Após anos sem reajuste, os valores das bolsas começaram a chegar com correção às contas de bolsistas de ensino, pesquisa e permanência no Brasil. Nas redes sociais, fotos de carrinhos de compras mais recheados e de utensílios de casa consertados sinalizam o impacto do aumento para quem depende dessa fonte de renda. Levantamento do O POVO+ estima que serão distribuídos R$ 3 milhões a mais por mês entre 6.094 bolsistas de diferentes modalidades e áreas do conhecimento só no Ceará após o reajuste anunciado pelo Governo Federal em fevereiro de 2023.
De aproximadamente R$ 6,7 milhões por mês, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) no Ceará vão passar a enviar ao Ceará R$ 9,7 milhões para custear os auxílios. Esse valor corresponde à remuneração — como um salário — de estudantes e pesquisadores que se dedicam à iniciação científica, à iniciação tecnológica, ao mestrado, ao doutorado e ao pós-doutorado, entre outras atividades custeadas pelas duas instituições.
Governo Federal distribui R$ 3 milhões a mais por mês entre bolsistas CAPES e CNPq do Ceará
A graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Ceará (UFC) Nayara Braz, 21, é bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) e está na expectativa para receber o novo valor, 75% maior do que o anterior. Com o aumento de R$ 400 para R$ 700, as contas não vão mais ser pagas com o dinheiro contado. Vai sobrar algum dinheiro não para luxo, ela esclarece, mas para imprimir texto da faculdade, por exemplo.
"O que nós recebemos deveria dar para isso, mas acaba que dá apenas para o básico do básico, como energia, luz, internet, alimentação. E aí eu já espero muito por esse reajuste", afirma a estudante. Cursando atualmente o sétimo semestre, Nayara entrou na UFC no primeiro semestre de 2020. Desde então, já foi bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e, depois, bolsista de extensão, sempre recebendo o valor de R$ 400.
"Não podemos falar de moradia, lazer, alimentação e saúde sem dinheiro. Pesquisadores precisam ter dinheiro suficiente para se construírem enquanto seres humanos. A pesquisa, sem um pesquisador, não existe." — Nayara Braz
A pesquisa atual de Nayara trata da vivência de mulheres negras cotistas na Universidade. "Estamos trabalhando com aplicação de questionário, entrevista e queremos fazer análise de como estão essas políticas públicas, como essas mulheres cotistas estão vivenciando a universidade e se elas estão tendo realmente assistência pra continuar e concluir o curso", explica.
Total de bolsistas no Ceará por instituição de fomento e modalidade da bolsa
A graduanda destaca que, além da importância pelo aspecto financeiro — para que os estudantes e pesquisadores mantenham-se alimentados, possam cuidar da saúde, manter a casa, comprar material de estudo etc. —, o reajuste é relevante pela autoestima intelectual. Para Nayara, assim como para colegas dela, sentir-se valorizada reacendeu a vontade de fazer Ciência.
"Vivemos em tempos de negação muito forte da Ciência em que ser cientista é sofrer ataques cotidianos. Quando você sofre ataques cotidianamente da sociedade e ainda recebe muito pouco para fazer isso, você questiona muito o seu lugar", afirma. "'Se a sociedade não não valoriza a Ciência, se o governo não valoriza a Ciência, por que eu vou continuar aqui', sabe? Então, esse reajuste nos impulsiona a querer continuar."
Valores antigos e novos valores por modalidade de bolsa
A remuneração paga aos pesquisadores tem repercussão na qualidade do trabalho que eles conseguem executar e no quanto eles conseguem se dedicar aos projetos. Isso porque, ganhando pouco, eles acabam precisando encontrar outros meios de ganhar dinheiro e complementar a renda.
É também o valor da bolsa que permite a participação em eventos, custeando inscrição e viagem, destaca a mestre em Matemática Luiza Lima, 40. Professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Luiza é bolsista como professora formadora da Universidade Aberta do Brasil (UAB) desde 2017.
Os diversos cortes no orçamento voltado para a Ciência e a Pesquisa nos últimos anos tiveram impacto sobre o projeto em que Luiza é bolsista. Ela explica que a iniciativa busca ampliar e interiorizar a oferta de cursos e programas de educação superior por meio da educação a distância.
"A prioridade é oferecer formação inicial a professores em efetivo exercício na educação básica pública, que ainda não têm graduação, além de formação continuada àqueles já graduados", afirma.
Ela conta que antes do início da pandemia de Covid-19 ocorriam dois ou três encontros presenciais por semestre. Durante o lockdown, todos foram online, e, com a retomada das atividades presenciais, a verba passou a permitir apenas uma viagem por semestre.
A docente destaca a contribuição das pesquisas científicas para o desenvolvimento e para a qualidade de vida da população. "Portanto, é de extrema importância permitir que estudantes e pesquisadores possam dedicar-se exclusivamente à Ciência, além de ter acesso a equipamentos e materiais adequados", defende.
