Não é incomum ouvir que o ronco é sinal de um sono bem dormido. Entretanto, essa falsa noção desvia a atenção de um problema que pode afetar todo o organismo: a apneia do sono.
A Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (Saos) é um distúrbio que se caracteriza pela parada intermitente da respiração durante todas as fases do sono — especialmente durante o seu último estágio, no qual acontecem os sonhos. A Saos é mais comum entre os homens e pode ser desencadeada por obesidade durante o envelhecimento.
O distúrbio, considerado um problema de saúde pública, está associado a doenças cardiovasculares como insuficiência cardíaca e hipertensão. De acordo com Erika Treptow, médica e pesquisadora do Instituto do Sono, a obstrução das vias aéreas superiores durante o sono, que causa essas pausas momentâneas na respiração, tem consequências principalmente no coração e no cérebro.
A doença também pode ter raízes genéticas por ter relação com a anatomia de cada um e como a gordura está localizada no corpo. Acúmulo da adiposidade, aumento das amígdalas e alterações musculares podem levar ao fechamento das vias aéreas e ocasionar a apneia.
Além do característico ronco, pessoas com Saos também podem apresentar pausas respiratórias e ter o sono prejudicado. Por conta das interrupções frequentes na qualidade do dormir, pacientes também podem perceber sonolência durante o dia e é comum acordarem com a boca seca e a garganta dolorida.
De acordo com Erika, “queixas como dificuldade de concentração, perda de memória e irritabilidade também são frequentes em quem tem apneia do sono”. Ela lembra, também, que a má qualidade do sono pode resultar em mais acidentes de trabalho e de trânsito. A apneia pode ocasionar morte em casos raros, geralmente em crianças.
O distúrbio por ser diagnosticado através de polissonografia, um exame indolor e não invasivo que deve ser solicitado por médicos de diferentes especialidades como neurologistas, otorrinolaringologistas, entre outros. Para isso, o paciente passa a noite conectado a sensores para que seu sono seja monitorado por profissionais.
Diante do diagnóstico, há muitos tratamentos possíveis para a apneia do sono. Segundo Erika, em alguns casos basta que o paciente troque a posição em que ele costuma dormir. Fonoterapia também pode ser uma resposta para o problema, assim como o uso de aparelho intraoral e de pressão positiva (Cpap).
No caso do psicólogo Célio Freire, de 65 anos, foi esse o tratamento indicado após o diagnóstico de apneia. Há cerca de dez anos, ele começou a sentir problemas de sono, acordar muito à noite e ter jornadas mal dormidas. Após procurar um profissional e realizar a polissonografia, ele descobriu que tinha apneia grave e passou a utilizar o aparelho.
Ele conta que, inicialmente, “você passa por uma fase de adaptação, testa vários aparelhos, tipos de marcas diferentes, cada pessoa se adapta a um tipo diferente. Depois que você escolhe o aparelho, você tem que adquiri-lo e passar a usar todas as noites.”
No entanto, com o tempo o uso do Cpap se tornou tão natural quanto o de outro acessório. "Tem pessoas que não conseguem passar um minuto com o chapéu na cabeça. Mas eu sou acostumado,” compara. Célio relata que costuma também levar o aparelho até em viagens.
Passe o mouse ou clique nas imagens para ver os sintomas. Fonte: Erika Treptow, médica e pesquisadora do sono
Ronco
Pausas respiratórias durante o sono
Sensação de um sono não reparador e fragmentado
Sonolência excessiva diurna
Alterações do humor
Dificuldade de concentração e memória
O professor Gilmar Fernandes, que coordena a disciplina de neurologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que a apneia acontece durante o sono porque a musculatura do corpo relaxa enquanto dormimos — inclusive na região da garganta. Para quem sofre da síndrome, esse distensionamento provoca o fechamento da passagem de ar na garganta antes de chegar à traqueia. Segundo o professor, o músculo que mais acaba fechando a passagem do ar é a língua.
O ronco acontece quando a passagem do ar não é impedida por completo e passa pela úvula causando vibrações nestas regiões. “Com o passar do tempo, o fechamento vai ser tão grande que o ar não passa e o indivíduo para de roncar,” coloca Gilmar. Assim, é comum que as pessoas pensem erroneamente que, uma vez que o ronco para, o indivíduo estaria melhor.
Com a obstrução da passagem do ar, a quantidade de oxigênio do organismo tem uma redução. Ao mesmo tempo, o gás carbônico se acumula no corpo. Segundo Gilmar, “as consequências, pensando somente nessas duas coisas, são muitas.”
Quando o organismo percebe essa irregularidade, ele desperta e respira, levando à entrada de uma grande quantidade de oxigênio. “Esse fenômeno chama-se hipóxia intermitente, e isso é deletério (prejudicial) para o corpo, isso leva à produção de radicais livres, que são moléculas que atacam as membranas das células do corpo,” explica Fernandes.
Com a presença destes radicais livres, as células agredidas por eles produzem moléculas inflamatórias e estas inflamações prejudicam uma série de funções dentro do organismo. Além disso, a apneia do sono pode afetar células do sistema imunológico, aumentando a chance de infecções e de que células cancerígenas não sejam reconhecidas e degradadas.
