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Furto de água ou uso irregular: Ceará tem mais de 4 casos descobertos por dia
Reportagem Especial

Furto de água ou uso irregular: Ceará tem mais de 4 casos descobertos por dia

Em 2023 e nos primeiros dias de 2024, quase 1.600 vistorias apontaram a captação irregular ou utilização de recursos hídricos fora do autorizado. A situação é monitorada permanentemente, mas a preocupação aumenta num ano com perspectiva de poucas chuvas

Furto de água ou uso irregular: Ceará tem mais de 4 casos descobertos por dia

Em 2023 e nos primeiros dias de 2024, quase 1.600 vistorias apontaram a captação irregular ou utilização de recursos hídricos fora do autorizado. A situação é monitorada permanentemente, mas a preocupação aumenta num ano com perspectiva de poucas chuvas
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Será um ano de chuvas difíceis, ou pelo menos não satisfatórias. O prognóstico oficial para o Estado será anunciado nesta sexta-feira, 19 de janeiro, pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), mas essa é uma tendência já indicada pelo superaquecimento do oceano Pacífico (El Niño) e com o Atlântico Norte também muito mais quente que a média.

Principalmente por isso, em 2024 serão essenciais o controle e a fiscalização dos recursos hídricos disponíveis no Ceará. Nas fontes monitoradas superficiais ou subterrâneas, há bastante ocorrência para quem comete captações irregulares ou o uso fora do que está autorizado. Em muitos casos, a água é literalmente furtada dos mananciais. Diariamente. 

Ações por bacia hidrográfica mês a mês

 

Entre todos os meses de 2023 e nos primeiros 10 dias de 2024, 1.582 vistorias realizadas por técnicos da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) constataram algum tipo de irregularidade relacionada à utilização da água outorgada. A média é de mais de quatro registros confirmados por dia. Segundo o setor de fiscalização do órgão, a maioria é autuada por não ter feito o cadastramento obrigatório.

As irregularidades foram identificadas em pontos comerciais, estabelecimentos de serviço, em criadouros (desde pecuaristas a carcinicultores ou piscicultores), retirada indevida para propriedades particulares, áreas de irrigação, indústrias, em obras ou com interferência hídrica (reservatórios), até represamentos, usada para bebedouro animal ou mesmo para fins de abastecimento humano.

Os poços são a fonte com mais ocorrência de retirada ilegal, mais da metade (855) dos casos anotados. As situações também acontecem em desvio de rios, lagoas, riachos, barreiros, nascentes, de redes de saneamento, entre os 157 açudes monitorados, em reservatórios de menor porte ou retirando água de adutoras. Algumas das vistorias encontram usuários cometendo a irregularidade até simultaneamente em mais de uma dessas fontes.

A outorga é regra para todos que utilizem a água bruta de rios, lagoas, açudes, canais, adutoras, poços e nascentes, para qualquer processo produtivo, abastecimento humano ou outro uso que interfira no volume ou qualidade de um chamado corpo hídrico. O procedimento pode ser solicitado para o uso ou para uma obra hídrica. A Cogerh monitora os volumes liberados a partir da demanda instalada.

Fiscais durante apreensão de bomba captando água irregularmente em Jaguaribe(Foto: reprodução NÚCLEO DE FISCALIZAÇÃO COGERH)
Foto: reprodução NÚCLEO DE FISCALIZAÇÃO COGERH Fiscais durante apreensão de bomba captando água irregularmente em Jaguaribe

"A fiscalização do uso dos recursos hídricos é exercida em qualquer empreendimento que consuma água, superficiais e subterrâneas de domínio do Estado do Ceará, e na realização de obras ou serviços que alterem o seu regime, quantidade ou qualidade, sem prejuízo de outros aspectos legais", explica a Cogerh em seu site.

Os casos descritos nas vistorias não são pontuais, aparecem em todas as 12 bacias hidrográficas do Estado. No ano passado só não houve notificação de furtos ou usos indevidos em 58 dos 184 municípios cearenses. Mais por falta de pessoal para autuar do que pela ausência do problema naquele ponto do mapa. Fortaleza lidera em infrações detectadas. A segunda cidade no ranking no período é Jijoca de Jericoacoara, onde a Cogerh direcionou no ano passado uma campanha de fiscalização mais incisiva. 

Ações por bacia hidrográfica

As vistorias têm mais o papel pedagógico, para ampliar a regularização, do que o caráter punitivo. Embora as reincidências possam, com o apoio de forças de segurança, definir o lacre ou apreensão de bombas hidráulicas não autorizadas ou um poço sem outorga. A Cogerh não tem poder de Polícia. "(A fiscalização) Tem como enfoque a orientação aos usuários, a fim de assegurar o cumprimento da legislação de recursos hídricos, garantir a disponibilidade de água para os diferentes usos e dirimir conflitos", complementa o órgão em sua página eletrônica.

Os autos de infração, termo de embargo ou termo de compromisso são fases da autuação seguintes às vistorias. Muito raro de acontecer, há previsão na lei para que um caso possa migrar da esfera administrativa para a penal. Um fato desse teria ocorrido em 2021, na cidade de São João do Jaguaribe. A denúncia teria sido formalizada pela promotoria local, mas O POVO não teve acesso aos documentos ou mais detalhes do episódio. 

Municípios com mais irregularidades detectadas

 

 

Sistema de alerta usará inteligência artificial para identificar irregularidades com recursos hídricos

Além do olho humano presencial dos técnicos no chão, e do uso de imagens de satélite de alta resolução, a Inteligência Artificial será inserida como nova ferramenta para identificar e monitorar indícios do uso irregular de água no Ceará.

