Logo O POVO+
Decifre as simbologias do Carnaval de rua de Fortaleza
Reportagem Especial

Decifre as simbologias do Carnaval de rua de Fortaleza

O que faz um Carnaval? Carnavalescos e pesquisadores destrincham a história do Carnaval fortalezense e debatem a identidade da festividade na Capital

Decifre as simbologias do Carnaval de rua de Fortaleza

O que faz um Carnaval? Carnavalescos e pesquisadores destrincham a história do Carnaval fortalezense e debatem a identidade da festividade na Capital
Tipo Notícia Por

 

 

"No Carnaval, a cidade toda é um agito/ É uma alegria, é geral/ No riso, no beijo e no grito/ Nos blocos de Carnaval". Quem canta a letra de "Serpentina" nos momentos de folia que acontecem em Fortaleza sabe bem como é acompanhar o ritmo do Luxo da Aldeia, bloco presente no período carnavalesco há mais de 15 anos. Os versos condensam uma das inúmeras representações da história do Carnaval na Capital, que também perpassa por tradições como maracatus e escolas de samba.

Elba Ramalho e Geraldo Azevedo estão entre as atrações da festa de carnaval de Fortaleza(Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Elba Ramalho e Geraldo Azevedo estão entre as atrações da festa de carnaval de Fortaleza

Após dois anos sem festividade, o ciclo carnavalesco de 2023 recebe como atrações principais os nomes de Katia Cilene, Elba Ramalho, Zeca Baleiro, Geraldo Azevedo, Roberta Campos, Limão com Mel e Seu Jorge. A escolha divulgada pela Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) gerou questionamentos por parte do público e dos demais artistas que compõem o ciclo carnavalesco. Em uma sequência de tweets publicada no dia 9 de fevereiro, o sociólogo e guitarrista do Luxo da Aldeia Mateus Perdigão, contestou que "o Pré-Carnaval e o Carnaval de Fortaleza estão se tornando um grande festival de música sem conceito, com pouca ou nenhuma ligação com as manifestações carnavalescas".

Em entrevista ao Vida&Arte, o artista compartilhou que a fala busca trazer uma reflexão sobre o significado da festa para aqueles que produzem e brincam o Carnaval. "Quando eu falo de artistas e atrações que não tem a ver com o Carnaval, não é uma crítica ao trabalho deles, mas à ideia que está ganhando força que tudo cabe no Carnaval, que por ser uma festa livre, tudo pode. Essa liberdade tem uma característica muito própria", opina.

Ele aponta que é necessário a compreensão de que a celebração tem ritos e significados únicos, que transmitem uma "sensação de pertencimento a um determinado corpo, um determinado local, uma determinada estética".

Mateus e Bruno Perdigão, integrantes do bloco Luxo da Aldeia(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Mateus e Bruno Perdigão, integrantes do bloco Luxo da Aldeia

Quando fala sobre o modelo de Carnaval que deseja para a Cidade, Mateus complementa que é preciso alcançar um diálogo contínuo entre os blocos e as distintas esferas do poder público. "Não é só farra e bebida, é cultura. A festa não está dissociada da realidade da Cidade, é uma lupa de aumento de tudo que acontece. As pessoas deixam de ir apenas nos shoppings e restaurantes para ocupar os lugares por meio de um ritual que acontece uma vez por ano. Quando você traz essas atrações principais que não tem muito a ver com o Carnaval, você perde o que faz da festa aquilo singular, único".

Desfile do Maracatu Vozes da África na avenida Domingos Olímpio, em 2005, ano que marcou a mudança do carnaval de rua de Fortaleza(Foto: Arquivo O POVO)
Foto: Arquivo O POVO Desfile do Maracatu Vozes da África na avenida Domingos Olímpio, em 2005, ano que marcou a mudança do carnaval de rua de Fortaleza

O sociólogo detalha que, atualmente, se desenham dois exemplos de festa. Um, mais tradicional, é formado pelas agremiações que desfilam na Domingos Olímpio. O segundo é encabeçado pelos blocos que se concentram em lugares representativos da Cidade, como as praças. Estes modelos ganharam força e propagação a partir do mandato de Luizianne Lins como prefeita entre 2005 e 2012, intervalo de criação dos editais destinados ao Pré-Carnaval e Carnaval de Fortaleza.

"Esse período tem algumas coisas que são importantes. Primeiro, uma grande mudança de governo que permitiu que políticas públicas para a cultura ganhassem mais força. Acredito que esses últimos vinte a quinze anos foram uma tentativa de reescrever o Pré-Carnaval e o Carnaval de Fortaleza. Quando Luizianne lança o edital é que começa a popularizar e aumentar novamente o número de blocos, isso foi servindo de incentivo", contextualiza Mateus.

