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Nobel 2023: sobre o que foram as pesquisas premiadas em medicina, física e química
Reportagem Especial

Nobel 2023: sobre o que foram as pesquisas premiadas em medicina, física e química

Em outubro, o comitê do prêmio Nobel laureou estudos sobre as vacinas de RNA mensageiro (medicina), movimentação de elétrons (física) e emissão de cor em nanodimensões (química)

Nobel 2023: sobre o que foram as pesquisas premiadas em medicina, física e química

Em outubro, o comitê do prêmio Nobel laureou estudos sobre as vacinas de RNA mensageiro (medicina), movimentação de elétrons (física) e emissão de cor em nanodimensões (química)
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A pandemia da Covid-19 foi o acontecimento mais desafiador da última década. Alguns teóricos, como a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, acreditam que o evento marcou, de fato, o fim do século XX, além de mostrar os limites da tecnologia. Assim como Eric Hobsbawm, que dizia que o século XIX só terminou após a Primeira Guerra Mundial, Lilia defende que é a experiência humana que constrói o tempo.

Antropóloga Lilia Schwarcz acredita que a Covid-19 marca o fim do século XX(Foto: Renato Parada/Divulgação)
Foto: Renato Parada/Divulgação Antropóloga Lilia Schwarcz acredita que a Covid-19 marca o fim do século XX

Na área da medicina, os avanços aconteceram às pressas. Um deles foi a produção de imunizantes em tempo recorde. Os homenageados do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2023 foram escolhidos, justamente, por desenvolverem uma tecnologia que permitiu a produção de vacinas eficazes de forma muito mais rápida.

“Os laureados contribuíram para uma taxa de desenvolvimento de vacinas sem precedentes, durante uma das maiores ameaças que a saúde humana já enfrentou na era moderna”, cita o comitê do Nobel. “[Eles foram escolhidos] pelas descobertas relacionadas às modificações nas bases nucleotídicas que permitiram o desenvolvimento das vacinas de RNA mensageiro (mRNA) contra a Covid-19."

A húngara Katalin Karikó e o estadunidense Drew Weissman vão repartir, de forma igualitária, a gratificação de 11 milhões de coroas suecas — equivalente a cerca de R$ 5 milhões. “As entrevistas que a Karikó tem dado são diferentes da maioria das pessoas que ganhou o Prêmio Nobel”, destaca Carlos Roberto Koscky Paier, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (Famed/UFC).

Katalin Karikó e Drew Weissman ganharam o Nobel de Medicina(Foto: lll. Niklas Elmehed / Prêmio Nobel / Divulgação)
Foto: lll. Niklas Elmehed / Prêmio Nobel / Divulgação Katalin Karikó e Drew Weissman ganharam o Nobel de Medicina

“O pessoal [que vence] costuma ficar empolgado, só fala sobre o lado positivo da descoberta, das alegrias. A Karikó é interessante porque ela sofreu muito e deixa isso claro. No início, a pesquisa que rendeu o Nobel deu muito errado”, explica.

“Ela teve resultados negativos por tanto tempo que chegou a ser demitida de seus primeiros empregos nos EUA porque ela insistia nessa proposta de pesquisa, e as pessoas não admitiam que desse errado. Existe uma ditadura do positivo. Tudo tem que dar certo”, adiciona.

Carlos usa a situação como exemplo para a produção de pesquisa científica no Brasil. “A pesquisa não nasce pronta. É importante que o financiamento seja de longo prazo e é importante que não pare. [Isso] é o maior problema do nosso país. O financiamento é muito variável e isso é um problema”.

 

 

Como as vacinas funcionam?

 

O professor da UFC, faz uma analogia: os agentes causadores de doenças agem como se fossem um Cavalo de Tróia O termo remonta à Ilíada, épico grego de Homero que descreve a Guerra de Troia, evento do historicidade disputada. Nela, os gregos venceram após presentearem os troianos com um imenso cavalo de madeira oca, secretamente ocupado por soldados, que puderam abrir os portões para invadir a cidade murada . “Eles invadem [o organismo] de forma sorrateira para poderem se multiplicar e causar a doença”, explica.