Há uma década, a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) lutava pelo reajuste das bolsas para os pós-graduandos de todo o País. A desvalorização já estava chegando a 75%, segundo o atual presidente da entidade, Vinícius Soares, doutorando da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o anúncio do aumento foi recebido com muito entusiasmo.
"Entendemos que foi um processo muito grande de mobilização para chegar a esse momento, e também foi muito simbólico, porque foi a primeira vez que um presidente da República anunciou o reajuste das bolsas", diz Soares. Para ele, essa postura "coloca a Ciência nacional em outro patamar", referindo-se à diferença em relação ao governo de Jair Bolsonaro.
Soares também pontua que o reajuste das bolsas "têm feito muita diferença" para os pós-graduandos bolsistas — que são menos de 40% dos estudantes de mestrado e doutorado do País. Muitas dessas pessoas que dependem da bolsa de pesquisa estavam em situação de vulnerabilidade social e, para ele, o reajuste deve estar entre as estratégias para o combate à fome no País. "O reajuste não é uma pauta corporativista, é uma pauta de desenvolvimento nacional", defende.
A doutora em Educação Adriana Castro Araújo, professora da Especialização em Gestão Universitária, do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Gestão da Educação Superior e do Mestrado Profissional em Políticas Públicas e Gestão da UFC, destaca a importância do investimento em pesquisa por parte do governo, uma vez que elas são feitas a partir de conhecimento acumulado ao longo dos anos e que o retorno deve ser social, e não privado.
Para a docente, que é orientadora de Nayara Braz, é preciso que seja criada uma lei que não permita novos retrocessos no investimento em Ciência devido a mudanças de gestão federal a cada eleição. "Ao contrário, se possível que seja sempre agregado valor, porque a demanda nunca acaba. É um conhecimento inacabado por natureza. Estamos eternamente agregando conhecimento ao conhecimento que já foi construído", defende.
"O maior legado da humanidade é esse conhecimento acumulado historicamente. Nenhuma pesquisa é feita do nada, sempre nos apoiamos nas pesquisas feitas por outros pesquisadores há milhares de anos. Então, por que só alguns irão gozar das benesses da pesquisa científica? O retorno tem que ser da sociedade como um todo", afirma.
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Sancionada em 2007, a Lei nº 11.487 prevê redução fiscal para empresas que investirem em projetos de inovação científica e tecnológica desenvolvidos por institutos públicos. De acordo com essa lei, as empresas receberão isenção fiscal inversamente proporcional ao direito de propriedade. Quanto menor a isenção fiscal, maior é o direito da empresa sobre a pesquisa.
Para a professora Adriana Castro Araújo, essa lei é uma tentativa do Governo Federal de fazer o setor privado investir em Ciência e Pesquisa, mas o mais relevante é o investimento do setor público, uma vez que o retorno de pesquisas deve ser para a população como um todo, e não para empresas.
Soares tem uma visão parecida sobre a necessidade de investimento constante. Questionado sobre as demais pautas levantadas pelaANPG atualmente, ele pontua a necessidade de criação e um mecanismo que garanta reajustes constantes. Outra necessidade é que os pesquisadores sejam vistos como trabalhadores e tenham direitos previdenciários. Ele explica que a pós-graduação já não tem mais sido tão atrativa para os jovens, que têm preferido seguir para o mercado de trabalho.
A fuga de cérebros, movimentos em que pesquisadores brasileiros procuram melhores condições de trabalho em outros países, também tem ocorrido em níveis regionais e preocupado a Associação Nacional de Pós-Graduandos. Os valores das bolsas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por exemplo, mais altos do que os valores nacionais, atraem pós-graduandos de outras regiões do País.
Nayara Braz também destaca a importância do investimento, por parte do Governo, em pesquisa. Apesar da crença do fazer intelectual como uma vocação, ela aponta que fazer pesquisa e ser cientista é um trabalho que necessita de ferramentas e, consequentemente, de dinheiro. Ela defende que, sem investimento em pesquisa e em quem a encabeça, ela não acontece.
"Até porque a Ciência não vai se fazer sozinha. Quem faz Ciência é um ser humano, é uma pessoa que tem necessidades financeiras, psicológicas, emocionais, estruturais e precisa estar assistida enquanto ser humano. Ela precisa estar com os seus direitos básicos assegurados".
Mas há bolsistas cearenses que não foram contemplados por reajustes, como estudantes e pesquisadores ligados a fundos estaduais. É o caso do graduando em Geografia pela Uece, Felipe Wellington, de 26 anos. Apesar de estados como Pará, Piauí, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais já terem concedido aumento no valor das bolsas, o Ceará não está nessa lista.