Luxo da Aldeia integra Ciclo Carnavalesco de Fortaleza com apresentações no Aterro da Praia de Iracema(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Luxo da Aldeia integra Ciclo Carnavalesco de Fortaleza com apresentações no Aterro da Praia de Iracema

O planejamento destas publicações segue vigente em um formato similar, agora dividido entre o Edital de Concessão de Apoio Financeiro ao Desfile das Agremiações Carnavalescas na Avenida Domingos Olímpio de Fortaleza, Edital de Concessão de Apoio Financeiro aos Blocos de Rua Independentes do Ciclo Carnavalesco de Fortaleza e Edital de Credenciamento de Atrações Artísticas com Temáticas Especiais para Apresentações no Ciclo Carnavalesco.

Para consolidar o movimento "forte e brincante" local, Perdigão indica algumas outras medidas que podem ser adotadas. "Seria interessante a gente ter um enredo das músicas que os blocos daqui cantam, bancos de partituras para a gente saber e investir um pouco na formação de músicos. Nós temos poucos músicos de sopro, por exemplo, para a gente se apresentar como no Recife, caminhando", exemplifica.

Para o guitarrista, a expectativa era que o Carnaval fosse "a grande festa redentora de 2023". Após atraso nos recursos destinados aos artistas do ciclo e na divulgação da programação oficial, Mateus pede mais escuta por parte dos órgãos. "É bom a gente perceber essa continuidade (dos editais), mas precisa ainda de mais cuidado. Uma das formas que pode facilitar a organização dessa festa é ouvindo os próprios blocos, entendendo as demandas, visões, dificuldades e necessidades. Este diálogo que eu falo é o diálogo não unilateral. É discutir mesmo, chamar outros movimentos para pensar o Carnaval de Fortaleza. Seria muito interessante, por exemplo, a gente fazer uma avaliação. É fundamental. Entra gestão, muda gestão, mas o conhecimento da festa está com quem faz os blocos e o papel do poder público é entender quais são as demandas”.

 

 

No batuque do samba

Presidente-fundador do bloco Unidos da Cachorra, Gildo Moreira acompanhou as mudanças do festejo na Cidade. Ele integrava o bloco "Porra da Cachorra" em meados de 1998, quando o batuque era realizado na porta de casa, logo na rua Marechal Deodoro, no Benfica. "O bairro sempre foi um bairro poético, da boemia, muito familiar. Quando a Porra da Cachorra acabou em 2000, me chamaram para que eu desse continuidade a esse referido bloco. Eu disse que ia fazer em estilo de bateria", relembra.

Unidos da Cachorra comemora 20 anos de Carnaval de rua em 2023(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Unidos da Cachorra comemora 20 anos de Carnaval de rua em 2023

Então nasceu, em 2002, o bloco Unidos da Cachorra. O nome faz referência ao apelido de "Rua da Cachorra Magra" da localidade, criado em alusão à uma cadela que habitava a região. "As pessoas chegavam junto da gente com o intuito de dar continuidade à brincadeira sadia, familiar, vinham com aquela vontade de ajudar. Nasceu na raça, na vontade". Para Gildo, a simbologia do Carnaval reside na tradição dos 250 ritmistas que compõem a bateria e conectam a pluralidade da festa. "Nós temos que mostrar nossa qualidade, o que fizemos esse ano todo para esse povão que nos segue. Toda vez que rufam os tambores eu fico emocionado, me arrepio todinho. São vinte anos de prazer que eu tenho nessa bateria. Nós também temos outros tipos de ritmos musicais que tocam a música da própria Cidade ou outros ritmos diferentes. Tem Pré-Carnaval e Carnaval para todos os gostos. A tendência é permanecer e aumentar ainda mais", considera.

 

 

Ritmo em 2023

 

Para chegar até a festa local em 2023, é válido delimitar décadas passadas. De acordo com o historiador, jornalista e pesquisador Nirez, o Carnaval começou a crescer nos anos 1920 com a criação de blocos de rua. "Tomou forma mesmo na década de 1930, quando surgiu o bloco "Prova de Fogo", que reunia os principais músicos da terra e tinha Lauro Maia e Aleardo Freitas como compositores", destaca. A época de ouro foi em 1940, com o surgimento dos maracatus. Já em 1966, o cearense Sérgio Pires trouxe a inspiração das baterias das escolas de samba.

