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Escravidão contemporânea: Ceará lidera resgate de trabalhadores no Nordeste em 2023
Reportagem Especial

Escravidão contemporânea: Ceará lidera resgate de trabalhadores no Nordeste em 2023

Inspeções de auditores do Ministério do Trabalho resgataram 18 trabalhadores em condição análoga à escravidão no Estado. Total de 977 resgates foram feitos no Brasil. Problema aumentou e efeito de fiscalização está defasado em quase 50%

Escravidão contemporânea: Ceará lidera resgate de trabalhadores no Nordeste em 2023

Inspeções de auditores do Ministério do Trabalho resgataram 18 trabalhadores em condição análoga à escravidão no Estado. Total de 977 resgates foram feitos no Brasil. Problema aumentou e efeito de fiscalização está defasado em quase 50%
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Último país das Américas a abolir a escravidão, o Brasil ainda não se libertou completamente das práticas degradantes de trabalho. Em 2023, 977 trabalhadores foram resgatados em fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) contra o trabalho escravo.

Somente no Ceará são 18 casos neste ano, o que coloca o Estado como líder do Nordeste neste tipo de resgate, empatado com o Maranhão. No País, Goiás (365 trabalhadores resgatados) e Rio Grande do Sul (293) lideram essa triste estatística.

Vale ressaltar que esse ranking tem piorado ao longo dos últimos anos e a pandemia foi um marco. Entre 2018 e 2019, o número de trabalhadores resgatados de condições de trabalho análogas à escravidão havia caído de 1,7 mil para 1,3 mil. Em 2020, o número decresceu mais, para 938 resgates.

No entanto, em 2021 houve aumento na quantidade de resgates realizados pelos auditores fiscais do trabalho, para 1,9 mil. A situação piorou em 2022, quando 2,5 mil trabalhadores foram resgatados. Portanto, desde a pandemia a quantidade de trabalhadores resgatados subiu 174,5%.

Carlos Pimentel de Matos Júnior tomou posse como novo superintendente regional do Trabalho no Ceará.
Foto: Samuel Setubal
Carlos Pimentel de Matos Júnior tomou posse como novo superintendente regional do Trabalho no Ceará.

“O trabalho análogo à escravidão é pauta principal no trabalho do MTE. É inconcebível que essa prática possa ser encontrada em pleno século XXI. E os resgates não são feitos somente em cidades distantes do Interior, mas em grandes centros urbanos temos encontrado essa prática que precisa ser exterminada e a fiscalização vai estar voltada para coibir”, afirma o superintendente regional do Trabalho do Ceará, Carlos Pimentel.

A realidade dos números de resgates poderiam ser diferentes, talvez pior. Isso porque o número de auditores fiscais do trabalho em campo é defasado, sendo o menor contingente dos últimos 30 anos.

Existem atualmente 1.949 auditores na ativa, enquanto 1.695 vagas de auditores estão vagas, ou 46,5% dos cargos existentes. O último concurso foi realizado em 2013, repondo apenas 100 vagas.

Fachada do Atacadão Redes Paraíba, empresa do Ceará que foi incluída na "lista suja" do trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego.
Foto: FÁBIO LIMA
Fachada do Atacadão Redes Paraíba, empresa do Ceará que foi incluída na "lista suja" do trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego.

Com menos fiscalização, fica mais difícil para o consumidor separar o joio do trigo. Afinal, quem imagina, por exemplo, que lojas em grandes centros urbanos, como Fortaleza, vendem peças produzidas a partir de trabalho escravo?

Pois era o que ocorria no interior do Atacadão Redes Paraíba Comércio Eireli, localizado no bairro Itaperi, em Fortaleza, conforme decisão administrativa de procedência, de 23 de setembro de 2022. De lá, foram resgatados 11 trabalhadores em situação análoga à escravidão.

A empresa foi incluída neste ano na chamada "lista suja" do MTE, que reúne empregadores que foram condenados em processos administrativos em que não cabem mais recurso. O POVO procurou a empresa para se manifestar sobre o assunto, mas não obteve retorno.

A "lista suja" de empresas que já foram flagradas mantendo trabalhadores em condições análogas à escravidão é uma legislação que permite tornar pública, de maneira acessível, empregadores que cometem tal crime, que além de trabalhista envolve a dignidade humana.

Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), sintetiza: "Estar na lista suja significa que o empregador submeteu trabalhadores à condição análoga à de escravo e o governo brasileiro reconheceu isso por meio da inspeção do trabalho”.

Série histórica de resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão - Brasil

Na última atualização, os setores que mais eram citados foram os de atividades rurais e construção civil. Em meados de 2020, a publicação da "lista suja" chegou a ser suspensa pelo governo Jair Bolsonaro.

E a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) questionou a lista no Supremo Tribunal Federal (STF), mas a Corte definiu a constitucionalidade da "lista suja" do trabalho escravo.

Rafael Sales, presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil Secção Ceará (OAB-CE), entende que é possível, sim, relacionar a aprovação da reforma trabalhista à precarização das relações trabalhistas e ao aumento de resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão.

