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Saudade que transforma a vida dos que ficam
Reportagem Especial

Saudade que transforma a vida dos que ficam

Como as memórias daqueles que morrem podem mudar os que ficam e transformar a dor em partilha de conforto e gratidão

Saudade que transforma a vida dos que ficam

Como as memórias daqueles que morrem podem mudar os que ficam e transformar a dor em partilha de conforto e gratidão
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As memórias que ficam dos que partem são capazes de mudar pessoas que, por sua vez, mudam outras. No dia de Finados, por exemplo, percebe-se essa movimentação em torno das lembranças. O que leva milhares de pessoas a visitarem túmulos de entes queridos, por exemplo, é esse apego às coisas boas daqueles que se foram. Apesar de parecer melancólico, a prática pode ser terapêutica.

Isso porque o luto, conforme explica a psicóloga Layza Castelo Branco Mendes, não é uma doença que precisa ser curada nem as pessoas que se foram são um trauma a ser esquecido ou superado. Pelo contrário, as memórias são uma maneira de manter legados vivos e de impedir que dores conhecidas atinjam mais gente.

Segundo Layza, existem autores que dizem que o luto é um processo que tem começo, meio e fim, embora sempre se possa ficar triste ao lembrar da pessoa que ama. “Existem outros, no entanto, que dizem que o luto não tem pausa, que faz parte da construção subjetiva da pessoa. Ou seja, quem vamos ser a partir desse momento”, explica.

Layza Castelo Branco Mendes, psicóloga, professora da Uece(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Layza Castelo Branco Mendes, psicóloga, professora da Uece

Hoje, a psicóloga, que também é professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), dedica-se a uma pesquisa sobre reconfigurações familiares após uma perda que aconteceu há muitos anos. Mais especificamente, ela ouve os parentes das vítimas do Voo 168, que caiu em 1982, em Pacatuba, na Região Metropolitana de Fortaleza, matando 137 pessoas.

O objeto de estudo tem um peso pessoal para Layza: seu pai, José Luiz Reis Mendes da Cunha, estava naquele voo. Na época, ela tinha 3 anos de idade. Apesar do curto convívio, lembra do pai como uma pessoa presente devido às lembranças que mantêm relacionadas a ele. “Uma delas é de um dia que tinha brigado com meu irmão e não queria ir para a escola. Apesar da minha mãe ter insistido, ele tomou meu partido. E eu não fui”, diz.

Às poucas memórias, somam-se os relatos de conhecidos, que também citam José Luiz como um homem cuidador. É dito inclusive que, aos sábados, ele tirava um tempinho para cuidar dos três filhos, cortando suas unhas e limpando suas orelhas, por exemplo. Essa é uma prática que Layza reproduz hoje. “São coisas simples da vida né? Mas que nos constroem. Eu adoro cortar unha e limpar o ouvidinho dos meus filhos. Coisa besta né? Mas deve vir dele. Cuidar do outro me faz pensar que a vida é importante e que tem sentido”, explica.

Lembranças de um aniversário 

A falta e a presença de José seguiram na vida pessoal e profissional de Layza que, durante toda sua carreira, lidou com jovens no processo de luto. Segundo ela, tudo ocorreu de forma inconsciente até que uma pequena paciente a questionou sobre isso. “Perguntou: ‘Tia Layza, por que você decidiu trabalhar com criança?’ Nunca tinha pensado nisso, mas na hora falei no impulso: porque acho que fui uma que precisou de ajuda”, relata.

Entretanto, ela não vê como algo negativo o fato do convívio com a morte permear sua jornada de vida. Pelo contrário, a psicóloga afirma que passou a enxergar a vida com mais leveza. “Costumo dizer que não me apego a pequenas coisas, ‘quebrou uma coisa, bateu um carro, foi assaltado’, isso não tira minha energia. O importante é afeto, carinho e amor. Talvez essa diferença possa estar nesse evento de ter pedido meu pai”, pondera.

