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"A pesquisa, sem um pesquisador, não existe": o impacto do reajuste para bolsistas do Ceará
Reportagem Especial

"A pesquisa, sem um pesquisador, não existe": o impacto do reajuste para bolsistas do Ceará

Levantamento do OP+ estima que cerca de R$ 3 milhões a mais por mês serão distribuídos entre 6.094 bolsistas de diferentes modalidades no Ceará após reajuste anunciado pelo Governo Federal em 27 de fevereiro de 2023

"A pesquisa, sem um pesquisador, não existe": o impacto do reajuste para bolsistas do Ceará

Levantamento do OP+ estima que cerca de R$ 3 milhões a mais por mês serão distribuídos entre 6.094 bolsistas de diferentes modalidades no Ceará após reajuste anunciado pelo Governo Federal em 27 de fevereiro de 2023
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Após anos sem reajuste, os valores das bolsas começaram a chegar com correção às contas de bolsistas de ensino, pesquisa e permanência no Brasil. Nas redes sociais, fotos de carrinhos de compras mais recheados e de utensílios de casa consertados sinalizam o impacto do aumento para quem depende dessa fonte de renda. Levantamento do O POVO+ estima que serão distribuídos R$ 3 milhões a mais por mês entre 6.094 bolsistas de diferentes modalidades e áreas do conhecimento só no Ceará após o reajuste anunciado pelo Governo Federal em fevereiro de 2023.

De aproximadamente R$ 6,7 milhões por mês, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) no Ceará vão passar a enviar ao Ceará R$ 9,7 milhões para custear os auxílios. Esse valor corresponde à remuneração — como um salário — de estudantes e pesquisadores que se dedicam à iniciação científica, à iniciação tecnológica, ao mestrado, ao doutorado e ao pós-doutorado, entre outras atividades custeadas pelas duas instituições.

 Governo Federal distribui R$ 3 milhões a mais por mês entre bolsistas CAPES e CNPq do Ceará

A graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Ceará (UFC) Nayara Braz, 21, é bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) e está na expectativa para receber o novo valor, 75% maior do que o anterior. Com o aumento de R$ 400 para R$ 700, as contas não vão mais ser pagas com o dinheiro contado. Vai sobrar algum dinheiro não para luxo, ela esclarece, mas para imprimir texto da faculdade, por exemplo.

"O que nós recebemos deveria dar para isso, mas acaba que dá apenas para o básico do básico, como energia, luz, internet, alimentação. E aí eu já espero muito por esse reajuste", afirma a estudante. Cursando atualmente o sétimo semestre, Nayara entrou na UFC no primeiro semestre de 2020. Desde então, já foi bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e, depois, bolsista de extensão, sempre recebendo o valor de R$ 400.

"Não podemos falar de moradia, lazer, alimentação e saúde sem dinheiro. Pesquisadores precisam ter dinheiro suficiente para se construírem enquanto seres humanos. A pesquisa, sem um pesquisador, não existe." — Nayara Braz

A pesquisa atual de Nayara trata da vivência de mulheres negras cotistas na Universidade. "Estamos trabalhando com aplicação de questionário, entrevista e queremos fazer análise de como estão essas políticas públicas, como essas mulheres cotistas estão vivenciando a universidade e se elas estão tendo realmente assistência pra continuar e concluir o curso", explica. 

Total de bolsistas no Ceará por instituição de fomento e modalidade da bolsa

A graduanda destaca que, além da importância pelo aspecto financeiro — para que os estudantes e pesquisadores mantenham-se alimentados, possam cuidar da saúde, manter a casa, comprar material de estudo etc. —, o reajuste é relevante pela autoestima intelectual. Para Nayara, assim como para colegas dela, sentir-se valorizada reacendeu a vontade de fazer Ciência.

