O Chile enfrentava crise de desabastecimento, o palácio presidencial bombardeado queimava com um presidente morto e os militares tomavam o poder. O golpe de Estado que até hoje divide os chilenos completa 50 anos nesta segunda-feira, 11 de setembro de 2023.
"Missão cumprida. Moneda tomada. Presidente morto". Eram 14 horas do dia 11 de setembro de 1973, quando as tropas sob o comando do general Augusto Pinochet deram a notícia: Salvador Allende, o primeiro presidente marxista eleito por voto popular, havia cometido suicídio em La Moneda.
O Chile, então atormentado pela inflação e pela falta de alimentos causada pela conspiração dos empresários, entrou assim em uma ditadura de 17 anos (1973-1990), que deixou milhares de mortos e desaparecidos, uma economia privatizada e uma brecha intransponível entre os críticos e defensores do regime militar.
Uma fratura que se aprofunda até hoje. A oposição de direita se absteve de aderir ao compromisso de "defender a democracia das ameaças autoritárias" promovido pelo presidente Gabriel Boric e assinado por quatro ex-presidentes pós-ditadura.
Veja, a seguir, os principais pontos do aniversário que Boric relembrará junto com seus colegas do México, Colômbia, Argentina e Uruguai.
Jovens e memória
Segundo a pesquisa Activa Research, 70% dos quase 20 milhões de chilenos nasceram depois do golpe; 60% dos jovens nascidos na democracia rejeitam Pinochet e 12% têm opinião favorável.
"O general assumiu a Presidência e a nação e fez isso com base nos seus pensamentos. Não acho que foi certo", opina Cristian Duarte, um programador de 25 anos.
Por outro lado, Alexander Bustamente, um estudante do ensino médio de 18 anos, acredita que Pinochet foi importante para o Chile: "Alguns o chamam de ditador, mas ele também fez coisas boas".
Foram justamente os jovens que abalaram o Chile em 2019 com protestos em larga escala e, muitas vezes, violentos contra a desigualdade fruto do neoliberalismo imposto por Pinochet.
Desse mal-estar emergiu o governo de esquerda de Boric, que, no entanto, fracassou na tentativa de alterar a Constituição da ditadura. O Partido Republicano, de extrema direita, assumiu a liderança e agora guia um novo processo constitucional.
"A confiança dos mais jovens (...) se move de forma muito líquida, de um lado para o outro. São, em grande parte, jovens antipolíticos que votam no que funciona para eles", diz Rodrigo Espinoza, analista da Universidade Diego Portales.
Confrontada com a imagem de Pinochet, María Jesús Duarte, de 19 anos, hesita com certo desconforto: "Não tenho certeza. Salvador Allende, certo?... Ah, Pinochet. Não sei o que dizer".
A verdade é que os jovens "veem o golpe e a ditadura como uma conversa sobre o passado e não sobre o futuro", afirma Espinoza.
O pêndulo
No Chile, governam os herdeiros políticos de Allende, mas o Partido Republicano, que defende Pinochet, ganhou protagonismo. Os dois personagens foram reavaliados.
"Este ressurgimento" da imagem de Pinochet "do ponto de vista histórico é um pêndulo", afirma a historiadora Patricia Arancibia.
Segundo o estudo da Activa Research, 40% dos chilenos acreditam que Allende foi o responsável por conduzir o Chile ao golpe de Estado, enquanto metade tem uma imagem negativa do general Pinochet.
Em plena Guerra Fria, Allende quis implantar o socialismo no Chile. Seu experimento chamou a atenção da América Latina e da Europa, mas irritou os Estados Unidos, que apoiaram o golpe militar em meio à ameaça da expansão comunista.
Mas a figura de Allende ressurgiu e está presente em "Boric e sua geração, os ‘millennials’, (que) têm uma visão bastante mítica e positiva de um presidente que cometeu suicídio e foi sucedido por uma ditadura militar horrível", afirma Eduardo Labarca, autor de "Salvador Allende: Biografia Sentimental".
As vítimas
A ditadura executou 1.747 pessoas e prendeu ou provocou o desaparecimento de outras 1.469, das quais apenas 307 foram identificadas. Ainda não se sabe o paradeiro de 1.162 desaparecidos, cujo processo de busca foi assumido recentemente pelo Estado chileno.
Emilia Vásquez nunca teve notícias do seu filho Miguel Heredia, um militante de esquerda de 23 anos capturado em 1973. "Quando me disseram que o jogaram no mar, foi a coisa mais chocante, porque sempre quis encontrá-lo vivo", lamenta a senhora de 87 anos.
Próximo do regime militar há décadas, o Poder Judiciário começou a investigar as violações dos direitos humanos a partir de 1998. Atualmente, quase 250 agentes da ditadura estão condenados e presos, incluindo os responsáveis pela tortura e assassinato do popular cantor e compositor Víctor Jara.
Pinochet morreu em 2006, aos 91 anos, sem ter colocado os pés na prisão ou no tribunal.
O governo de Gabriel Boric e quatro ex-presidentes chilenos comprometeram-se, na última quinta-feira (7), a "defender a democracia das ameaças autoritárias", dias antes do 50º aniversário do golpe de Estado no Chile, um aniversário que aumenta cada vez mais a tensão política no país.
Os ex-presidentes de centro-esquerda Eduardo Frei (1994-2000), Ricardo Lagos (2000-2006) e Michelle Bachelet (2006-2010/2014-2018), juntamente com ex-mandatário de direita Sebastián Piñera (2010-2014/2018-2022), assinaram, ao lado de Boric, o chamado "Compromisso pela democracia", de acordo com o documento divulgado pelo palácio presidencial de La Moneda.
