► Meus heróis morreram de overdose, dizem os versos de Cazuza em uma de suas canções mais conhecidas, Ideologia (1988). Dos toca-discos ao streaming, o trecho da melodia que marcou gerações faz referência a estrelas como Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison, vítimas fatais do uso excessivo de drogas.
Enquanto entoava sua dor, porém, o cantor também mostrava a cara ao Brasil para expor outro lado de um herói que não morreu de overdose; foi vítima de uma doença que, na época, era tratada como sentença de morte: a Aids.
No ano em que a Constituição foi promulgada e o Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), último estágio da infecção causada pelo
Diagnosticado em 1987, Cazuza foi alvo de especulações desde muito antes por conta da
Tornou-se a primeira pessoa pública a se declarar soropositiva — atitude que deu visibilidade à epidemia de HIV que atingia o mundo e ajudou muitas pessoas, mas que também lhe custou saúde.
Já fragilizado pelos efeitos da infecção, que atinge o sistema imunológico, o cantor ainda precisou lidar com estigmas, tabus e polêmicas atreladas ao seu nome enquanto tentava seguir a carreira. Em Boston, nos Estados Unidos, iniciou tratamento de AZT, a única droga existente na época para combater o vírus.
Diagnosticado com Aids na mesma época em que Cazuza, o artista nova-iorquino Keith Haring também levou a doença para seu trabalho e a transformou em ativismo.
Assumidamente homossexual, Haring se utilizou das manifestações artísticas para defender o sexo seguro e a conscientização sobre o HIV, com pinturas que retratavam atos sexuais e desenhos fálicos.
Marca registrada de seu legado, a estética de Hering é inconfundível e estampou desde escalas pequenas como telas a escalas monumentais como murais pelo mundo, arte que continua a ser difundida mesmo após a morte do artista por complicações da Aids em 1990, aos 31 anos.
Após a descoberta da doença, no ano seguinte criou a Fundação que batizou com o próprio nome, cujo objetivo era fornecer financiamento e imagens para organizações de educação, prevenção e cuidados relacionados à síndrome.
“Ao expressar conceitos universais de nascimento, morte, amor, sexo e guerra, usando a primazia da linha e a franqueza da mensagem, Haring conseguiu atrair um público e garantir a acessibilidade e o poder de permanência de suas imagens, que se tornaram um símbolo universalmente reconhecido”, diz a biografia oficial do artista.
Cazuza morreu em julho de 1990, aos 32 anos, em decorrência da Aids. Após a morte do artista, sua mãe, Lucinha Araújo, fundou a Sociedade Viva Cazuza, uma instituição para ajudar crianças e adolescentes com HIV.
A casa de apoio encerrou as atividades três décadas depois, em 2020, durante a pandemia de Covid-19.
Um dos motivos elencados por Lucinha para o fim da instituição, além de sua idade avançada, foi o fato de que o vírus não atinge mais crianças como há 30 anos.
O que é verdade: de 1980 a 2010, cerca de 14 mil crianças menores de 5 anos haviam sido diagnosticadas.
Já em 2022, de acordo com os dados mais recentes do Ministério da Saúde, esse número baixou para 121, uma redução de 99% nos casos registrados.
Resultado que se deve ao conjunto de estratégias desempenhadas ao longo dos anos para controlar e prevenir a epidemia da doença, que se tornou um problema de saúde pública — desde o primeiro caso informado em território nacional, em 1980, já foram detectados 1.088.536.
O cenário geral de diminuição, entretanto, pode estar relacionado à subnotificação, principalmente no ano de 2020, em virtude da pandemia.
Somente em 2021, 40,8 mil casos de HIV e outros 35,2 mil casos de Aids foram notificados no Brasil por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). No mesmo ano, mais de 11 mil óbitos foram registrados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) em decorrência do agravo.
Ao redor do mundo, as estatísticas globais evidenciam que em 2021 as novas infecções por HIV foram reduzidas em 54% em comparação com o pico da doença, em 1996. No entanto, cerca de 1,5 milhão de pessoas foram recém-infectadas pelo vírus — a metade composta por meninas e mulheres.