FORTALEZA,CE, BRASIL, 01.04.2023: Nayara Braz, que concedeu entrevista para uma reportagem sobre o impacto do reajuste das bolsas de pesquisa CAPES e CNPQ para os bolsistas do Ceará.. (Foto: Aurélio Alves)(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES FORTALEZA,CE, BRASIL, 01.04.2023: Nayara Braz, que concedeu entrevista para uma reportagem sobre o impacto do reajuste das bolsas de pesquisa CAPES e CNPQ para os bolsistas do Ceará.. (Foto: Aurélio Alves)

"Vivemos em tempos de negação muito forte da Ciência em que ser cientista é sofrer ataques cotidianos. Quando você sofre ataques cotidianamente da sociedade e ainda recebe muito pouco para fazer isso, você questiona muito o seu lugar", afirma. "'Se a sociedade não não valoriza a Ciência, se o governo não valoriza a Ciência, por que eu vou continuar aqui', sabe? Então, esse reajuste nos impulsiona a querer continuar."

 Valores antigos e novos valores por modalidade de bolsa


Impactos de cortes de verbas

A remuneração paga aos pesquisadores tem repercussão na qualidade do trabalho que eles conseguem executar e no quanto eles conseguem se dedicar aos projetos. Isso porque, ganhando pouco, eles acabam precisando encontrar outros meios de ganhar dinheiro e complementar a renda.

É também o valor da bolsa que permite a participação em eventos, custeando inscrição e viagem, destaca a mestre em Matemática Luiza Lima, 40. Professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Luiza é bolsista como professora formadora da Universidade Aberta do Brasil (UAB) desde 2017.

Mestre em Matemática, Luiza Lima, 40, é professora universitária e bolsista como professora formadora da Universidade Aberta do Brasil (UAB)(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Mestre em Matemática, Luiza Lima, 40, é professora universitária e bolsista como professora formadora da Universidade Aberta do Brasil (UAB)

Os diversos cortes no orçamento voltado para a Ciência e a Pesquisa nos últimos anos tiveram impacto sobre o projeto em que Luiza é bolsista. Ela explica que a iniciativa busca ampliar e interiorizar a oferta de cursos e programas de educação superior por meio da educação a distância.

"A prioridade é oferecer formação inicial a professores em efetivo exercício na educação básica pública, que ainda não têm graduação, além de formação continuada àqueles já graduados", afirma.

Ela conta que antes do início da pandemia de Covid-19 ocorriam dois ou três encontros presenciais por semestre. Durante o lockdown, todos foram online, e, com a retomada das atividades presenciais, a verba passou a permitir apenas uma viagem por semestre.

A docente destaca a contribuição das pesquisas científicas para o desenvolvimento e para a qualidade de vida da população. "Portanto, é de extrema importância permitir que estudantes e pesquisadores possam dedicar-se exclusivamente à Ciência, além de ter acesso a equipamentos e materiais adequados", defende.

 

 

"O reajuste não é uma pauta corporativista"

 

Há uma década, a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) lutava pelo reajuste das bolsas para os pós-graduandos de todo o País. A desvalorização já estava chegando a 75%, segundo o atual presidente da entidade, Vinícius Soares, doutorando da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o anúncio do aumento foi recebido com muito entusiasmo.

Vinícius Soares, doutorando da UFRJ e atual presidente da ANPG(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Vinícius Soares, doutorando da UFRJ e atual presidente da ANPG

"Entendemos que foi um processo muito grande de mobilização para chegar a esse momento, e também foi muito simbólico, porque foi a primeira vez que um presidente da República anunciou o reajuste das bolsas", diz Soares. Para ele, essa postura "coloca a Ciência nacional em outro patamar", referindo-se à diferença em relação ao governo de Jair Bolsonaro.

Soares também pontua que o reajuste das bolsas "têm feito muita diferença" para os pós-graduandos bolsistas — que são menos de 40% dos estudantes de mestrado e doutorado do País. Muitas dessas pessoas que dependem da bolsa de pesquisa estavam em situação de vulnerabilidade social e, para ele, o reajuste deve estar entre as estratégias para o combate à fome no País. "O reajuste não é uma pauta corporativista, é uma pauta de desenvolvimento nacional", defende.