A própria pesquisa sobre o voo 168 mudou sua perspectiva de vida e sua maneira de lidar com a morte do pai. Segundo ela, o tema era delicado na família, um assunto intocado. A partir do contato com os parentes das vítimas, ela passou a questionar como os próprios familiares reagiram. “Fui perguntar para minha mãe questões que nunca tinha feito. E ela me respondeu. Perguntei para minhas tias, irmãs dele, para minha vó, sogra dele. Não sabia como elas tinham recebido a notícia, ninguém tinha perguntado”, comenta Layza.  Para assistir ao filme "Voo 168", clique aqui  “Séries e Docs” do O POVO+

Voo 168 caiu em Pacatuba, no Ceará, em 1982(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Voo 168 caiu em Pacatuba, no Ceará, em 1982

Mesmo tendo ocorrido há quatro décadas, a psicóloga identificou sinais de luto nos entrevistados para o estudo, com sentimentos como raiva, culpa, tristeza, angústia, falta e solidão. Segundo ela, isso se deve a fatores que dificultam o processo e estão presentes nesse caso: 1) a perda de pessoas jovens; 2)a morte inesperada; 3) a falta de um corpo para se despedir.

 

Agravantes que dificultam o luto 


Para esta reportagem, foram ouvidas pessoas que passaram por situações com as mesmas características. Entretanto, vale frisar que a complexidade é bem maior. Layza explica que outros fatores entram em jogo, como as características individuais de cada um e a relação que se tinha com a pessoa falecida. “O que faz com que dois irmãos que passaram pela mesma coisa reajam de forma diferente? Muda de pessoa para pessoa”, explica.

 

 

Você está em todas as crianças

 

Ao todo, Demétrio Jereissati e sua família criam quatro cachorros e três gatos. Alguns deles foram adotados por estarem em situação de abandono. Esse costume foi herdado de seu filho Dimitri, que amava animais. “Adotamos essa prática dele, é uma forma de mantê-lo vivo”, explica.

Demétrio é fundador do Instituto DimiCuida, que dentre outras coisas, orienta e previne contra os perigos das “brincadeiras perigosas”, disseminadas especialmente online e que acabam com a vida de jovens, como o seu filho. Dimitri faleceu em 2014, aos 16 anos, em decorrência de um desafio de asfixia. O Instituto, portanto, foi criado para mitigar os males desses jogos em outras famílias. Segundo o empresário, a iniciativa visa “misturar as vontades e os sonhos do menino a uma forma de evitar que o que aconteceu com ele aconteça com outras pessoas”.

Isso porque o Dimicuida também trabalha na sensibilização para os cuidados com animais de rua promovendo proteção, cuidados e resgates. Além disso, conta com ações de capacitação , qualificação profissional e oportunidades de trabalho na área do turismo ecológico e de atrações naturais. O turismo era o desejo profissional de Dimitri, que amava viajar tendo, inclusive, o sonho de conhecer Machu Picchu. Em 2022, Demétrio chegou a visitar o lugar, onde enxergou o filho por toda parte.

Memória gravada em Machu Picchu "Uma jornada pessoal", 2022

                


As ações do Dimicuida dividem-se em partes, dentre elas há a prevenção. As aulas são direcionadas a crianças e adolescentes, de 2 a 18 anos, além dos próprios pais e de profissionais da saúde e da segurança, como bombeiros. Integra também esta etapa uma pesquisa acadêmica, que visa entender as motivações e os comportamentos dos jovens, além dos novos desafios que surgem todos os dias. Saiba mais clicando aqui.

Mas o Instituto também cuida do após. As consequências das brincadeiras perigosas ainda afetam muitas famílias. Nesse caso, é feito um trabalho de acolhimento, que revive memórias em Demétrio e sua família. “É horrível para a gente, cada vez passa o filme de novo. Já tivemos relatos de pais que identificaram que os filhos faziam essas práticas e conseguiram evitar, mas a gente não consegue chegar em todo mundo”, diz.