Nesse contexto, a infecção pelo HIV é considerada estabilizada, porém em patamares elevados. Mapeamentos do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) reforçam que a epidemia ainda precisa ser combatida.
Se há uma queda entre as crianças, os dados epidemiológicos apontam para uma crescente curva dos casos de HIV em jovens. Das 960 mil pessoas que vivem com HIV no Brasil, mais de 100 mil têm entre 15 e 24 anos.
Nos casos que evoluem para Aids, a faixa etária mais afetada é a de 25 a 39 anos, de acordo com as estimativas do Ministério da Saúde. O Ceará possui realidade semelhante à nacional, porém a faixa etária que ainda predomina é a de adultos de 25 a 29 anos, conforme mostra o Boletim Epidemiológico divulgado em dezembro de 2022 pela Secretaria de Saúde do Ceará (Sesa).
“Alguns possíveis fatores para tal cenário são o desuso dos preservativos internos e externos e questões comportamentais próprias dessa faixa etária”, indica Anuzia Lopes, assessora técnica do Grupo de Trabalho IST/HIV/Aids e hepatites virais da pasta.
Na esteira que acompanha a evolução da ciência, enquanto pesquisadores do mundo inteiro têm se debruçado para encontrar a cura, estudiosos buscam uma vacina e trabalham no desenvolvimento de novas terapias.
Lopes explica que diversas estratégias de prevenção surgiram para além do uso da camisinha, “entendendo que a percepção dos riscos de adquirir uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) varia de pessoa para pessoa e sofre mudanças ao longo da vida”.
“Nenhuma intervenção de prevenção isolada se mostrou eficaz o suficiente para reduzir novas infecções. Então, muito se tem trabalho ao longo do ano para além do Dezembro Vermelho, a exemplo do oferecimento à testagem rápida nas unidades de saúde, tratamento em tempo oportuno e disseminação das múltiplas estratégias de prevenção não somente ao HIV”, cita.
Observa-se que o melhor método de prevenção é aquele que o indivíduo escolhe – com auxílio do profissional de saúde – e que atende às suas necessidades sexuais e de proteção, defende a enfermeira.
Uma dessas medidas é a prevenção combinada, que inclui o tratamento durante pré-natal, parto e pós-parto para pessoas HIV+ gestantes, o que pode explicar a redução dos casos entre crianças.
Além da prevenção da transmissão vertical (quando o vírus é transmitido para o bebê durante a gravidez), a política combina outras formas de proteção contra HIV, Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e hepatites virais, que variam conforme as características e o momento de vida de cada pessoa.
Entre essas práticas, todas disponíveis gratuitamente pelo SUS, estão imunização (para as hepatites A e B), programas de redução de danos para usuários de álcool e outras substâncias e, mais recentemente, as profilaxias pré e pós-exposição (PrEP e PEP).
Com a utilização de medicamentos antirretrovirais que reduzem em mais de 90% as chances de uma pessoa se infectar quando exposta ao HIV, a Profilaxia Pré-exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-exposição (PEP) são duas das medidas mais eficazes de prevenção contra o vírus.
PrEP e PEP: aliadas do SUS na prevenção contra o HIV
Conforme distingue a infectologista Lisandra Damasceno, presidente da Sociedade Cearense de Infectologia, enquanto a PrEP é tomada antes da relação sexual e mediante acompanhamento, a PEP é uma medida de urgência utilizada em situação de risco à infecção.
A Profilaxia Pré-exposição (PrEP) é indicada antes da exposição ao HIV para reduzir a probabilidade de a pessoa se infectar. O antirretroviral é de uso diário e impede que o vírus se dissemine no organismo. Deve ser usado sob a orientação médica para que o paciente seja devidamente acompanhado e realize exames regulares.
“Ela tem como objetivo alcançar principalmente as populações mais vulneráveis a esse risco de transmissão de HIV, como homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, profissionais do sexo, pessoas que têm múltiplas parcerias, pessoas que convivem com parceiros HIV”, aponta.