Após passar alguns meses da pandemia de Covid-19 sem o antigo emprego de operador de telemarketing, Felipe Wellington conseguiu uma bolsa como aluno de baixa renda. Atualmente, ele é bolsista pelo Programa de Bolsa Acadêmica de Inclusão Social (BSocial), da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), que utiliza recursos do
A pesquisa de Felipe é na área da Geografia Humana e busca entender as dinâmicas econômicas e os impactos sociais e imobiliários da implantação de areninhas na periferia de Fortaleza, em bairros como Mondubim, Janguruçu Barra do Ceará e Conjunto Ceará. Os equipamentos são implementados desde 2014 pela Prefeitura de Fortaleza para a requalificação de campos de futebol, que também são utilizados para outras finalidades.
Em 2 de março, a Secretaria da Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará (Secitece) e a Funcap publicaram uma nota informando que a possibilidade de reajuste das bolsas de pesquisa de Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Produtividade em Pesquisa, Estímulo à Interiorização e à Inovação Tecnológica (BPI), para que elas sejam equiparadas aos novos valores das bolsas federais, está sendo estudada.
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Para o graduando em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) Felipe Wellington, além dos próprios benefícios que o valor da bolsa oferece para o bolsista que recebe a remuneração, o investimento em pesquisa é um investimento do Estado nele mesmo.
Além da questão do retorno para a sociedade que as universidades públicas devem prestar, o estudante aponta o próprio retorno financeiro gerado a partir do poder de compra dos estudantes e pesquisadores.
"Se você pensa em um estudante de graduação que recebe uma bolsa, ele também vai estar contribuindo com a economia. E, ele contribuindo com a economia, seja ela local ou não, vai haver um retorno indireto para o Estado", explica.
"O momento é de austeridade para equilíbrio das contas públicas, de forma que medidas de impacto orçamentário ainda estão sob prudente análise", informa a nota. A publicação ainda informa que, em 2022, houve reajuste de 10,74% nos valores das bolsas estaduais, "quando na época não houve reajuste federal", e que foram criadas 200 novas bolsas concedidas, entre IC, mestrado e doutorado.
Em 2020, Felipe conta que ganhava R$ 400 e, com esse reajuste, passou a ganhar R$ 450. A diferença de valor em relação ao que agora é pago pelas instituições federais faz falta, principalmente porque o vínculo com a universidade é praticamente em regime de dedicação exclusiva. Além dos estudos, ele se dedica ao Centro Acadêmico (CA) do curso.
50,4% dos bolsistas do CNPq no Ceará são da Iniciação Científica
"Não adianta só estar na universidade de manhã, que no caso é o meu horário. Eu preciso ter mais tempo disponível e, se eu for me colocar para o mercado de trabalho e tentar conciliar com o estudo, muitas vezes eu não vou conseguir acompanhar o ritmo que é necessário. O reajuste é importante para termos condições mínimas de nos manter na universidade", diz.
Felipe aponta que o anúncio de reajuste das bolsas federais é um momento propício para a pauta sobre o reajuste das bolsas fornecidas pelos fundos estaduais seja levantada. "Entendemos que nos últimos anos já havia necessidade de reajuste, mas no governo Bolsonaro nós precisávamos lutar para não perder direitos", afirma.
Dessa forma, nos últimos anos a discussão sobre o reajuste acabou "sendo deixado para outro momento". "A briga maior era para manter o que tínhamos, para não haver corte no repasse das bolsas, pois havendo corte federal também poderia haver corte estadual", complementa.
Na divisão por grandes áreas do conhecimento, a Iniciação Científica representa entre 38% e 69% do total de bolsas concedidas pelo CNPq no Ceará
Segundo Vinícius Soares, presidente da ANPG, a associação tem se mobilizado para que os estados também reajustem as bolsas. Há cerca de um mês — aproximadamente quando a nota da Secitece e da Funcap foi emitida —, a entidade reuniu-se a Fundação cearense. "O diálogo foi muito bom, eles receberam a demanda muito bem. Disseram que estavam estudando", afirmou Soares, apesar de apontar que até o momento não houve encaminhamento para essa solicitação.
O POVO buscou a assessoria de imprensa da Funcap por e-mail nos dias 24 de março de 2023 e 3 de abril de 2023 para saber como estão os estudos sobre a possibilidade de reajuste, além de questionar se há previsão para que uma decisão sobre o tema seja tomada e anunciada. Em nenhuma das tentativas o contato foi retornado.
Para esta análise, foram utilizados dados da base de Bolsas e Auxílios Pagos em 2022, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), informações fornecidas pela Coordenação Geral de Comunicação Social da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CGCOM/CAPES) e a tabela de reajustes apresentada pelo Governo Federal em 16/02/2023 durante o anúncio do aumento nos valores das bolsas de pós-graduação e iniciação científica no País.
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