Apesar da dor, o empresário afirma que não consegue imaginar sua experiência com o luto sem o Instituto. “O dia seguinte veio para a gente ressignificar e preencher a vida da gente. Se com essa conversa diminuir a dor de uma pessoa, de uma família, já vai valer a pena todo esse tempo que passamos conversando”, afirma.

Demétrio Jereissati fundou o Instituto DimiCuida, após perder o filho, Dimitri(Foto: Mateus Dantas / O POVO / 06-05-2019)
Foto: Mateus Dantas / O POVO / 06-05-2019 Demétrio Jereissati fundou o Instituto DimiCuida, após perder o filho, Dimitri

O cuidado com os outros pode dar sentido à vida. Pelo menos uma vez por semana o jornalista Tarcísio Matos se dirige à Associação Peter Pan para atuar no “Raio de Sol”. Nesse programa, em específico, voluntários entram nas enfermarias e lidam com crianças e adolescentes “em maior dificuldade, do ponto de vista do tratamento” do câncer. A faixa etária é dos zero aos 18 anos de idade.

Na primeira vez que visitou a Associação, Tarcísio tinha 46 anos, foi em 2003. Acompanhava um amigo que cantava e contava histórias para a meninada. O jornalista afirma que a partir daí, ao observar a diferença que a ação provocou, ficou encantado com a possibilidade de ajudar pessoas. E lá se foram 20 anos como voluntário.

Segundo ele, os plantões funcionam como uma visita a um amigo. A função dos voluntários seria escutar e dizer na hora correta aquilo que alivia. “Não é sofrer com o outro, é dividir essa dor. Eu olho para aquelas pessoas e penso: essa mãe é minha irmã, essa criança é minha neta”, diz.

Tarcisio Matos, jornalista, é voluntário na Associação Peter Pan(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Tarcisio Matos, jornalista, é voluntário na Associação Peter Pan

Com algumas crianças, Tarcísio chegou a conviver por três anos. Viu-as entrar, conheceu os sonhos e gostos. Segundo ele, na hora da partida, costuma encontrar acalento em sua religião: o espiritismo. Para o jornalista, apenas o corpo é finito, a alma, por sua vez, segue eternamente. “Dia de Finados não existe pra mim, a morte não é um fim. Eu respeito o dia, mas não é um fim”, explica.

Isso não significa, entretanto, que não haja sofrimento. Por mais que se tenha a noção da “finitude do ser”, quando ela chega, arrebata, “O sentimento que fica é muito forte. De uma pessoa que a conhecemos, que brincamos, jogamos. O espiritismo facilitou minha compreensão, mas eu não bani de mim a dor da perda. Poxa, era alguém que estava perto de mim, isso me dói muito”.

No contato com a dor dos outros, a troca de experiência é muito intensa. Para Demétrio e para os voluntários, entretanto, tudo vale a pena. O que levam para a vida é a noção de que é preciso aproveitar tudo com mais alegria e sabedoria. É como diz Tarcísio Matos: “Esse envolvimento, essa troca de amor é para sempre”.

Saiba como doar para a Associação Peter Pan, clicando aqui.

 

 

Você, meu herói


Flávio Félix é um homem simpático, caminha com um sorriso no rosto e gosta de conversas. Dentre suas muitas histórias, ele conta de um certo dia no Icaraí (Caucaia-CE), quando encontrou um homem que afirmava integrar o Corpo de Bombeiros Militar do Ceará. Resolveu puxar um papo, perguntando se o bombeiro por acaso não conhecia um tal de Flaverton (sem acento mesmo) que também fazia parte da entidade.

 Flávio Félix, pai do bombeiro Fleverton Félix, que teve o seu nome na turma de formandos de 2020, como homenagem(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Flávio Félix, pai do bombeiro Fleverton Félix, que teve o seu nome na turma de formandos de 2020, como homenagem

“E ele disse que tinha conhecido, que era um rapaz bom e muito simpático. Encheu de elogios. Quando terminou eu disse: ‘Pois é essas qualidades que você acabou de dizer, são para o meu filho Fláverton’”, diz Flávio. Com apenas 36 anos, o rapaz morreu de insuficiência respiratória, causada por complicações da Covid-19. Tendo ingressado no Corpo de Bombeiros em 2009, Fláverton era responsável por levar os infectados para os hospitais de Fortaleza.

