do Portal de Dados Abertos, mas não foi feita alteração até a última consulta.
Os princípios ativos classificados como benzodiazepínicos foram selecionados a partir do livro "Farmacologia Ilustrada" e de lista disponível neste trabalho acadêmico. Também foram consultadas as lista de medicamentos de referência da Anvisa.