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Quando o rio Ceará era uma pista de pouso
Reportagem Especial

Quando o rio Ceará era uma pista de pouso

Tomba ou não tomba? O futuro inconcreto do antigo Hidroporto Condor perturba a comunidade da Barra do Ceará, que vê sua história jogada ao mar

Quando o rio Ceará era uma pista de pouso

Tomba ou não tomba? O futuro inconcreto do antigo Hidroporto Condor perturba a comunidade da Barra do Ceará, que vê sua história jogada ao mar
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Antes uma peculiaridade do rio Ceará, o Hidroporto "Um aeroporto situado dentro de um rio, ou um lago, ou dentro de uma bahia. Precisa ser uma região protegida por ondas.

Explicação do médico e historiador, João Flávio Nogueira."
Condor — como ficou conhecido o Aeródromo — na Barra do Ceará, hoje tem sua memória incerta, perdida na paisagem do mais belo pôr do sol de Fortaleza.

Um local que, por volta de 1929 a 1943, recepcionou inúmeras aeronaves, muitas delas de importantes nomes "Tais como o ex-ministro da Viação, Juarez do Nascimento Fernandes Távora; o ex-ministro do Trabalho, Waldemar Cromwell do Rego Falcão; o cantor Francisco de Moraes Alves; a família Johnson, da Johnson & Johnson, para comprar carnaúba; o autor da obra "O Pequeno Príncipe", Antoine de Saint-Exupéry; entre outros."  da época, está depredado, vazio, restando apenas resquícios deixados pelas empresas que lá se instalaram — a Condor, alemã, e a Panair, norte-americana.

Local onde ficava o Hidroporto na década de 30 na Barra do Ceará(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Local onde ficava o Hidroporto na década de 30 na Barra do Ceará

Uma divergência entre poderes públicos — de um lado o Ministério Público do Estado (MPCE), do outro a Prefeitura de Fortaleza, faz com que o espaço continue — há 80 anos (e contando) —, abandonado.

Na quarta-feira, 31 de maio de 2023, depois de um pedido do MPCE pelo tombamento do Hidroporto Condor ser acatado pela 14ª Vara da Fazenda Pública de Fortaleza, ficou pré-estabelecida a revitalização da área e a construção de um museu que retrate a história do local.

A ação é resultado de Inquérito Civil instaurado pelo MPCE, em 2014, sugerido pelo Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Ceará (Crea-CE), para verificar a necessidade e a possibilidade de tombamento do Hidroporto.

A Prefeitura de Fortaleza contestou a solicitação e afirmou a impossibilidade de recuperar o Hidroporto por se tratar de "um bem particular que se encontra destruído e de impossível restauração".

"O Hidroporto é um bem particular. Atualmente, não temos nenhum projeto específico para a área", confirma em nota a Prefeitura.

De acordo com Ann Celly Sampaio, titular da 135ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, apesar do valor histórico, a Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) informou que não havia processo de tombamento em qualquer parte da área referida.

Ao O POVO, a promotora de Justiça respondeu algumas indagações acerca do tema.

 


 

Saudades daquilo que seu Alberto não viveu

Primeiro filho de Alberto de Souza, comerciante e proprietário do Albertu's Restaurante e da chalana "Embarcação retangular usada para transporte de pessoas e passeios turísticos; no caso da Albertu's, tem capacidade para 30 passageiros e faz passeios no rio Ceará." de mesmo nome, Francisco Alberto Lopez, 64, nasceu em 1959 no interior do Ceará, em Pacoti, a 93,5 km da Capital.

Francisco Alberto de Souza, herdeiro do Albertu's Restaurantes(Foto: Fran Silva)
Foto: Fran Silva Francisco Alberto de Souza, herdeiro do Albertu's Restaurantes

Quando começava a se fundar o Clube de Regatas da Barra do Ceará, obra orquestrada pelo presidente Oswaldo Rizzato em sociedade com o político Antony Costa, Alberto pai se mudou para a Barra com a esposa, Maria Lopes, e quatro filhos a tiracolo.

Na juventude, Francisco Alberto não teve a oportunidade de se deliciar com o funcionamento do Hidroporto. Mas a memória guarda detalhes históricos.

“O rio Ceará é referência da aviação de Fortaleza por conta do Hidroporto. Falavam que aqui era um ponto comercial, tinha um charme. Acho que foi a maior obra da Barra do Ceará. Eu tenho muita vontade de conhecer um dia. Só tem em Recife esses hidroaviões "São como aviões normais, mas ao invés de rodas, eles têm flutuadores para pousarem e decolarem na água.

Explicação do médico e historiador, João Flávio Nogueira."
”, disse.

O sogro, Raimundo Maia da Silva, saiu de Natal, no Rio Grande do Norte, para trabalhar no Hidroporto por dois anos (de 1942 a 1944). Somados, são mais de 80 anos de tradição da família Maia na Barra do Ceará.