Essa prática de não se identificar enquanto faz perguntas sobre o filho para integrantes dos bombeiros virou um costume na vida de Flávio. Segundo ele, em todas as interações a reação das pessoas é a mesma: de admiração por quem o jovem havia sido em vida, uma pessoa feliz e engajada em suas lutas.

Prazer em reviver momentos passados juntos 

Quando começou a sentir os sintomas do vírus, Fláverton Félix Queiroz dos Santos relutou em ir ao hospital e, quando foi, resolveu não contar a ninguém, para evitar preocupações. Confidenciou apenas à irmã que, dias depois, com a piora do caso do bombeiro, teve que fazer o comunicado aos pais. Vinte e nove dias após ser internado, o caçula da família faleceu em 18 de maio de 2020.

Flávio, então, concentrou sua energia em ajudar outras pessoas. Construiu uma casa de apoio com o nome do filho, no bairro Barra do Ceará, onde vive. A princípio, a iniciativa era um pouco maior do que é hoje: contava com um espaço próprio e pessoas encarregadas de serviços. Devido a falta de verbas, todos os recursos foram transferidos para a casa do pai de Flaverton. Dentre eles destacam-se aparelhos para aferir pressão, cadeiras de rodas e almoço a ser distribuído.

Flávio Félix, pai do bombeiro Fleverton Félix, que teve o seu nome na turma de formandos de 2020, como homenagem.  (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Flávio Félix, pai do bombeiro Fleverton Félix, que teve o seu nome na turma de formandos de 2020, como homenagem.

Mesmo sendo querido por tantas pessoas, o sepultamento de Fláverton contou com 6 pessoas, devido ao isolamento social. O caixão estava fechado. A mesma situação (de perda e falta de possibilidade de enterro) acometeu centenas de milhares de famílias no Brasil. Ao todo, foram 706.531 óbitos pela doença no País, sendo 28.217 no Ceará. Dados são das Secretarias Estaduais de Saúde, referentes até 2023.

Aila Souza perdeu o pai, Francisco (Chico) Pedro e a mãe, Socorro, nesse período. Distante 320 km de Fortaleza, ela é de Acopiara, município localizado na Região Centro-Sul do Estado. No local, 185 pessoas morreram em decorrência do Covid-19. Como se trata de uma cidade pequena (44.962 habitantes), a chance do falecido ser um conhecido seu ou de um amigo, é maior.

Aila é uma pessoa quieta e se expressa com frases curtas e diretas. Sobre a infância, convivendo com os pais, diz que foi o melhor momento da sua vida. Já a pandemia, o pior. Segundo ela, quando pequena a vida era tranquila, brincava muito com os 8 irmãos e as primas.

O intervalo da morte da mãe para a do pai de Aila foi de pouco mais de uma semana: Socorro faleceu em 31 de julho de 2020 e Chico no dia 12 de agosto. O velório também foi motivo de dor para a filha. “Você vê o corpo da sua mãe numa funerária, abandonado. Meu irmãos estavam lá fora e ela lá dentro sozinha, depois da porta de vidro. Caixão lacrado, a gente lembra como era”, comentou.

Dois anos depois, houve outra morte inesperada: a de Manoel, seu irmão, em um acidente de trânsito. "Ainda estava bem recente. Tive que relembrar tudo” explica a comerciante, que passou a direcionar seus cuidados aos três filhos. Em especial, focou nos dois mais novos, um menino e uma menina gêmeos, que ainda vivem com ela.