"Influenciou o então secretário da cultura do município Matos Dourado a mudar o nosso Carnaval. Trouxe uma cópia de um regulamento das escolas de samba do Rio e este foi integralmente colocado como regra. Os prêmios que tínhamos para composições, baliza, orquestras, etc, foram introduzidos à comissão de frente, porta estandarte, adereços e bateria que nenhum bloco tinha", acrescenta.

 Ivonilo Praciano, jornalista, foi um dos impulsionadores do carnaval de rua de Fortaleza (Foto: ETHI ARCANJO)
Foto: ETHI ARCANJO Ivonilo Praciano, jornalista, foi um dos impulsionadores do carnaval de rua de Fortaleza

Já nos anos 1980 e 1990, os percursos carnavalescos alcançaram bairros como o Benfica com bandas como a Bandalheira, criada em 1991 pelos jornalistas Ivonilo Praciano, Emília Augusta e Fernando Ribeiro. Logo depois deste período, começou a ser propagado um discurso de que o fortalezense não gostava da folia, causando distanciamento das festas oficiais. O movimento só veio ganhar força novamente a partir do início dos anos 2000, no mandato de Luizianne. Em 2023, o ciclo carnavalesco traz o tema "Massafeira, no ritmo dos reencontros".

A decisão homenageia o movimento musical e artístico que se consolidou em evento realizado em março de 1979 no Theatro José de Alencar. A efeméride também originou um disco com participações de artistas como Ednardo, Fagner, Mona Gadelha e Calé Alencar. Outros homenageados são o multi-instrumentista Tarcísio Sardinha e o artesão carnavalesco Seu Néris.

Disco Massafeira Livre(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Disco Massafeira Livre

"O tema Massafeira foi pensado porque é um movimento importante para nós cearenses brasileiros. Também para apresentar esse tema para a nova geração. A gente vai perguntando pra meninada o que é Massafeira e a gente vê que ninguém sabe. Foi um movimento social, musical e político muito importante pra gente. Como fez cinquenta anos durante a pandemia, a gente viu que era necessário trazer de volta”, detalha Graça Martins, gerente da célula de Patrimônio Imaterial da Secultfor.

Ela reforça que, dentre as manifestações carnavalescas, o maracatu guarda o título de Patrimônio Imaterial e detém de plano de salvaguarda. Graça também sinaliza que os polos e as atividades são "gratuitos, acessíveis a todas as pessoas independentes de raça, gênero, crença e cor".

 

 

Nas trincheiras da alegria

 

A Praça Waldemar Falcão, localizada no Centro de Fortaleza, se tornou um dos pontos de encontros carnavalescos. A área ganha outros ares quando recebe o bloco de Pré-Carnaval Para Quem Gosta É Bom (PQGEB). O local ganha volume, cor e purpurina com os "gostantes" - como são chamados os foliões que acompanham o conjunto desde 2017. Neste ano, eles levaram o tema "Nas Trincheiras da Alegria o Que Explodia Era o Amor" em apresentações que aconteceram até o último domingo, 12.

O repertório, composto por artistas da Música Popular Brasileira (MPB), também entoou homenagens à Gal Costa. "A gente nasce da vontade de fazer um Carnaval de rua, gratuito, muito genuíno. Somos um grupo de amigos que já tocamos em outros blocos, como o Baqueta, Cachorras, Caravana Cultural. A gente entendeu que precisava fazer algo que fosse novo para a Cidade, para a galera poder curtir e vivenciar outra opção", explica o vocalista Marcos Romano.

Bloco de Pré-Carnaval Pra Quem Gosta É Bom (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Bloco de Pré-Carnaval Pra Quem Gosta É Bom

O público esperou ansiosamente para que a agrupação pudesse, após dois anos de restrição, tomar novamente as ruas. Em cima do palco, os integrantes Debora Saraiva, Eduardo Augusto, Ercília Lima, Erlon Barbosa, Eustáquio Nego, Ítalo Cordeiro, Julyta Albuquerque, Lia Moura, Marcos Romano, Raquel Leite, Rodolfo Ricardo, Romário Oliveira e Teresa Monteiro, além da rainha e porta-estandarte Laizi, dão vazão à alegria dos espectadores. "A gente gosta muito de trazer a proposta do novo junto com o repertório já tradicional de música brasileira, com novos artistas, a galera que está trazendo um novo movimento inclusive político. A gente simplesmente foi entendendo o que nós tínhamos que explorar e a gente tem tentado casar os temas que nós trazemos para a estética, para trazer a melhor experiência", acrescenta.