“Já a Profilaxia Pós-exposição (PEP) está disponível pelo SUS desde 1999 e é uma estratégia que busca intervir na cadeia de transmissão do vírus. É indicada após uma exposição de risco ao HIV, como violência sexual, relação sexual desprotegida ou acidentes de trabalho com exposição a material biológico”, especifica.
Na rede estadual, o Hospital São José (HSJ) e o Hospital Infantil Albert Sabin fornecem a PEP, enquanto o Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e o Hospital São José fornecem a PrEP.
A professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) salienta que a medicação deve ser usada o mais rápido possível, preferencialmente nas primeiras duas horas e, no máximo, em até 72 horas (três dias) após uma possível infecção.
É tomada antes da relação sexual e mediante acompanhamento
Medida de urgência utilizada em situação de risco à infecção
Esse é o caso de Tiago (nome fictício para preservar a identidade da fonte). O jovem de 23 anos teve uma relação sexual sem preservativo com uma pessoa que não conhecia e, devido a uma conversa, suspeitou de que a pessoa também poderia não ter usado a proteção em algumas das relações sexuais anteriores.
Por esse motivo, ele relata que ficou com medo e decidiu procurar o posto de saúde próximo de casa no mesmo dia.
“Me senti bastante inseguro, pois ele transpareceu tê-las com frequência, e também não falou se usava outra forma de prevenção. Já eu não havia usado proteção em outras ocasiões, e ainda que eu não tenha uma vida sexual ativa, também não tinha feito testes de ISTs com menos de 3 meses ao ocorrido”, narra.
Na unidade, Tiago foi orientado a buscar a emergência do Hospital São José de Doenças Infecciosas para obter a Profilaxia Pós-exposição (PEP). “Passei por um rápido cadastro seguido de triagem com uma enfermeira, expliquei a minha situação e o porquê de estar lá para solicitar a PEP. Depois, fui encaminhado a uma consulta inicial com uma médica, para quem também expliquei o ocorrido”, conta.
Depois de receber o resultado negativo dos exames rápidos de ISTs feitos no laboratório do hospital, o rapaz deu início ao tratamento de 28 dias feito com a prescrição dos remédios.
“A PEP me ajudou a ter mais segurança quanto à minha saúde e a aliviar a preocupação nos dias seguintes ao ocorrido, já que havia iniciado o acompanhamento, e por ter sido em um hospital que é referência nesse tipo de tratamento”, expõe.
O início rápido do tratamento, que faz toda a diferença, só foi possível porque Tiago já sabia da existência da profilaxia pelo SUS, conhecimento que nem sempre é a realidade de quem acaba infectado.
“Já voltei ao São José para o primeiro retorno, pouco mais de 1 mês após a exposição de risco, no qual fiz novamente os testes rápidos de ISTs, que também deram negativo, felizmente. Agora, aguardo chegar os dias dos retornos de 3 meses e 6 meses, nos quais também devo fazer os mesmos exames”, detalha.
O jovem reconhece o papel essencial da existência de medidas públicas como a PrEP e a PEP, que podem ser acessadas a qualquer momento: “Acredito que são formas muito efetivas de promover a saúde da população por meio da prevenção contra o HIV. Com certeza, a PEP me deixou mais seguro quanto ao que aconteceu”.
“A principal forma de transmissão do vírus HIV continua sendo, como sempre foi, as relações sexuais desprotegidas”, garante o infectologista Érico Arruda, que atua no Hospital São José de Doenças Infecciosas.
“Infelizmente ainda acontece, num percentual muito menor, a transmissão do vírus HIV através de uma gravidez em que a mãe é infectada. Outras formas, muito menos frequentes nos dias atuais, são os compartilhamentos de seringas, agulhas, entre as pessoas que fazem uso de drogas intravenosas. E muito menos frequente ainda o risco biológico para um profissional de saúde”, constata.
De acordo com o médico, as pessoas que se infectam pelo vírus HIV podem ter sintomas na fase aguda ou na fase precoce à infecção, e um percentual significativo dos pacientes relatam manifestações inespecíficas, como febre, dor no corpo, dor de cabeça, aparecimento de gânglios principalmente na região do pescoço, diarreia e manchas no corpo.
