A plataforma Google Trends, que mapeia tendências de pesquisas dos usuários no Brasil e no mundo, revela: entre os últimos 12 meses, as buscas em território nacional pelo termo “filmes tristes” no Google aumentaram consideravelmente entre o meio e o final de fevereiro. O pico da pesquisa no período, porém, se deu entre os dias 30 de outubro e 5 de novembro. Já “músicas tristes” teve, levando em conta o mesmo recorte temporal de 12 meses, a segunda maior alta no início de fevereiro, tendo baixa considerável no final do mês.
A ferramenta concretiza em números um fenômeno que independe de tendências e tem relação, na verdade, com algo bastante primordial do ser humano: a busca por produções que mobilizem emoções como tristeza, solidão e melancolia. Das músicas de sofrência de ontem e de hoje — do brega ao piseiro — às diversas páginas nas redes sociais que fazem humor com as “bads” e “sofrências” da vida, passando pelas exitosas listas de filmes e séries “para chorar”, o cardápio de conteúdos do tipo é não somente vasto, mas popular. Para refletir sobre criação e consumo da “produção cultural da tristeza”, o Vida&Arte buscou especialistas da arte e da psicologia.
Como define a psicóloga e terapeuta sexual Zenilce Bruno, também colunista do O POVO, tristeza é uma emoção “típica” e “básica” dos seres humanos. “Ela vem junto com a felicidade, a raiva, a surpresa, o medo, o nojo, o desprezo… São sensações e sentimentos peculiares do ser humano”, aponta a especialista. “Ela pode se apresentar em diferentes graus de intensidade, desde a tristeza passageira à profunda, e dar sinal de problemas mais complexos”, segue.
O teor que o sentimento carrega em si é, majoritariamente, visto como negativo. “A tristeza é uma emoção dolorosa”, reconhece a psicóloga, “mas ela tem um propósito específico em nossa vida emocional que é chamar a atenção para um evento emocionalmente importante”, destrincha.
Apesar da carga negativa, é comum que muitas pessoas busquem obras de arte e conteúdos virtuais que sejam marcados pelo sentimento. Essa pode, como explica o psicanalista e roteirista Mauro Reis Albuquerque, ser uma forma de não apenas se aproximar da tristeza, mas também expressá-la.
Os efeitos do consumo de produções do tipo nas pessoas, destaca Mauro, não são, hoje, bem definidos nem passíveis de uma definição tão precisa. Isso por conta da subjetividade inerente à fruição artística. “Cada pessoa que apreciar uma obra vai fazer da própria forma e produzir efeitos subjetivos pessoais”, ressalta.
Mauro aponta, porém, que a psicanálise reconhece uma série de efeitos possíveis que uma obra pode despertar, como a catarse. Esse processo advém, inicialmente, de uma identificação daquela pessoa que aprecia com uma produção. “Se o personagem está passando por uma dificuldade e começa a chorar, expressar essa tristeza, a pessoa, por se ver numa situação em comum com ele, vai poder sentir e expressar o que está percebendo”, explica.
“Outro fenômeno que a gente observa muito na clínica, por exemplo, é que a pessoa está sentindo uma angústia, uma situação ou um afeto difícil de expressar e, para possibilitar a expressão no campo da fala, cita uma obra de arte”, ilustra. Neste sentido, a obra “dá o recurso simbólico para que ela possa expressar e elaborar o que está sentindo e a experiência pela qual passou através desse objeto cultural”.
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As possibilidades advindas da apreciação de uma obra, porém, não se encerram nos exemplos compartilhados, afirma o psicanalista, que reforça que elas estão “no campo singular, no modo como cada um apreende as obras com as quais tem contato”. “Até porque a apreciação de uma obra também vai ser determinada por fatores sócio-históricos e culturais”, lembra.
Apesar das redes sociais serem vistas como espaços de “vitrines” das conquistas, elas também acolhem diferentes expressões de “fracasso” e “perrengues”. Alguns perfis, inclusive, fazem graça de experiências e sentimentos de solidão, tristeza e problemas.
No nosso contexto sócio-histórico e cultural, é impossível fugir do peso que não apenas as redes sociais, mas o superestímulo ao consumo de conteúdos, têm nos processos emocionais e íntimos. No universo de posts do Instagram, por exemplo, plataforma que funciona como espécie de “vitrine do êxito”, é possível que o consumo de conteúdos de influenciadores e blogueiros tenha facetas complexas.
“Cada produtor de conteúdo faz o seu trabalho e produção de acordo com o público que está buscando atingir. Existem muitos que pintam essa vida perfeita e de muito sucesso que o público costuma seguir porque admira, porque gostaria de ter uma vida aparentemente tão bem sucedida”, aponta Mauro. “Ver na realidade do outro — que muitas vezes não é real, vale salientar — essa exploração de beleza, alegria, felicidade faz com que haja a tristeza do fracasso, da frustração”, dialoga Zenilce.
Subvertendo a lógica do compartilhamento de sucessos, alguns perfis e páginas em diferentes redes, do Instagram ao Twitter, se notabilizam justamente por dividirem e até fazerem graça com experiências negativas. Na avaliação de Zenilce, esse tipo de consumo pode ser algo negativo por se aproximar da autodepreciação.
Já Mauro pondera que essa abordagem é marcada pela identificação de usuários que “estão buscando perfis com histórias mais parecidas com a própria”. “Quando perfis demonstram mais os problemas da vida cotidiana, as dificuldades, as formas de lidar isso, pode ser mais interessante para pessoas que estão buscando um conteúdo, vamos dizer, que pareça ‘menos editado’ — ainda que o próprio enquadramento da rede social já exija certa forma de edição”, reflete.