“Os vírus, por exemplo, possuem uma espécie de chave molecular que literalmente abre as portas das células para que eles entrem, como se fossem um material microscópico que o material precisa. Eles imitam esses materiais”.

Os imunizantes, então, agem como se fossem um Cavalo de Tróia vazio. A estratégia dos gregos só funcionou porque era algo inédito. Se tivessem feito antes, os troianos ficariam desconfiados. Não cairiam tão facilmente e esse é, justamente, o objetivo das vacinas. Preparar o organismo para ameaças futuras.

“Ela [o imunizante] imita o organismo causador de doença, mas não é [esse tipo] de organismo. Então, quando você fornece uma vacina para o nosso organismo, dá tempo para que as células de defesa inspecionem esse agente externo e aprendam a se defender dele”, explica.

 

 

Vacinas de RNA mensageiro

 

A vacina de RNA mensageiro, responsável pelo Nobel deste ano, segue a mesma lógica do Cavalo de Tróia vazio. A pesquisa começou a ser desenvolvida para combater o vírus da gripe, mas o foco mudou após o início da pandemia de Covid-19.

Seringas e frascos da vacina Pfizer-BioNTech, que foi desenvolvida com a tecnologia do mRNA(Foto: JACK GUEZ / AFP)
Foto: JACK GUEZ / AFP Seringas e frascos da vacina Pfizer-BioNTech, que foi desenvolvida com a tecnologia do mRNA

“Houve uma evolução na pesquisa de vacinas”, destaca o professor Carlos Roberto Koscky Paier. "No início, a gente usava os próprios microrganismos na forma atenuada. Ou seja, com defeito, [...] não tinham capacidade de causar a doença. Depois, a gente passou a usar pedaços desses microrganismos, as sublimidades. [Após isso], passamos a usar, moléculas de DNA que continham os genes. Ou seja, as receitas das proteínas dos microorganismos, dos agentes causadores de doenças”.

De acordo com o professor, as vacinas de DNA começaram a ser usado antes das de RNA por serem moléculas muito mais estáveis. “Se você fizesse uma vacina de DNA, ele era um produto muito mais fácil de se mexer, de transportar e armazenar. Não se estraga com facilidade”.

O RNA, por outro lado, é muito instável. “Essa foi a grande dificuldade da pesquisadora [Karikó] no início da carreira dela [...], mas chegou um momento que ela conseguiu descobrir algumas formas de mRNA que eram estáveis o suficiente para trabalhar como se fossem vacinas”.

Apesar da instabilidade, o RNA é mais fácil de ser lido pelas nossas células. “Embora seja uma molécula, menos estável, na hora que você consegue estabilizá-la e inserir dentro das nossas células, a leitura da receita, do gene, da proteína do microorganismo é muito mais fácil. Então, você consegue produzir [de forma] muito mais rápida e em maior quantidade essas proteínas”, explica o professor.

 

 

Os imunizantes e a desinformação

 

Durante as campanhas de vacinação, a velocidade de produção dos imunizantes costumava ser utilizada por grupos negacionistas. “Ouvi de muitas pessoas: ‘eu não confio em vacinas que são produzidas tão rapidamente’. As pessoas, mesmo médicos, enfermeiros e farmacêuticos, simplesmente não entendiam que as ferramentas biotecnológicas utilizadas para desenvolver esses tipo de vacina eram muito diferentes das tradicionais, e permitiam o desenvolvimento em alta velocidade, mesmo sem desprezar os critérios éticos para o desenvolvimento seguro de uma vacina”, cita Carlos.

A medicina, de acordo com o professor, entrou na era da genética e biologia molecular. As evoluções, de acordo com ele, estão acontecendo de forma tão rápida que até os profissionais estão com dificuldade de se adaptar. “É um terreno fértil para grupos interessados em espalhar desinformação”.

 

 

Nobel de Física: attosegundos

 

Quase todo mundo já ouviu falar em elétrons: na época da escola, do vestibular ou em algum outro momento. Você deve se lembrar que elas são partículas minúsculas e de carga negativa que giram em torno do núcleo atômico. Eles possuem massa 1836 vezes menor do que a dos prótons e nêutrons. São praticamente invisíveis.