“Isso não é algo característico porque se enquadra na manifestação de várias outras doenças, costumeiramente chamadas de viroses. Esta fase aguda da infecção pelo HIV pode passar despercebida do próprio paciente e mesmo de um profissional de saúde que atende e interpreta que aqueles são sintomas de alguma outra doença causada por outros vírus”, atenta.
Somente em uma fase mais avançada da doença, quando há imunodeficiência, a queda das defesas do sistema imunológico, é que o indivíduo passa a apresentar manifestações que podem mais facilmente se relacionarem com a infecção do HIV, explica o especialista.
“Perda de peso, diarreia, febre prolongada, infecções no aparelho respiratório, sistema nervoso central e no aparelho gastrointestinal”, elenca.
Gays e outros homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, travestis, trabalhadores do sexo e pessoas que mantêm parcerias sorodiferentes (quando um tem HIV e outro não) estão entre os perfis mais vulneráveis, porém qualquer pessoa pode ser alvo do contágio, de acordo com Arruda.
“O termo grupo de risco vem sendo abandonado porque ele não trouxe nenhum benefício do ponto de vista do controle da epidemia. Ele estigmatiza, segrega as pessoas, e não teve nenhuma capacidade de diminuir a transmissão do vírus HIV em qualquer país do mundo”, enfatiza.
O que existe, segundo pondera o infectologista, são comportamentos de risco: “Qualquer pessoa pode se encontrar com o vírus se tiver uma prática de exposição sexual. Ainda que ela não seja daquelas populações-chave que estão mais expostas ao vírus”.
De 2018 a 2022, o Hospital São José realizou 4.890 dispensações de PrEP e, de 2011 a 2022, 22.120 dispensações de PEP. Em relação ao número de pacientes, a unidade possui 609 pacientes cadastrados que fazem uso de PrEP.
Uma pessoa com boa adesão ao tratamento atinge níveis de carga viral tão baixos que é praticamente nula a chance de transmitir o vírus para outras pessoas. Além disso, quem toma o medicamento corretamente não adoece e garante qualidade de vida.
“Tivemos muitos avanços durante todos esses anos de enfrentamento da infecção pelo HIV, especialmente no aspecto da terapia antirretroviral, mas também do conhecimento da forma de transmissão. Mas infelizmente, apesar de todos esses avanços, nós não temos ainda a cura disponível”, pontua.
Longe dos estereótipos dos anos 80, a política de prevenção e combate ao HIV tem feito a diferença na vida de muitos brasileiros. É o caso da publicitária Thais Renovatto, que descobriu que era HIV+ depois que o então parceiro faleceu de uma pneumonia em decorrência da Aids.
“A gente transava sem preservativo, nunca passou pela minha cabeça pedir exames para ele. Eu tinha uma visão muito estigmatizada da Aids, achava que era algo super distante de mim. Quando peguei o exame, pensei: ‘eu vou morrer assim também’”, conta.
Passado o choque e já em tratamento, Thais ainda teve dificuldades para se relacionar novamente e foi alvo de preconceito, mas buscou ajuda e encontrou acolhimento — inclusive do atual marido.
Ao fazer o tratamento de maneira correta, a carga viral se tornou tão baixa no sangue que Thais passou a ser indetectável.
Ela não transmite o vírus — seja para o seu parceiro em relações sexuais ou ao gerar os seus filhos durante a gravidez — e hoje pode ter uma vida completamente saudável, sem desenvolver doenças relacionadas ao HIV ou chegar ao estágio da Aids.
Oito anos depois, a escritora é mãe de João e Olívia, de 5 e 4 anos, respectivamente, e ambos os filhos nasceram sem o vírus.
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No Guia de Terminologia do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) é possível conferir quais palavras corretas usar quando referir-se a pessoas convivendo com HIV. Termos corretos:
– Pessoas vivendo/convivendo com HIV
– Síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids)
– Infecção sexualmente transmissível (IST)
– Sexo mais seguro
– Parceiros sexuais concomitantes ou parceiros concomitantes
– Teste de HIV; teste sorológico anti-HIV
– Pessoas que usam drogas injetáveis
– Resposta ao HIV
"Olá! Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários :) até a próxima!"