"A reforma, da forma como foi vendida, deu uma ideia a alguns empregadores de que poderiam fazer o que quisesse. E aí acabou que essas pessoas que trabalhavam de forma errada, não houve fiscalização ou demanda jurídica. Mas quando a fiscalização começou a apertar, apareceram os casos"

O advogado ainda destaca que jornada degradante não é um conceito subjetivo raso, mas é preciso levar diversos fatores emocionais, além de físicos em consideração.

"Numa jornada diária de 10 horas de trabalho, por exemplo, a pessoa deixou de estar junto da família, dos filhos, por estar trabalhando sem carteira assinada, deixando de receber horas extras. Isso vai, sim, minando a situação física e psíquica do trabalhador".

A maioria dos trabalhadores resgatados em operações do Ministério do Trabalho e Emprego estavam trabalhando em zona rural.
Foto: Ministério do Trabalho/ Divulgação
A maioria dos trabalhadores resgatados em operações do Ministério do Trabalho e Emprego estavam trabalhando em zona rural.

 

As histórias dignas de filme de terror contidas na "lista suja" do trabalho escravo


O cadastro reúne casos de trabalho escravo identificados pela Inspeção do Trabalho entre os anos de 2018 e 2022. Um dos 132 novos empregadores incluídos na "lista suja" do trabalho escravo, atualizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no último dia 5 de abril, com total de 289 nomes, foi o de Alírio Caetano dos Santos Junior.

A fiscalização do MTE resgatou 78 pessoas de condição análoga à escravidão, em março de 2020. Eles foram encontrados em uma Casa de Recuperação para dependentes de drogas e álcool, em Ceilândia-DF.

Essas pessoas, que inicialmente estavam em situação de rua, eram contratadas para trabalharem em uma fábrica de Alírio Caetano e moravam na casa de recuperação, que também era propriedade do empregador.

No processo, os trabalhadores resgatados afirmaram que apanhavam do empregador e de outros ajudantes da fazenda com barras de ferro.

Ao portal Repórter Brasil, Alírio respondeu, dizendo que acha a inclusão de seu nome na "lista suja" lamentável. Ele ainda acrescentou que resgatava entre 10 e 20 pessoas por dia da rua para sua casa de recuperação e que, após se recuperar, "tinha uma moradia e a oportunidade de trabalhar".

As provas contidas no processo, porém, não indicam isso. Por lei, o nome do empregador permanece no cadastro por um período de dois anos, durante o qual a Administração monitora a regularidade das condições de trabalho. Se verificada reincidência, o nome continua na lista por mais dois anos.

Fiscalizações do Ministério do Trabalho em 2023 - Trabalhadores resgatados por estado

Total de 18 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no Ceará neste ano.
Foto: Superintendência Regional do Trabalho do Ceará/ Fiscalização do Trabalho
Total de 18 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no Ceará neste ano.

 

Resgates: Última operação pôs luz a condições degradantes no interior do Ceará

A força-tarefa mais recente dos auditores fiscais do trabalho em empresas cearenses revelou um quadro alarmante: Dos 12 estabelecimentos fiscalizados, em quatro foram constatados trabalhadores sujeitos à condição análoga à de escravos.

Ao todo, 17 trabalhadores submetidos às condições degradantes de trabalho foram resgatados pelos auditores.

O trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego foi realizado nas cidades de Quixadá, Russas, São Gonçalo do Amarante e Itaitinga. Nestas fiscalizações, três segmentos se destacam negativamente. Primeiro o de rochas e cerâmicas. Além do setor de construção.

Em Quixadá, os fiscais foram em três pedreiras e uma cerâmica; já em Morada Nova, foram duas pedreiras; e em Russas outras três cerâmicas; em São Gonçalo do Amarante outras duas pedreiras foram fiscalizadas.

Última operação realizada pelos auditores fiscais do trabalho resgataram profissionais da construção civil e de pedreiras e cerâmicas.(Foto: Superintendência Regional do Trabalho do Ceará/ Fiscalização do Trabalho)
Foto: Superintendência Regional do Trabalho do Ceará/ Fiscalização do Trabalho Última operação realizada pelos auditores fiscais do trabalho resgataram profissionais da construção civil e de pedreiras e cerâmicas.

Desse trabalho, dois trabalhadores de pedreiras foram resgatados; e três trabalhadores de cerâmicas.

Já em relação, especificamente, ao setor de construção, um canteiro de obra em Itaitinga foi fiscalizado. E lá foram resgatados 12 trabalhadores.

O POVO apurou que, após a realização dessa força-tarefa, mais recentemente, houve mais um resgate de trabalhador da construção civil, agora em Fortaleza.

Carlos Rubens Alencar, presidente do Sindicato das Indústrias de Mármores e Granitos do Estado do Ceará (Simagran-CE), afirma que desconhece qualquer problema dessa natureza envolvendo as empresas do setor mineral. "Em pedreiras de rochas ornamentais não existe isso."

Ele destaca que existem pedreiras sem certificação nas regiões de Quixadá e Morada Nova que produzem paralelepípedos, numa produção artesanal, que tem como fim o abastecimento de depósitos da região e até obras de prefeituras.