A doutora em Educação Adriana Castro Araújo, professora da Especialização em Gestão Universitária, do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Gestão da Educação Superior e do Mestrado Profissional em Políticas Públicas e Gestão da UFC, destaca a importância do investimento em pesquisa por parte do governo, uma vez que elas são feitas a partir de conhecimento acumulado ao longo dos anos e que o retorno deve ser social, e não privado.

Para a docente, que é orientadora de Nayara Braz, é preciso que seja criada uma lei que não permita novos retrocessos no investimento em Ciência devido a mudanças de gestão federal a cada eleição. "Ao contrário, se possível que seja sempre agregado valor, porque a demanda nunca acaba. É um conhecimento inacabado por natureza. Estamos eternamente agregando conhecimento ao conhecimento que já foi construído", defende.

"O maior legado da humanidade é esse conhecimento acumulado historicamente. Nenhuma pesquisa é feita do nada, sempre nos apoiamos nas pesquisas feitas por outros pesquisadores há milhares de anos. Então, por que só alguns irão gozar das benesses da pesquisa científica? O retorno tem que ser da sociedade como um todo", afirma.

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Print da Lei Nº 11.487 i
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Reprodução/Governo Federal

Soares tem uma visão parecida sobre a necessidade de investimento constante. Questionado sobre as demais pautas levantadas pelaANPG atualmente, ele pontua a necessidade de criação e um mecanismo que garanta reajustes constantes. Outra necessidade é que os pesquisadores sejam vistos como trabalhadores e tenham direitos previdenciários. Ele explica que a pós-graduação já não tem mais sido tão atrativa para os jovens, que têm preferido seguir para o mercado de trabalho.

A fuga de cérebros, movimentos em que pesquisadores brasileiros procuram melhores condições de trabalho em outros países, também tem ocorrido em níveis regionais e preocupado a Associação Nacional de Pós-Graduandos. Os valores das bolsas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por exemplo, mais altos do que os valores nacionais, atraem pós-graduandos de outras regiões do País.

Nayara Braz também destaca a importância do investimento, por parte do Governo, em pesquisa. Apesar da crença do fazer intelectual como uma vocação, ela aponta que fazer pesquisa e ser cientista é um trabalho que necessita de ferramentas e, consequentemente, de dinheiro. Ela defende que, sem investimento em pesquisa e em quem a encabeça, ela não acontece.

"Até porque a Ciência não vai se fazer sozinha. Quem faz Ciência é um ser humano, é uma pessoa que tem necessidades financeiras, psicológicas, emocionais, estruturais e precisa estar assistida enquanto ser humano. Ela precisa estar com os seus direitos básicos assegurados".

 

O momento para a cobrança

Mas há bolsistas cearenses que não foram contemplados por reajustes, como estudantes e pesquisadores ligados a fundos estaduais. É o caso do graduando em Geografia pela Uece, Felipe Wellington, de 26 anos. Apesar de estados como Pará, Piauí, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais já terem concedido aumento no valor das bolsas, o Ceará não está nessa lista.

FORTALEZA, CEARÁ, 24-03-2023 : Felipe é estudante de Geografia, na UECE, e fala sobre o reajuste nas bolsas da CNPQ e CAPES. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS FORTALEZA, CEARÁ, 24-03-2023 : Felipe é estudante de Geografia, na UECE, e fala sobre o reajuste nas bolsas da CNPQ e CAPES. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

Após passar alguns meses da pandemia de Covid-19 sem o antigo emprego de operador de telemarketing, Felipe Wellington conseguiu uma bolsa como aluno de baixa renda. Atualmente, ele é bolsista pelo Programa de Bolsa Acadêmica de Inclusão Social (BSocial), da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), que utiliza recursos do Fundo Estadual de Combate à Pobreza (Fecop) "Entre os locais em que o aluno bolsista pode atuar estão grupos e laboratórios de estudo, de pesquisa e de ensino, projetos e atividades de extensão e atividades de gestão e administração." .

A pesquisa de Felipe é na área da Geografia Humana e busca entender as dinâmicas econômicas e os impactos sociais e imobiliários da implantação de areninhas na periferia de Fortaleza, em bairros como Mondubim, Janguruçu Barra do Ceará e Conjunto Ceará. Os equipamentos são implementados desde 2014 pela Prefeitura de Fortaleza para a requalificação de campos de futebol, que também são utilizados para outras finalidades.