Pierre Agostini, Ferenc Krausz e Anne L'Huillier venceram o Nobel de Física(Foto: lll. Niklas Elmehed / Prêmio Nobel / Divulgação)
Foto: lll. Niklas Elmehed / Prêmio Nobel / Divulgação Pierre Agostini, Ferenc Krausz e Anne L'Huillier venceram o Nobel de Física

Pois bem, o Nobel de física deste ano foi para a franco-sueca Anne L'Huillier, o francês Pierre Agostini e o austro-húngaro Ferenc Krausz. Eles desenvolveram “uma forma de criar pulsos de luz extremamente curtos [medidos em attosegundos], que podem ser utilizados para medir os processos em que os elétrons se movem ou mudam de energia.” Estes pulsos podem ser usados para “fornecer imagens de processos dentro de átomos e moléculas”, conforme o júri da premiação.

Anne L'Huillier, além disso, se tornou a quinta mulher a vencer o prêmio de física desde a criação do Nobel, em 1901. "Estou muito emocionada [...] Não há muitas mulheres que conseguem este prêmio, então é muito, muito especial", disse a pesquisadora.

Ela, agora, se junta a um grupo seleto de mulheres vencedoras do Nobel de Física. São elas: Marie Curie (1903), Maria Goeppert Mayer (1963), Donna Strickland (2018) e Andrea Ghez (2020).

 

 

O que são attosegundos?

 

De acordo com o comitê do Nobel, a contribuição dos laureados “permitiu investigar processos que eram tão rápidos que se acreditava ser impossível de estudar”. Para isso, eles trabalharam, entre os anos 1980 e 2000, com uma unidade de medida chamada de attosegundos. O objetivo, como já citado, era captar a movimentação dos elétrons.

“Suponha que você queira fotografar as pás de um helicóptero paradas. Ou ver uma bola caindo muito rápido. Você precisaria de uma câmera muito rápida, que abre e fecha [o obturador] em [um período de] tempo muito curto. Isso se tiver luz suficiente”, explica Carlos Lenz César, professor titular do Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará (UFC). “Se você quer fazer o mesmo com os elétrons, [você] precisa de pulsos de attosegundos. Porque o elétron é muito rápido”.

Um attosegundo equivale a um quintiloníssimo de segundo (1×10⁻¹⁸ ou 0,000000000000000001). Só para ter uma noção, dentro de um único segundo existem tantos attosegundos quanto o número de segundos que existem desde a origem do Universo, há cerca de 14 bilhões de anos atrás.


Tudo começou com Anne L’Huillier em 1987. Ela descobriu que vários tons diferentes de luz surgiam quando um laser infravermelho era transmitido através de um gás nobre. Esses tons de luz, conforme os resultados do estudo, eram mais rápidos do que o próprio laser. Eles foram chamados de overtones — ou sobretons. Em condições certas, os overtones podem se alinhar e, assim, formar pulsos de attosegundos.

Em 2001, Pierre Agostini conseguiu produzir e observar uma série de pulsos de luz consecutivos. Cada pulso durava apenas 250 attosegundos. Na mesma época, Ferenc Krausz trabalhava em um outro experimento, que permitia isolar um único pulso de luz com duração de 650 attossegundos. Os inventos podem ser utilizados para gerar “retratos” de propriedades microscópicas da matéria, como os elétrons.


 “Desde o começo do século XX e final do XIX, a humanidade tem tentado entender a física de como os elétrons se comportam [...] e agora você tem condições de olhar para toda aquela teoria e dizer ‘tá aqui o elétron se comportando dessa forma’”, diz o professor da UFC.

“Qualquer reação química começa com a movimentação de elétrons”, continua o pesquisador. “Então, não há dúvidas de que existirão aplicações. Toda a vida, na humanidade, que a gente conseguiu entender profundamente [uma Ciência] [...] dentro de pouco tempo essas coisas foram virando tecnologia”.

 

 

Nobel de química: os pontos quânticos

 

Para muitos, a nanotecnologia parece coisa de filme. Lembra o Homem de Ferro, o Master Chief, algum livro do Asimov, etc. Essa tecnologia, no entanto, está muito mais próxima da realidade do que a gente imagina. O Nobel de química deste ano foi relacionado à área.