Os líderes, que governaram após o fim da ditadura, em 1990, assinaram a declaração em prol da democracia às vésperas da cerimônia comemorativa oficial, que será chefiada por Boric em 11 de setembro. "Queremos preservar e proteger esses princípios civilizatórios das ameaças autoritárias, da intolerância e do desprezo pela opinião do outro", diz o texto.
A oposição de direita também foi convidada a aderir ao compromisso, bem como à cerimônia, mas se recusou, alegando um possível "ambiente hostil", devido às acusações de promover discursos negacionistas em relação a um regime que deixou mais de 3.200 mortos e desaparecidos.
"Não podemos estar constantemente implorando a partidos políticos democráticos que adotem um compromisso tão simples, que foi elaborado precisamente com a intenção de que todos o assinem", disse o presidente Boric nesta quinta-feira.
Exceto pelo ultraconservador Partido Republicano, as forças de direita emitiram sua própria declaração na quarta-feira, na qual pediram o fortalecimento da democracia.
Com 37 anos, Boric é o presidente mais jovem do Chile e o único nascido após a ditadura. "Não se trata apenas de mais uma declaração, trata-se de um compromisso com o futuro. Essas discussões acabam afastando a população do que é realmente importante, que é a valorização da democracia", acrescentou o presidente.
Boric buscava selar um compromisso semelhante ao assumido pelos ex-presidentes uruguaios e pelo atual presidente Luis Lacalle Pou, que, no 50º aniversário do golpe de Estado em seu país, concordaram com um muito celebrado "nunca mais", em eventos que contaram com a presença de todos eles.
Há meio século, um general de peito inflado e óculos escuros quebrou a democracia chilena com um golpe sangrento. Fez com que milhares de pessoas fossem torturadas e executadas, mas longe da condenação unânime, a figura de Augusto Pinochet voltou a emergir com força no Chile.
O militar, que morreu em 2006 sem pisar na prisão ou em um julgamento judicial, é o símbolo da direita ultraconservadora que domina o cenário eleitoral chileno, quando, paradoxalmente, governa o herdeiro de esquerda de Salvador Allende, o presidente marxista que Pinochet derrubou há meio século, em plena Guerra Fria, com a aprovação dos Estados Unidos.
"Ele é o único ditador do Ocidente na história contemporânea que, 50 anos depois de dar um golpe de Estado, tem mais de um terço da população a seu favor", afirma a socióloga Marta Lagos, diretora do instituto de pesquisas Mori.
De fato, nunca antes Pinochet foi tão popular em uma democracia como é agora: 36% da população acredita que ele "libertou o Chile do marxismo", segundo as pesquisas de Cerc-Mori. Há uma década, Pinochet obteve o apoio mais baixo: 18%.
Um "estadista", afirma o advogado Luís Silva, do Partido Republicano e o mais votado em maio na eleição do conselho que redige uma nova Constituição que, em teoria, deveria substituir a promulgada pela ditadura (1973-1990).
O Partido Republicano, que controla esse conselho, ganhou força em meio à nostalgia dos pinochetistas e à preocupação da maioria dos chilenos com a insegurança (54% consideram-na o principal problema) e a chegada de migrantes.
"Nunca foi um estadista", respondeu o presidente Gabriel Boric, de 37 anos e que não era nascido quando ocorreu o golpe de Estado de 1973. "Ele foi um ditador, corrupto e ladrão", acrescentou o único dos cinco presidentes pós-ditadura que o condenou publicamente.
Em 11 de março de 1990, Pinochet entregou o poder após perder um referendo, mas permaneceu à frente do Exército por mais oito anos. Ele foi senador "vitalício" até 2002, quando renunciou.
Morreu aos 91 anos enquanto estava em prisão domiciliar por três casos de violações dos direitos humanos e um de desvio de verba pública. A sua ditadura de 17 anos deixou 3.200 vítimas entre mortos e desaparecidos.
A Concertación Democrática, uma coalizão de partidos de centro-esquerda, governou durante 20 anos após o fim da ditadura sem nunca mexer com a figura de Pinochet. Essa transição "branda" acabou por lhe dar "validade", explica a socióloga Lagos.
"Não é apenas a reprodução do que acontece em boa parte do mundo com o ressurgimento da direita mais radical, mas no Chile os governos de centro-esquerda pecaram por omissão", concorda o analista da Universidade de Santiago, Marcelo Mella.
Inspirado pela teoria do livre mercado dos "Chicago Boys", Pinochet aplicou o modelo de privatização sob o qual o Chile viveu anos de prosperidade e estabilidade econômica.
O ex-ministro da Concertación, Jorge Arrate, acredita que a figura do ditador permaneceu em vigor - com períodos de maior ou menor popularidade - enquanto "as instituições básicas do neoliberalismo" nunca foram reformadas.
Pinochet nunca foi julgado pelos crimes da ditadura, portanto também não recebeu sanção social unânime. Faltou tempo para condená-lo, afirma o ex-presidente do Supremo Tribunal entre 2010 e 2012, Milton Juica. Durante o regime militar, esse tribunal foi "completamente solidário com o regime", diz ele.
Somente em 2000 as denúncias de sequestro, estupro, assassinato e tortura começaram a ser investigadas em profundidade. Cerca de 250 militares estão presos por violações dos direitos humanos.
Ainda este ano, o Supremo Tribunal emitiu sentenças definitivas em casos emblemáticos como a "Caravana da Morte" ou o assassinato do cantor e compositor
"Muitos dos que diziam que nunca iriam para a prisão começaram a ir", diz Juica.