Carteira assinada de Raimundo da Silva Maia pela Panair do Brasil S.A.(Foto: Acervo Alberto de Souza)
Foto: Acervo Alberto de Souza Carteira assinada de Raimundo da Silva Maia pela Panair do Brasil S.A.

“Ele era funcionário da Panair do Brasil S.A., com carteira assinada e tudo. Ele era conhecido como ‘Raimundo da Panair’, para não chamar de ‘Pané’”, lembra.

A principal preocupação de Alberto é conservar parte do legado deixado pelo pai: o restaurante. “Servir aquela peixada, tradição cearense. E, também, não podemos perder a gastronomia de dona Marisa”.

Em 2018, na Câmara Municipal, o Processo nº 706954/2018 assegurou o tombamento definitivo de três patrimônios históricos localizados na Barra do Ceará: o Albertu's Restaurantes, a Praça Alberto de Souza e o píer da Barra do Ceará.

“Isto aqui é tombado. Um patrimônio. Inclusive, ‘tô’ até esperando o deputado federal Luiz Gastão (PSD), para falar sobre o museu orgânico, que foi uma ideia da comunidade, levada a ele, e eles têm esse museu no Cariri (...) Aqui tem passeio de barco também, o nosso tá mais próximo de ser uma realidade do que o museu do hidroavião. Estão sem vontade política de fazer nada aqui na Barra”, cobra.

 

 

 

 

"A Barra é sempre pioneira em tudo, até no amor"

Francisco Alberto revela que ainda existem algumas estruturas remanescentes do hangar "Um grande galpão (abrigo, armazém, trapiche) para manutenção e preparação para os próximos voos." do Hidroporto dentro do motel Remanso da Barra.

“Se você conseguir entrar, verá que ali era o hangar. Onde tinha o píer de embarque e desembarque. Faz tempo que não entro lá. Este prédio já foi tudo, foi hangar, foi a primeira delegacia da Polícia Civil, agora é motel. Inclusive, ele é um dos primeiros motéis de Fortaleza”.

Por conta disto que, de forma espontânea e risonha, seu Alberto garante: “A Barra é sempre pioneira em tudo, e no amor também".




Zelo pelo que já se foi

Aos frequentadores assíduos da avenida Radialista José Lima Verde, n° 1374, o esquecimento do local culminou um sentimento mútuo. Este, de lamento.

Para preservar a história do bairro, a comunidade da Barra clama por uma estrutura que engrandeça e traga de volta as lembranças alegres que outrora experimentaram, ou, em alguns casos, apenas ouviram falar dos antepassados.

O pesquisador sociocultural Rui Rodrigues, de 41 anos, afirma sua paixão pela história que o bairro representa para Fortaleza e para o Estado. 

Última foto de Rui Rodrigues com o pai, seu Vicente, criador do estaleiro naval na Barra do Ceará (Foto: Arquivo Pessoal de Rui Rodrigues)
Foto: Arquivo Pessoal de Rui Rodrigues Última foto de Rui Rodrigues com o pai, seu Vicente, criador do estaleiro naval na Barra do Ceará

"Toda essa área é de grande movimentação, de economia, devido ao próprio Hidroporto e a própria história da Barra do Ceará. A partir dos anos 2000, tudo foi desativado, o prédio ficou esquecido".

Não apenas por isso, Rui também tem uma outra motivação sentimental selada nas suas pesquisas. Muito próximo ao antigo hidroporto, o falecido pai, “seu Vicente”, construiu um estaleiro artesanal naval — existente desde 1973.

“Hoje, estou com esse legado. Ouvi a história dele (pai) falando do Hidroporto e aquilo foi me apaixonando. Fotos, e todas as histórias, conheço toda a magia que teve. Assim cresci, fascinado com as histórias, e hoje defendo o lugar”, conta.

A esperança de Rui é que as entidades públicas idealizem um projeto que contemple a história e traga a reestruturação e revitalização do lugar. O maior medo dele é que a área sofra especulação por parte do empresariado.

“Este é um dos maiores anseios dos moradores daqui (da comunidade), que fosse feito um museu que resgatasse não apenas a história da Barra do Ceará, mas a história de Fortaleza. Seria muito mais viável ser feito algo voltado para nossa cultura do que deixar de um grande local depredado e esquecido", destaca.

“É um local ligado ao rio, ao mar, e isso deve interessar muito a eles (empresários), mas não podemos deixar a nossa história e cultura de lado, que é tanto mazelada e marginalizada. A gente espera que tenha este investimento — que acreditamos que não seja tanto — principalmente para verem a Barra do Ceará, que é a história de Fortaleza, que é a história do Ceará, e que nós tivemos este equipamento moderno no século passado”.

Atuais condições do estaleiro naval, herança de Vicente Rodrigues ao filho(Foto: Arquivo Pessoal de Rui Rodrigues)
Foto: Arquivo Pessoal de Rui Rodrigues Atuais condições do estaleiro naval, herança de Vicente Rodrigues ao filho


 

 

Linha do tempo do hidroporto da Barra do Ceará

 

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