"O nosso setor não tem como extrair sem máquinas pesadas de mais alta tecnologia. Os funcionários que trabalham em pedreiras de rochas ornamentais todos possuem qualificações para manusear esses equipamentos sofisticados", complementa.

O empresário ainda cobra reforço na fiscalização para além do combate ao trabalho escravo, mas também às empresas irregulares, como pedreiras, águas adicionadas de sais e areia, que cometem, inclusive, crimes ambientais.

Marcelo Pordeus, vice-presidente de relações trabalhistas do Sindicato das Construtoras do Ceará (Sinduscon-CE), enfatiza que há um universo de 70 mil trabalhadores na construção civil cearense e que qualquer caso de trabalho em condições análoga à escravidão é inaceitável.

Acrescenta ainda que os canteiros de obras flagrados pelos auditores eram de empresas pequenas não filiadas ao Sinduscon. Marcelo ainda ressalta que esse é um tema socialmente relevante e é necessário que haja fiscalização e os clientes adquiram uma consciência em relação às empresas.

"Somos contra qualquer situação que vá de encontro à dignidade e bem-estar do trabalhador, esse é um ponto fundamental para nós", destaca Marcelo, falando ainda sobre programas de orientação aos trabalhadores e consultoria nos canteiros de obras para avaliar as condições de saúde e segurança do trabalho.

Crescimento na quantidade de acidentes de trabalho preocupa.
Foto: Agência Brasília
Crescimento na quantidade de acidentes de trabalho preocupa.

Cenário dos acidentes de trabalho também é preocupante

Foram registrados mais de 6,7 milhões de acidentes de trabalho e 25,5 mil mortes no emprego nos últimos dez anos. Levando em consideração apenas trabalhadores com carteira assinada, entre 2012 e 2022, foram registrados 612,9 mil acidentes e 2.538 óbitos.

Os dados foram atualizados pelo Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, desenvolvido no âmbito da Iniciativa SmartLab de Trabalho Decente, coordenada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pelo Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para o Brasil.

A partir da plataforma foi possível calcular, em valores nominais, o gasto com benefícios previdenciários acidentários. Na década analisada pela pesquisa, foram 2,3 milhões de afastamentos pelo INSS, com custo que já chega a R$ 136 bilhões.

Na avaliação do procurador-geral do Trabalho da 7ª Região, José de Lima Ramos Pereira, essas informações atualizadas e com detalhamento geográfico são fundamentais para as reflexões públicas.

"O Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, em seu sétimo ano, traz importante contribuição para a base de conhecimento a respeito da acidentalidade e do adoecimento laborais no Brasil, nas Unidades Federativas e em cada um dos 5.570 municípios brasileiros", afirma.

Trabalho em condição degradante no Ceará(Foto: Superintendência Regional do Trabalho do Ceará/ Fiscalização do Trabalho)
Foto: Superintendência Regional do Trabalho do Ceará/ Fiscalização do Trabalho Trabalho em condição degradante no Ceará

Outro dado alarmante diz respeito ao número de notificações relacionadas ao trabalho no âmbito do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Sistema Único de Saúde (SUS), do Ministério da Saúde, que coleta informações sobre casos de notificação compulsória que afetam a população ocupada em trabalhos formais e informais.

O número de notificações relacionadas ao trabalho já bateu recorde em 2022, com 392 mil registros. O quantitativo é o dobro das 194 mil ocorrências comunicadas em 2018, há cinco anos. 

Um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Walk Free e da Organização Internacional para as Migrações, divulgado em setembro de 2022, destaca que, no mundo todo, cerca de 28 milhões de pessoas foram vítimas de trabalhos forçados, em 2021. A maioria dos casos de trabalho forçado (86%) ocorre no setor privado, e quase uma em cada oito pessoas que foram submetidas a esse tipo de violação é criança (3,3 milhões).

 

 

Endurecimento de punições

O ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, disse em março que quer punições mais duras aos empregadores flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à escravidão e que sejam incluídos na "lista suja". Uma das medidas punitivas seria a execução sumária de dívidas com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) caso o empregador possua algum empréstimo. Além disso, quem estiver na "lista suja" não poderá tomar financiamento público ou prestação de serviços públicos.

Trabalhadores da construção civil foram resgatados no Ceará em operação de auditores fiscais do trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego.
Foto: Superintendência Regional do Trabalho do Ceará/ Fiscalização do Trabalho
Trabalhadores da construção civil foram resgatados no Ceará em operação de auditores fiscais do trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego.
O trabalhador resgatado é amparado pelo estado principalmente a partir da liberação do Seguro-Desemprego Trabalhador Resgatado. Esse é um auxílio temporário concedido ao trabalhador comprovadamente resgatado de regime de trabalho forçado ou da condição análoga à de escravo. Tendo direito a no máximo três parcelas no valor de um salário mínimo.

  

 

O que é trabalho análogo à escravidão, segundo a lei brasileira?

A legislação brasileira atual classifica como trabalho análogo à escravidão toda atividade forçada – quando a pessoa é impedida de deixar seu local de trabalho – desenvolvida sob condições degradantes ou em jornadas exaustivas.

 

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