No Ceará, o serviço de polissonografia é ofertado pela rede pública no Laboratório do Sono do Hospital Geral de Fortaleza (HGF). No ano passado, o equipamento — que observa e analisa anomalias no sono, como a apneia do sono —, realizou 548 atendimentos, um aumento de 40% em relação a 2021.
O equipamento tem seis quartos para exame, quatro atualmente em funcionamento, e realiza, em média, 20 polissonografias por semana.
O exame acontece no turno da noite, a partir das 19 horas até 6 da manhã. O primeiro passo para a realização da polissonografia é o preenchimento de um questionário para avaliar os hábitos e a rotina do paciente e, então, o profissional vai explicar como o exame vai ser realizado. A investigação pode ser supervisionada por um técnico em polissonografia ou um técnico de enfermagem com capacitação na área.
Em seguida, o exame é montado e os sensores são colocados em contato com o diferentes partes do corpo do paciente, um processo que dura entre 34 minutos. Finalmente, ele é direcionado ao quarto onde deve dormir por seis a oito horas para que seu sono possa ser examinado.
Neste período, são analisados o movimento ocular (eletro-oculograma), a atividade muscular (eletromiografia) e atividade cerebral (eletroencefalograma) do paciente, de forma que os médicos monitorem os diferentes estágios do sono. Também são avaliados fluxo respiratório, saturação de oxigênio, esforço respiratório e ritmo cardíaco. A partir dessas informações, o médico especializado pode diagnosticar a presença de distúrbios como apneia do sono.
Segundo o otorrinolaringologista Sérgio Tadeu Almeida, coordenador do Laboratório do Sono do HGF, além da polissonografia, em 2023 o hospital planeja começar a realizar também o teste das latências múltiplas do sono (TLMS), que pode diagnosticar sonolência excessiva diurna e narcolepsia. Para ele, diante da grande demanda de pessoas com distúrbios do sono — tanto no nível privado como no público —, o ideal seria que fossem ampliados os serviços ofertados e os locais que oferecem a possibilidade de fazer o exame.
Ele explica que, nos últimos 20 anos, as repercussões dos distúrbios do sono na qualidade de vida das pessoas passaram a ser mais notadas, assim como as consequências cardiovasculares de quem tem alguma dessas alterações.
“O indivíduo que tem insônia, ronco e apneia, acaba tendo uma maior chance de processos inflamatórios que podem predispor a hipertensão arterial, ou pressão alta, doenças coronarianas com maior risco de infarto, arritmia e AVC. Quando você identifica esses distúrbios e os trata, você consegue garantir uma maior qualidade de vida para o indivíduo e um desempenho das atividades, seja profissionais, de estudo, no decorrer do dia, como também evitar fatores de risco que possam desencadear doenças cardiovasculares,” coloca.
Casos de morte súbita ou desfalecimento em crianças podem estar associados à apneia. Quem garante é o professor de neurologia da Unifesp, Gilmar Fernandes. Em recém nascidos, por exemplo, isso pode acontecer pela falta de maturidade para dar comando para todos os movimentos necessários para o corpo. “Uma das possibilidades é de que ela (criança) não respirou, mesmo estando com uma taxa elevada de gás carbônico no corpo,” afirma.
Neste caso, trata-se de apneia central, que é motivada por questões neurológicas. O quadro é mais comum em crianças, mas pode também estar associado a doenças como a esclerose lateral amiotrófica (ELA). Além disso, é possível que o paciente tenha algum comprometimento do nervo que inerva a musculatura necessária para a passagem do ar ou que o próprio cérebro não dê o comando para que esses músculos façam a respiração.
Durante a infância é também comum que crianças sofram com apneia obstrutiva por estarem expostas a muitas infecções, provocando um aumento das amígdalas e da adenoide. Por volta dos 9 a 11 anos, as estruturas dos pequenos reduzem de tamanho e o ar passa com mais facilidade. O pesquisador alerta, no entanto, que, devido à passagem incorreta do ar durante a infância, nesta fase é possível que a cavidade oral não tenha se desenvolvido como deveria.
Segundo Gilmar, crianças com apneia do sono costumam apresentar dificuldade de controle de impulso, controle emocional e aprendizagem, podendo manifestar quadros ansiosos.
“Pensando na saúde pública, nós temos uma dificuldade muito grande de cuidado e atendimento dessas crianças com hipertrofia ou aumento desses órgãos linfoides, da amígdala e da adenoide. Nós temos uma fila muito grande de crianças aguardando fazer cirurgia, que seria um tratamento muito adequado para essa condição e que até impediria, no futuro, que o indivíduo viesse a ter apneia obstrutiva do sono,” explica.
Leve: 5 a 15 episódios por hora;
Moderado: 16 a 30 episódios por hora;
Grave: Acima de 30 episódios por horas.
Leve: 1 a 5 episódios por hora;
Moderado: 6 a 10 episódios por hora;
Grave: acima de 10 episódios por hora.