Legado materno que ficou

Esse é o principal legado de seus pais: o cuidado com os familiares e com os amigos. Aila conta que, apesar do esforço, tem se dedicado mais aos outros. Na época da pandemia, chegou a conhecer muita gente que havia passado pelo mesmo que ela. “Uma amiga minha perdeu o irmão e o tio, também em um período curto. Ela me ligou e ficou chorando, tentei consolar, mas não aguentei e chorei também. No fim foi bom, ela disse que se sentiu aliviada, dividimos a mesma dor”, afirma.

A pandemia deixou muitos Flávios e Ailas pelo Brasil. Pessoas que perderam entes devido a algo que não sabiam exatamente o que era. Despedidas sem acolhimento. Sobre essa dor, o pai de Fláverton, afirma que é um sentimento que sempre estará presente. “Você vai sempre conviver, mas quando passamos a sentir a dor em casa, ficamos mais humanos. Passamos a pensar mais nos outros e a lutar para honrar quem foi embora”, diz.

 

 

Você ainda terá justiça, meu filho

 

Leidiane Rodrigues conta a história da primeira vez que seu filho Mizael montou em um cavalo. Foi em um desfile de sete de setembro na cidade onde moravam: Chorozinho, a 68,8 km de Fortaleza. O menino tinha cismado que queria galopar e mais: vestido com roupas sociais. 

Leidiane Rodrigues da Silva, 39, mãe de Mizael Fernandes(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Leidiane Rodrigues da Silva, 39, mãe de Mizael Fernandes

Com medo, ela foi apelar para o diretor da escola que, como de costume, tomou o partido do menino estudioso, autorizando a brincadeira. E foi assim que Mizael, com seis anos de idade, andou confiante naquele animal muitas vezes maior do que ele. “Parecia que o cavalo já conhecia”, diz Leidiane sobre o princípio do sonho do filho, que cresceu desejando ser um grande vaqueiro como os tios. Vontade foi incentivada com carinho pela mãe.

É meio-dia quando ela relembra. Em um certo momento para e diz pensativa: “Nessa hora ele chegava do colégio e ficava conversando comigo sobre a escola. Eu sinto falta dele falando comigo. Eu sinto falta dele andando de cavalo com os tios e soltando beijos para mim. Sinto falta de dizer: vá com Deus, meu filho”.

 

Imagem de um sonho que permanece

Em um caso brutal e de ampla comoção, Mizael foi morto em 1º de julho de 2020, durante uma invasão da Polícia Militar à casa da irmã de Leidiane, onde o menino dormia. Atingido por 13 tiros, o garoto tinha apenas 13 anos. Havia sido confundido, segundo a PM, com um “criminoso”. Após o crime, os policiais ainda adulteraram a cena, dificultando investigações.

“É muito doloroso a gente ver como acontecem as coisas. As lembranças ficam. Ele não volta mais para mim, mas fica dentro de mim. Tive que tomar remédio para ansiedade, para depressão. Tudo isso depois que meu filho foi morto por um policial”, afirma Leidiane Rodrigues.

Um dia após a conversa dela com a reportagem, a manchete d´O POVO exibiu uma atualização do caso: três anos depois, Enemias Barros da Silva havia sido demitido da Polícia Militar do Ceará. O sargento é o principal acusado do assassinato. “A justiça que fica é só a de Deus, que não falha. Meu filho morreu e quem matou está bem. Agora para a família não está tudo bem, né?”, diz a mãe de Mizael.

Capa do Jornal O POVO, de 27 de outubro de 2023, trazia uma atualização do caso Mizael(Foto: O POVO)
Foto: O POVO Capa do Jornal O POVO, de 27 de outubro de 2023, trazia uma atualização do caso Mizael

A irmã de Leidiane, Lizangela Rodrigues, principal testemunha do crime, está desaparecida desde 7 de janeiro de 2023. Já seu filho mais velho, irmão de Mizael, mora em outro Estado após ter sido incluído no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas. Com tanta dor, a busca por justiça é a motivação para seguir em frente.