Um projeto da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) em parceria com Universidade Estadual do Ceará (Uece), Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade do Porto (Uporto) está sendo desenvolvido e testado numa área recortada de 50 km² na região do Médio Jaguaribe.

Área de irrigação no Vale do Acaraú(Foto: reprodução NÚCLEO DE FISCALIZAÇÃO COGERH)
Foto: reprodução NÚCLEO DE FISCALIZAÇÃO COGERH Área de irrigação no Vale do Acaraú

A tecnologia deverá funcionar como um sistema de alerta, que conseguirá apontar automaticamente quando um usuário tiver o aumento de consumo hídrico fora do volume outorgado. Um luz acenderá num painel e apontará o problema identificado. O projeto é pioneiro. Será semelhante aos sistemas usados para detectar queimadas ou desmatamentos.

A proposta foi premiada com o 2º lugar pela Agência Nacional de Águas (ANA) como uma das melhores inovações em tecnologia de monitoramento de recursos hídricos, concorrendo com mais de 800 trabalhos no País.

As observações estão sendo com fazendas de carcinicultura, irrigantes e indústrias locais. As operações de teste monitoram áreas próximas dos distritos do Perímetro Irrigado do Tabuleiro de Russas (Distar) e de Irrigação do Jaguaribe-Apodi (Dija). 

Instrumentos da fiscalização

Os alertas deverão considerar pelo menos dois cenários: o do tipo 1 informa sobre tanques e áreas irrigadas cruzando pontos de outorga e imóveis rurais; o alerta tipo 2 considera mudanças de status de tanques e trechos de irrigação, comparando os mapeamentos de um mês para outro. É como se o sistema diariamente escaneasse uma área escolhida para ver quanto de água é utilizada.

A previsão é que o projeto seja efetivado até o segundo semestre de 2024, para entrar na rotina da Cogerh. Os testes começaram em agosto do ano passado, mas com informações mapeadas desde 2019. O trabalho inclui atualizações de cadastros de outorga. Cerca de 6 mil registros de usuários, entre particulares e atividades produtivas, foram renovados no último ano.

Segundo Sílvio Morais, analista de recursos hídricos da Cogerh que está à frente do projeto, a fase atual é de ensinar o algoritmo a identificar as informações automaticamente. Hoje a análise é semi--automatizada. Pela nova ferramenta, pontos outorgados, fiscalizados, faturados, dados fundiários, de uso de solo e da fonte hídrica são verificados simultaneamente. 

Tipos de finalidades de uso para outorga

Segundo ele, a fonte de energia deverá ser uma das camadas de informação para análise. "Por exemplo, você pede uma outorga para 10 hectares, mas está utilizando um volume para 50 hectares. O sistema de alerta no mapeamento consegue ver se sua área aumentou além do que está outorgado", explica Morais, que também é professor na Uece. O trabalho compõe sua tese de pós-doutorado.

Além do grande avanço da carcinicultura na região, a tecnologia já conseguiu identificar situações diferenciadas como produção de soja ou de empresas da Austrália cultivando frutas em solo cearense, ao lado do Jaguaribe, o maior rio do Estado.

 

Cogerh quer regularizar usuários das 12 bacias hidrográficas

O gerente de Outorga e Fiscalização da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Geofi-Cogerh), Marcílio Caetano, diz que as vistorias no uso e captação de água no Ceará já são feitas há cerca de 25 anos.

"No planejamento da nossa rotina interna, um indicador é a quantidade de vistorias realizadas. Cada uma das nossas dez regionais tem uma programação de vistorias. Pode ser furto de água, pode ser desvio de rio, pode ser uma denúncia do Ministério Público, uma denúncia da ouvidoria", explica.

Bomba hidráulica lacrada em Jaguaribe(Foto: reprodução NÚCLEO DE FISCALIZAÇÃO COGERH)
Foto: reprodução NÚCLEO DE FISCALIZAÇÃO COGERH Bomba hidráulica lacrada em Jaguaribe

A meta, segundo ele, é regularizar os usuários nas 12 regiões hidrográficas. A Cogerh explica que um poço escavado de baixa vazão não necessariamente será taxado com multa, mas o proprietário precisa ter a outorga de uso para que o controle da fonte hídrica aconteça. Em períodos de seca severa, uma área pode ter a captação suspensa para garantir a segurança e a melhor gestão da água disponível. 

Número de vistorias por gerência regional

Segundo Marcílio Caetano, mesmo quando há tarifação, os valores são bem baixos na zona rural. Criatórios de camarão que utilizem o espaço de um hectare consomem, em média, R$ 38 por um mês de água bruta. Equivale ao preço de 1 kg do produto no comércio da Capital. "Então se o produtor vender um quilo do camarão, ele já paga a conta", compara.

A carcinicultura tem sido uma das atividades produtivas mais observadas pelos fiscais no Vale Jaguaribano, por conta da expansão de novos produtores na região. Os fiscais têm atentado para essa mudança porque repercute no volume captado. 

Irregularidades por fontes de captação

Qualquer cidadão pode denunciar uma situação de “furto” de água, uso ou captação irregular. Os canais de atendimento funcionam por email (fiscalizacao@cogerh.com.br), fone 155 (Ouvidoria) ou pelo portal Ceará Transparente.

As políticas nacional (lei nº 9.433/97) e estadual (lei nº 14.844/10) de recursos hídricos definem que a garantia de abastecimento humano e animal é prioridade. Se as chuvas deste ano forem fracas, a preocupação é maior para as possíveis consequências em 2025. Por isso a fiscalização tenta ampliar seu radar para a água disponível.

 

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