Moungi Bawendi, Louis Brus e Alexei Ekimov venceram o Nobel de Química(Foto: lll. Niklas Elmehed / Prêmio Nobel / Divulgação)
Foto: lll. Niklas Elmehed / Prêmio Nobel / Divulgação Moungi Bawendi, Louis Brus e Alexei Ekimov venceram o Nobel de Química

Assim como a premiação de física, foram três laureados: o francês Moungi G. Bawendi, o estadunidense Louis E. Brus e o russo Alexei I. Ekimov. De acordo com o júri, eles foram premiado pelo desenvolvimento dos pontos quânticos.

“Quando a gente fala de pontos quânticos, a gente tá falando de nanotecnologia”, destaca Samuel Veloso Carneiro, professor do Departamento de Química Analítica e Físico-Química da Universidade Federal do Ceará (UFC). “O que é a nanotecnologia? É a manipulação de átomos e moléculas em escala nanométrica, que é o que a gente considera de 10-⁹ m (0,000000001 metro). É algo muito pequenininho”. 

 

 

O que são pontos quânticos?

 

A existência dos pontos quânticos foi prevista em 1937 pelo físico francês Herbert Fröhlich. A descoberta, no entanto, não passava de uma suposição teórica. Naquela época era quase impossível analisar partículas em nanodimensões.

Fröhlich acreditava que se uma partícula se tornasse extremamente pequena, o espaço entre os elétrons diminuiria e eles se tornariam cada vez mais próximos. Isso resultaria na alteração das propriedades do material composto por esses átomos, e novos efeitos surgiram nesse processo. Ou seja, o tamanho de um átomo determinaria suas propriedades.

“Uma dessas, são as propriedades óticas fotoluminescentes que estão relacionadas [no caso dos] pontos quânticos, ao brilho”, explica Samuel. “A gente fala que os pontos quânticos são nanopartículas que têm uma emissão de luz, por conta desse tamanho dela”.

Os laureados conseguiram demonstrar a relação entre o tamanhos dos pontos quânticos com a sua emissão de cor. O primeiro foi Alexei Ekimov, na década de 1980. Em um experimento utilizando cloreto de cobre, ele descobriu que quanto menor as partículas, mais azuladas elas se tornavam. Isso indicava que a absorção de luz dependia do tamanho da partícula. O experimento marcou a primeira vez que pontos quânticos foram produzidos. Antes estava apenas no campo teórico.

Mais ou menos na mesma época, Louis Brus chegou às mesmas conclusões que o pesquisador russo. Ele estudava a possibilidade de gerar reações químicas com energia solar e, para facilitar o experimento, criou partículas minúsculas de sulfeto de cádmio. A estadunidense, então, percebeu que as partículas maiores absorvem ondas eletromagnéticas que tendem para o vermelho, enquanto as partículas menores tendem para o azulado.

Paineis que usam tecnologia Quantum Dot Light-Emitting Diode (Foto: AdobeStock)
Foto: AdobeStock Paineis que usam tecnologia Quantum Dot Light-Emitting Diode

Bawendi, em 1993, descobriu como criar nanopartículas praticamente perfeitas. Ele foi capaz de determinar o tamanho específico de cada cristal, determinando a cor que seria refletida. O francês, basicamente, possibilitou a aplicação prática dos pontos quânticos.

A tecnologia já chegou ao mercado e pode ser aplicada em diversas áreas. A mais comum, é na produção de leds. “A gente conseguiu revolucionar a tecnologia dos televisores. Então, aquelas telas que a gente chama de Quantum Dot Light-Emitting Diode (QLED), por exemplo, têm em sua fabricação [a partir dos] pontos quânticos. E aí, logicamente, a gente conseguiu avançar muito na qualidade das telas”.

Ainda de acordo com Samuel, os pontos quânticos foram descobertos há bastante tempo e já são comuns no nosso dia a dia. Eles são responsáveis por colorir a imagem de televisores e computadores, e também ajudam médicos a se guiarem durante procedimentos cirúrgicos.

 

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