Nessa luta, Leidiane não está sozinha. Segundo ela, um dos poucos momentos de consolo foi quando recebeu uma ligação de Edna Carla Souza Cavalcante, mãe de Álef Souza Cavalcante, morto aos 17 anos na Chacina do Curió. Além do jovem, outras 10 pessoas foram assassinadas em bairros da Grande Messejana, em Fortaleza, em uma operação da PM no ano de 2015. 8 anos depois, em junho de 2023, quatro policiais militares réus do caso foram condenados a mais de 1.100 anos de prisão.

Leidiane da Silva Rodrigues "Todos querem justiça, eu também quero"(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Leidiane da Silva Rodrigues "Todos querem justiça, eu também quero"

De acordo com a mãe de Mizael, na chamada, Edna comentou sobre um grupo que mantém com mães envolvidas em experiências similares, no qual conversam e trocam apoio. “Quando eu tinha uma recaída elas me levantavam, todas as mães. Como elas, eu não vou desistir. Todas querem justiça e eu também quero”, afirma Leidiane.

Ela própria é hoje um exemplo de luta para as demais pessoas, especialmente as negras e pobres, que são as que mais morrem por violência policial, no Ceará e no Brasil.

Obviamente seguir não é fácil, Leidiane teme todos os dias pela própria vida e pela perspectiva de que a justiça nunca venha. “A gente não sabe o que eles são capazes de fazer. Quer dizer, sabemos, por isso temos medo. Quando isso acabar, eu quero poder ir aonde ele está e dizer: pronto, meu filho, está tudo bem”, diz.

Para as demais mães, ela incentiva que lutem por justiça. “Vão atrás dela. Porque a pior coisa que podemos fazer é deixar o crime impune. A gente que é mãe, a gente cria, dá amor e carinho para vir alguém e acabar com tudo. Isso não existe. Vão atrás”, afirma.

 

 

Você está nos livros, nas músicas e nas conversas com Deus

 

“Tenho ciência do quão ilógico é fazer cartas para um morto, entretanto, também sei como em agonia preciso desabafar. [...] Não foi sempre assim? Não lhe contava tudo? Por que raios deveria imediatamente mudar, só por não tê-la na minha frente?”

Essas palavras foram escritas pela jornalista e professora Erilene Firmino uma semana após ter perdido a irmã Lia, falecida aos 53 anos, vítima de um câncer, em 2013. Nos dias que seguiram, Eri, como é conhecida, se viu obrigada a lidar com questões pragmáticas: dar a notícia, assumir as responsabilidades da irmã. Isso tudo fez no automático, sem sentir. A única maneira que encontrou de se expressar foi como sempre fazia: sozinha, escrevendo. E escreveu, para quem sempre a ouvia.

Com uma diferença de idade de 6 anos, as duas só se tornaram confidentes em uma ocasião na infância, quando os pais tiveram que se ausentar para cuidar da filha Leda, que havia adoecido. Os outros 6 irmãos, então, se dividiram nos cuidados e Lia ficou encarregada de Eri, que tinha 11 anos. A partir daí foram incontáveis as noites conversando sobre a vida, em casa e na praia, onde constantemente iam.

"Por enquanto é isso". E um livro ficou pronto

Seis meses depois da morte de Lia, a mãe de Eri, Suzete, também faleceu, devido às consequências de um AVC. Enquanto isso, seu pai, Zezinho, sofria com o mal de Alzheimer, descoberto em 2012. Sobre esse período, que durou cerca de três anos, a jornalista conta que no tempo que restava para si mesma, sofria. Até que chegou o momento em que sentiu que não aguentava mais. “Teve uma hora que eu cansei. E fora que ela [Lia] ia me esculhambar, né? Se me visse daquele jeito”, comenta.

O primeiro passo foi largar o emprego. Ficou em casa e decidiu escrever, mas não era tão simples: não gostava de nada que fazia. Tudo só mudou no dia em que mostrava mais uma de suas cartas, endereçadas à Lia, para sua psicóloga. “Teve uma hora que eu parei e disse: ‘isso aqui não podia ser um livro não?’. Aí minha psicóloga me disse assim: demorou para perceber né, Eri?’”.