A artista visual Beatriz Gurgel — que tem, entre as obras da trajetória, a série “Às vezes o monstro me come, às vezes o monstro sou eu”, composta por autorretratos que exploram “monstrinhos” que vivem dentro de nós, como a tristeza — também enxerga os dois movimentos no consumo de publicações nas redes sociais.
“É importante a gente dar vazão e olhar para essas coisas, se sentir representado e conseguir entender algo que a gente sente, de repente, vendo uma tirinha de outra pessoa ou quando escuta o outro falar sobre a desgraça dele. A gente pensa que só a gente sente, mas vê que tem outras pessoas sentindo e isso em alguma medida ameniza a dor”, reconhece.
Por outro lado, numa perspectiva mais “pessimista”, Beatriz reconhece que isso pode recair em “estar sempre consumindo conteúdos negativos”, o que “pode não ser tão proveitoso”. A artista relaciona a questão com a própria produção artística. Além da obra citada, atualmente em cartaz na exposição “Reflorestamentos”, do Museu da Arte do Dragão, Beatriz leva os “monstrinhos” para as ruas em série de lambe-lambes. “É com tinta guache, de um jeito que é quase uma brincadeira para mim porque estou tentando tornar lúdico esse processo de acessar as emoções”, explica.
“Quando penso no meu trabalho, penso em trazer esses monstrinhos de forma lúdica, num desenho simples, numa pintura colorida, porque acho que isso não precisa necessariamente ser numa perspectiva pessimista. Pode ser numa perspectiva de acolher, ressignificar, trabalhar”, reflete.
Aprofundando os significados dos “monstrinhos”, Beatriz define: “São as coisas que moram dentro da gente e que às vezes a gente não quer olhar e não gosta: tristeza, solidão, raiva, inveja. Particularmente, tenho dificuldade em me permitir acessar e viver essas coisas. Minha produção artística vai no sentido de encará-las mais de frente. A gente precisa olhar para todas essas coisas porque, senão, elas vão se tornando cada vez maiores”, compartilha.
Entre os efeitos do consumo de obras e conteúdos que mobilizam a tristeza, como visto, está a possibilidade de se aproximar dos próprios sentimentos. Essa aproximação é, em si, importante para o desenvolvimento das próprias questões e emoções.
“A tristeza nos convida a sentir empatia pela dor alheia, o que é fundamental para a construção da comunidade, do social, do ser humano”, aponta a psicóloga Zenilce Bruno. “A primeira coisa a saber quando a gente está lidando com a tristeza é que ela é uma emoção natural e necessária e que, normalmente, a gente deve ser capaz de passar por ela”, segue.
Em diálogo, o psicanalista Mauro Reis Albuquerque cita o mecanismo de defesa do recalque, um dos conceitos centrais da psicanálise, descrito pelo especialista como “uma forma do sujeito lidar com ideias e sentimentos desagradáveis, desprazerosos, para que ele não seja tomado e se encerre completamente neles”.
“É um mecanismo que tenta fazer com que o sujeito esqueça, conscientemente pelo menos, das ideias que são desprazerosas. Isso permite que o afeto que estava associado a elas se manifeste associado a outras ideias e até de outras formas. É um mecanismo importante, mas que também falha”, aponta. “A gente não tem a opção de não lidar com as coisas, infelizmente, porque ou a gente lida diretamente ou vive sob essa forma disfarçada e nem sempre pode deliberar conscientemente de que forma vai lidar”, avança.
“Partindo desse pressuposto que não se pode evitar completamente lidar com a tristeza, cada sujeito vai precisar encontrar o próprio equilíbrio de como lidar com essas situações. Alguns conseguem recalcar mais e viver bem com isso, outros ficam lidando com esses retornos do recalcado de forma que traz sofrimento e outras pessoas conseguem lidar ‘encarando de frente’, vamos dizer assim”, exemplifica.
Ressaltando que não cabe a qualquer profissional definir como alguém vai lidar com o próprio sentimento — “porque cada sujeito é único e, portanto, cada maneira de lidar também vai ser singular” —, Mauro compartilha que o tratamento para a falha do recalque proposto pela psicanálise é a fala.
“A partir da fala, as ideias se associam de maneiras muitas vezes surpreendentes e isso acaba desvelando aspectos que a gente não estava ciente que estavam conectados. O que é desagradável é passível de tratamento parcial a partir da palavra, da fala”, avança.
A importância do compartilhamento pela palavra é ecoada por Zenilce. “A tristeza é uma das emoções mais fortes porque ela sinaliza, pode provocar a empatia e o cuidado dos outros. Não há maneira de comunicar nossas necessidades de apoio e cuidado como expressar nossa tristeza. Não é estimular a pessoa a sofrer e ficar triste, mas sim estimular que ela coloque essa emoção pra fora. Dividir a tristeza, falar com o outro o que está acontecendo, pode melhorar muito”, defende.
Diversas séries e filmes despontam para o sucesso muito por conta do fator emocional. Confira uma seleção de obras recentes reconhecidas por arrancar lágrimas de quem assiste.
“Essa via que a psicanálise propõe não está restrita a ela, a fala é um fenômeno básico humano. A psicanálise é um dos espaços em que é possível falar, e falar de determinada maneira, mas os sujeitos encontram cada um também a própria forma de falar, isso é importante”, elabora Mauro.
“Além da fala, existem também outras formas de lidar para cada pessoa. Tem gente que consegue canalizar de forma criativa, tem gente que consegue utilizar obras de arte como forma de ter a catarse, enfim, cada sujeito vai lidar da sua maneira. O importante é saber que existem muitas maneiras de se lidar com isso e que, portanto, ninguém está restrito a poucas possibilidades”, finaliza o psicanalista.
Das paradas virais às playlists de sucesso em plataformas, a tristeza é tema e inspiração para artistas de vários gêneros e gerações.