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Uma neve compacta cobria os vastos campos de pastagem da Flandres, na Bélgica, naquele 24 de dezembro de 1914. Na horizontalidade do terreno, o luar prateado refletia-se na distância, e a noite era clara como dia. Na trincheira inglesa, a sentinela de plantão levantou a cabeça e arregalou os olhos, sem acreditar no que lhe mostrava a luz da lua: a alguns metros, o inimigo alemão tinha iluminado pinheiros com chamas de velas e enfeitado as árvores com grinaldas de papel e bandeirolas. De lá, cantavam alto hinos natalícios. Alarmado, o soldado acordou os companheiros. Quem sabe não seria uma armadilha?
François Guillem voltava da sua busca de lenha pelos campos flamengos, apressado para acender uma fogueira e amenizar o frio da tropa exausta e da sentinela que começara o turno da noite, quando tomou o susto de sua vida. De um lado e de outro das trincheiras, alemães e ingleses cantavam, a plenos pulmões, cada um na sua língua, os mesmos hinos natalinos. A cantoria em coro de milhares de vozes propagava-se pelo silêncio da noite, substituindo o zunido de balas, obus, e explosões, que tinham transformado a pacata zona rural em um inferno de buracos, mortos e feridos. Esquecido da temperatura glacial, Guillen ficou paralisado pela magia da cena. Depois, correu na neve para cantar com os outros “Oh Come All Ye Faithfull”.
O milagre da trégua de Natal de 1914 repetiu-se em vários pontos da linha de frente, na Bélgica e também na França. Na semana que antecedeu o Natal, os primeiros sinais de confraternização já eram visíveis, embora pontuais e sem proximidade. Os alemães, com suas árvores e hinos natalícios, deram o passo seguinte. No dia 24, na faixa intermediária entre as trincheiras - na chamada “terra de ninguém” -, aproximaram-se desarmados, sob o risco de uma bala inesperada, para desejarem aos ingleses um Feliz Natal. Queriam um acordo: no tempo das festas, nem tiros nem mortes.
Foi assim que, no dia seguinte, uma bola apareceu na “terra de ninguém” e os alemães venceram os ingleses por 3x2. A confiança e a fraternidade tinham marcado gols e, na desgraça, feito irmãos. Ingleses, belgas, alemães passeavam livres, de um lado a outro das trincheiras, para um cigarro, uma bebida, uma troca de presentes, uma conversa banal. Bruce Bairnsfather, colecionador amador, elogiou os botões da farda de um oficial alemão. Com a ajuda de um cortador de arame, retirou um par deles, como presente e, em troca, deu dois da roupa dele.
Um artilheiro inglês animou-se a exercer a antiga profissão de cabeleireiro. Em fila, viu-se dóceis alemães ajoelhados na neve dura, enquanto a máquina de corte deslizava perigosamente em volta do pescoço deles. Em outra trincheira, o tenor dramático alemão Walter Kirchhoff, que foi à guerra como oficial de ordenança, ganhou uma eufórica plateia de inimigos franceses, com seu canto de Natal. Teve de voltar para um bis. Todas estas histórias são momentos-milagres, na linha de frente do conflito. Aos poucos, o inédito destes parênteses de humanidade foram chegando aos jornais.
Revoltados com a novidade inesperada, os generais dos países envolvidos na guerra, mandaram ordens expressas de se porem fim a estes escândalos, nas trincheiras. Que se redobrassem as hostilidades. Que se furasse a bola de futebol. Que no Natal seguinte se jogassem mais bombas no inimigo. Que o ódio voltasse a correr no sangue dos soldados, amolecidos pela falta de gosto de matar uns aos outros. Tarde demais, porque agora os soldados tinham visto o rosto do inimigo e ouvido deles as histórias domésticas: a namorada à espera, a bicicleta a motor encostada na casa dos pais, o curso de mecânica interrompido.
A ferocidade da guerra tinha sido minada pela fraternidade. Como matar aquele outro, de carne e osso, que, na trincheira em face da minha, treme de frio e de medo, como eu? Como matar quem padece das mesmas misérias e saudades que eu? Súbita epifania que, nos encontros de Natal, tudo mudou. O rosto fantasmagórico do inimigo ganhou contornos reais, - dentes amarelos do cigarro, olhos tristes quando falam da família, unhas negras de terra, pés carcomidos por fungos e o terrível e geral odor corporal, de quem não se lava há meses. Eu me vejo neste homem e ele em mim. Por debaixo da farda e do idioma, somos feitos todos do mesmo barro.
O perigo da força do “viver e deixar viver” contagiou trincheiras no primeiro Natal da Primeira Grande Guerra e foi combatido e vigiado, de um lado e de outro, durante os quatro anos de conflito. Traidores! – gritaram generais, de suas salas de altos-comandos, protegidas e bem aquecidas. De lá, pediram pena de morte aos renitentes, para dar exemplos. Mas o que significa a pena de morte, quando, da manhã à noite, e por anos a fio, navega-se no fio da navalha, sob a chuva imparável de explosões, balas de metralhadora, minas e a letalidade das armas químicas?
Talvez porque a pulsão da vida é bem mais forte que a da morte, a cada Natal a pequena fagulha daquele 1914 teimava em voltar. Tímida e reprimida, certo, sob a capa de gelo da violência bruta. Mas, a porta tinha sido já aberta. O toco de vela que iluminou o rosto do outro e acendeu a luz da humanidade ainda povoava a memória coletiva dos pelotões, nos anos a seguir. No meio do caos, ressurgia, aqui e ali, na forma de um cigarro a dois, no compartilhar de uma fotografia amassada, num gole de conhaque bebido alternado, e às pressas. Dois rostos que não se enfrentavam, mas se olhavam, de igual para igual.
É nessa relação face a face que, segundo Emmanuel Levinas, se dá a linguagem ética, como fonte de sentido do humano. O rosto do outro que – para além da aparência dos olhos, da boca, do nariz, da testa – diz “eis-me aqui” e recorda a minha responsabilidade para com ele. Surgimento do rosto do outro que, para o filosofo, é um convite para uma relação de entrega e sem interesses. Na “sua nudez e na sua miséria”, o rosto do outro pede clemência e ilumina a inscrição do primeiro mandamento: “não-matarás”.
A trégua de Natal de 1914 atravessou o tempo e nunca foi (ou será) esquecida. Natal a Natal, ilumina-se até hoje, como uma estrela dos dezembros. Neste Natal de 2023, lá está ela de novo, cintilante e inspiradora, mais necessária do que nunca. Feita da coragem individual e coletiva de um punhado de homens, que viveram a epifania do rosto: ao invés do rosto desfigurado ou morto, enterrado na lama, o rosto vivo do outro. Teremos a mesma coragem? De fazermos cada um a metade do caminho e, na “terra de ninguém”, apertamos as mãos, para a paz ou pausas de guerras? “Não-matarás”, apela o rosto do outro. Da estrela dezembrina, ouvimos os ecos que cantam: “viva e deixe viver”.
Pela vida e por um Natal de paz.