E assim foi nascendo “Manga verde com sal”, publicado em 2023. Conforme ia escrevendo, Eri sentia as páginas sendo viradas. Assim, quando pôs o ponto final do livro, chorou, com a sensação de que, finalmente, havia encerrado uma fase. “Falei para a minha terapeuta: por enquanto é isso. Vou lá arranjar mais problemas para você e depois eu volto”, brinca.

A jornalista cearense Erilene Firmino lança em abril o livro "Manga Verde Com Sal"(Foto: Nayana Melo/Divulgação)
Foto: Nayana Melo/Divulgação A jornalista cearense Erilene Firmino lança em abril o livro "Manga Verde Com Sal"

Esse parece ser um ponto em comum. Quase todas as pessoas entrevistadas para esta reportagem citaram as artes e a cultura como formas de lidar com o luto. Além desse fator, apenas a religião foi tão onipresente.

Essa última, de acordo com a psicóloga Layza Mendes, citada no início do material, também consistiu em um tópico recorrente em sua pesquisa. Das 27 pessoas entrevistadas sobre os parentes perdidos no Voo 168, apenas uma afirmou acreditar que a vida termina neste plano. O restante falou em espiritualidade ou em uma religião em específico como continuidade da existência. “Entendi que essa forma de pensar ajudou nesse processo de luto”, diz.

Para o jornalista Tarcísio Matos, voluntário na Peter Pan, a religião facilita a compreensão, promovendo um consolo àqueles que lidam com o sofrimento. “Eu nunca vi uma experiência em que Deus fosse tão exaltado, como é lá dentro [da associação]. E isso pelos que curam e pelos pais. É uma força maior que anima. É acreditar”, diz.

Voltando para as artes, a música foi, de longe, a expressão cultural mais citada. Alguns cantam (como Tarcísio), outros ouvem sem falar nada; Flávio Félix, por exemplo, ao dar play na marcha fúnebre que tocou no funeral de seu filho, fecha os olhos e diz: “Está ouvindo? O silêncio”.

Erilene Firmino, jornalista, escritora e professora da Universidade Federal do Ceará(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Erilene Firmino, jornalista, escritora e professora da Universidade Federal do Ceará

Além dos sons, Demétrio Jereissati, do Instituto DimiCuida encontrou na fotografia uma forma de relembrar o filho. Segundo ele, em suas viagens, ao sacar a câmera, Dimitri o olhava e ria chamando-o de PQF (pensa que é fotógrafo). Tempos após a morte do garoto, o empresário decidiu se dedicar a essa vontade que tinha, chegando a concorrer e ganhar prêmios com suas imagens. Em todas elas, pensa no filho.

Por fim, há a literatura com a professora Erilene. Segundo ela, após a publicação recebeu diversos relatos impactantes, com os quais se emocionou muito. “E eu só queria dizer para as pessoas que por mais louco que possa parecer a gente não morre. Eu nem sabia que podia viver sem a Lia, mas eu continuei vivendo. Não tem isso de ir embora, onde é que a Lia tá? Tá em mim, está nas filhas dela, está nas nossas casas, nas minhas histórias”, afirma.

Hoje ela ri e se diz surpreendida com tudo. A jornalista narra a escrita do livro como um processo no qual se “rasgou toda, igual uma doida” para pessoas que hoje a agradecem.

Ao contar a história, entretanto, ela vacila: ri em uns momentos, enche os olhos em outros, como costuma ocorrer com a maioria de nós, quando se trata de lembranças de pessoas amadas que se foram. É a saudade agridoce. São as memórias que, ainda bem, ficam. Seja nos livros, nos lugares, nas lutas e, no caso de Eri, na sobrinha-neta recém-nascida, nomeada em homenagem à avó: Ana Lia. “Minha manga agora é rosa e bem docinha”, diz.

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