Pela música, o bloco busca reafirmar os ideais políticos presentes no Carnaval. "A gente sempre ratifica o nosso posicionamento de apoio aos movimentos sociais. Não subir no palco só para tocar, mas sempre deixando claro aquilo que a gente quer. Esse ano a gente apoia as causas LGBTQIA+ e as pessoas que estão em situação de rua. A tendência é que a gente se insira cada vez, que a gente abranja, que a gente inclua", arremata Marcos.

Foliões no bloco Pra Quem Gosta É Bom no último domingo, 12(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Foliões no bloco Pra Quem Gosta É Bom no último domingo, 12

 

 

 

Ponto de vista

Em defesa do "Nosso Carnaval"

Por Nirez*

 

Nirez, jornalista e pesquisador (Foto: Rodrigo Carvalho)
Foto: Rodrigo Carvalho Nirez, jornalista e pesquisador

O Carnaval no Ceará sempre foi muito fraco e na imprensa local era pouco citado exatamente por isto. Na década de 1920 ele começou a ser melhor por conta da criação de blocos de rua - até então o carnaval tinha blocos de clubes - liderados por intelectuais como Edigar de Alencar, o poeta Teixeirinha, mas tomou forma mesmo na década de 1930 quando surgiu o bloco "Prova de Fogo", que reunia os principais músicos da terra e tinha Lauro Maia e Aleardo Freitas como compositores. A partir daí foram-se organizando-se outros blocos.

A exemplo das escolas de samba do Rio de Janeiro, que na época eram bem diferentes das atuais, pois tinham conjuntos musicais a canções próprias com sambas românticos, aqui surgiu a Escola de Samba Lauro Maia que no tempo da Guerra, com a ida de Lauro para o Rio de Janeiro, mudou o nome para Escola de Samba Luiz Assunção. Na década de 1940 foi a época áurea do nosso carnaval, com dezenas de blocos e cordões e o surgimento dos maracatus. Tivemos o "Enverga Mas Não Quebra", "Garotos do Frevo", "Zombando da Lua", "Alfaiates Veteranos", Bando do Morro", "Caçadores da Floresta", "Cordão das Coca-Colas", "Foliões do Country Club", "Gang do Cemitério", "Marujos do Ritmo", "Meninas do Barulho", "Hawaianas da Orgia", "As Baianas", "Nós Semo do Amô", "Piratas do Ar", "Turma do Camarão", "Bloco dos Carpinteiros", Maracatu Às de Ouro", “Maracatu Rei de Paus", "Maracatu Leão Coroado", "Maracatu Estrela Brilhante", etc.

Todos os blocos de Fortaleza formavam em bloco de brincantes tendo à frente uma balisa e atrás a orquestra com músicas próprias de seus compositores. Era um Carnaval característico como não existia em outro lugar. Mas um dia, em 1966, um estudante chamado Sérgio Pires, cearense no Rio de Janeiro, apaixonou-se pelas baterias das escolas de samba e como jornalista influenciou o então secretário de cultura do município Matos Dourado a mudar o nosso Carnaval. Trouxe uma cópia de um regulamento das escolas de samba do Rio e este foi integralmente colocado como regra para o nosso Carnaval. Os prêmios que tínhamos para composições, balisa, orquestras, etc. foram alijados e foram introduzidos outros alienígenas como comissão de frente, porta estandarte, adereços, bateria que nenhum bloco nosso tinha.

Pré-Carnaval Mocinha é uma das movimentações da folia fortalezense (Foto: Samuel Setubal/ Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/ Especial para O Povo Pré-Carnaval Mocinha é uma das movimentações da folia fortalezense

E ainda foram trazidos indivíduos cariocas que formaram uma escola de samba para ganhar os prêmios. Descaracterizou-se assim nosso carnaval que a partir daí nunca mais conseguiu levantar-se. Ficamos como uma cópia tupiniquim do carnaval do Rio feito para turista, porque o verdadeiro carnaval da cidade do Rio de Janeiro não é aquele da Marquês de Sapucaí e sim o que desfila na Rio Branco. E morreu o nosso Carnaval.

Hoje, enquanto o Recife tem seu Carnaval e Salvador teu o seu Carnaval, nós, que poderíamos ter o nosso nada temos. E não apareceu nenhum secretário de cultura municipal que tivesse a coragem de revogar esse regulamento para que fizéssemos o nosso Carnaval. Agora já ficou muito distante e não existe mais quem conheceu nosso Carnaval.

*Nirez, é jornalista, historiador e pesquisador 

O que você achou desse conteúdo?