Em 2 de março, a Secretaria da Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará (Secitece) e a Funcap publicaram uma nota informando que a possibilidade de reajuste das bolsas de pesquisa de Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Produtividade em Pesquisa, Estímulo à Interiorização e à Inovação Tecnológica (BPI), para que elas sejam equiparadas aos novos valores das bolsas federais, está sendo estudada.

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Fernanda Barros/ O Povo

"O momento é de austeridade para equilíbrio das contas públicas, de forma que medidas de impacto orçamentário ainda estão sob prudente análise", informa a nota. A publicação ainda informa que, em 2022, houve reajuste de 10,74% nos valores das bolsas estaduais, "quando na época não houve reajuste federal", e que foram criadas 200 novas bolsas concedidas, entre IC, mestrado e doutorado.

Em 2020, Felipe conta que ganhava R$ 400 e, com esse reajuste, passou a ganhar R$ 450. A diferença de valor em relação ao que agora é pago pelas instituições federais faz falta, principalmente porque o vínculo com a universidade é praticamente em regime de dedicação exclusiva. Além dos estudos, ele se dedica ao Centro Acadêmico (CA) do curso.

50,4% dos bolsistas do CNPq no Ceará são da Iniciação Científica

"Não adianta só estar na universidade de manhã, que no caso é o meu horário. Eu preciso ter mais tempo disponível e, se eu for me colocar para o mercado de trabalho e tentar conciliar com o estudo, muitas vezes eu não vou conseguir acompanhar o ritmo que é necessário. O reajuste é importante para termos condições mínimas de nos manter na universidade", diz.

Felipe aponta que o anúncio de reajuste das bolsas federais é um momento propício para a pauta sobre o reajuste das bolsas fornecidas pelos fundos estaduais seja levantada. "Entendemos que nos últimos anos já havia necessidade de reajuste, mas no governo Bolsonaro nós precisávamos lutar para não perder direitos", afirma.

Dessa forma, nos últimos anos a discussão sobre o reajuste acabou "sendo deixado para outro momento". "A briga maior era para manter o que tínhamos, para não haver corte no repasse das bolsas, pois havendo corte federal também poderia haver corte estadual", complementa.

Na divisão por grandes áreas do conhecimento, a Iniciação Científica representa entre 38% e 69% do total de bolsas concedidas pelo CNPq no Ceará

Segundo Vinícius Soares, presidente da ANPG, a associação tem se mobilizado para que os estados também reajustem as bolsas. Há cerca de um mês — aproximadamente quando a nota da Secitece e da Funcap foi emitida —, a entidade reuniu-se a Fundação cearense. "O diálogo foi muito bom, eles receberam a demanda muito bem. Disseram que estavam estudando", afirmou Soares, apesar de apontar que até o momento não houve encaminhamento para essa solicitação.

O POVO buscou a assessoria de imprensa da Funcap por e-mail nos dias 24 de março de 2023 e 3 de abril de 2023 para saber como estão os estudos sobre a possibilidade de reajuste, além de questionar se há previsão para que uma decisão sobre o tema seja tomada e anunciada. Em nenhuma das tentativas o contato foi retornado. 

 

 

Metodologia

Para esta análise, foram utilizados dados da base de Bolsas e Auxílios Pagos em 2022, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), informações fornecidas pela Coordenação Geral de Comunicação Social da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CGCOM/CAPES) e a tabela de reajustes apresentada pelo Governo Federal em 16/02/2023 durante o anúncio do aumento nos valores das bolsas de pós-graduação e iniciação científica no País.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual estão reunidos códigos e bases de dados produzidos para as publicações.

 

  • Edição Regina Ribeiro
  • Texto Gabriela Custódio
  • Recursos Digitais Gabriela Custódio
  • Análise de dados Alexandre Cajazeira
  • Recursos Visuais Cristiane Frota
  • Imagens Aurélio Alves, Fernanda Barros, Acervo Pessoal
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