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A sociedade da neve: uma narrativa sobre sobrevivência e convivência
Reportagem Especial

A sociedade da neve: uma narrativa sobre sobrevivência e convivência

Veja quem são e o que fizeram, depois do resgate, os 16 sobreviventes do "milagre nos Andes", a tragédia da aviação que, cinco décadas depois, continua impressionando. Leia também a entrevista que um dos sobreviventes concedeu em 1998 ao O POVO. A tragédia foi levada às telas mais uma vez no filme A sociedade da neve, que recebeu duas indicações ao Oscar 2024

A sociedade da neve: uma narrativa sobre sobrevivência e convivência

Veja quem são e o que fizeram, depois do resgate, os 16 sobreviventes do "milagre nos Andes", a tragédia da aviação que, cinco décadas depois, continua impressionando. Leia também a entrevista que um dos sobreviventes concedeu em 1998 ao O POVO. A tragédia foi levada às telas mais uma vez no filme A sociedade da neve, que recebeu duas indicações ao Oscar 2024
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Havia 45 pessoas no Fairchild FH-227D das Forças Armadas Uruguaias que decolou do aeroporto de Carrasco, em Montevidéu, naquele 12 de outubro de 1972. Eram 5 membros da tripulação e 40 passageiros, dentre os quais 19 integravam a equipe de rugby Old Christians, ligada a um tradicional colégio particular da capital uruguaia. O voo, que não deveria durar muito mais que três horas, foi interrompido duas vezes pelo mau tempo.

A primeira interrupção ocorreu no mesmo dia 12, quando precisou pousar em Mendoza, na Argentina, onde todos passaram a noite; a segunda, no dia seguinte, quando um erro de cálculo dos pilotos, com a visão comprometida pela nebulosidade, fez a aeronave descer enquanto ainda cruzava a cordilheira dos Andes. O avião se chocou contra os picos nevados e começou a se desfazer: primeiro a asa direita, depois a cauda e, por fim, a asa esquerda.

Com a fuselagem rasgada pelo impacto, vários passageiros são ejetados. A aeronave aterrisa em um vale nevado e começa a deslizar a toda velocidade até se chocar contra uma montanha. Às 15h34 minutos, o avião interrompe sua queda. Os sobreviventes, feridos e desorientados, saem do que sobrou da fuselagem e se percebem cercados de neve. Estão no Vale das Lágrimas, uma geleira a quase 4 mil metros de altitude, na fronteira entre Argentina e Chile.

Os sobreviventes do acidente passaram 72 dias isolados do mundo no Vale das Lágrimas, na cordilheira dos Andes(Foto: Netflix/Divulgação)
Foto: Netflix/Divulgação Os sobreviventes do acidente passaram 72 dias isolados do mundo no Vale das Lágrimas, na cordilheira dos Andes

Das 45 pessoas que embarcaram no Fairchild, 17 morreram durante o impacto ou nas horas seguintes ao acidente. Dezesseis dias depois, uma avalanche acaba soterrando outros 8. Ao longo dos 72 dias de espera e luta por sobrevivência, outros 4 passageiros são perdidos. Apenas 16 pessoas escapam da tragédia que, depois, foi chamada de “milagre dos Andes”.

Ao longo dos quase dois meses e meio passados no Vale das Lágrimas, os sobreviventes do impacto, atordoados pela violência do acidente, pela depressão, medo e luto, viveram situações extremas que incluíram as temperaturas de até -40 oC e ventanias violentas, a falta de água e de comida e as queimaduras na retina causadas pelo reflexo do sol na imensidão branca de neve.

Na base das estratégias de sobrevivência que planejaram e executaram para contornar cada um desses problemas estava o senso de comunidade e cuidado mútuo que desde o primeiro dia os envolveu. Como afirmou Ramón Sabella — que foi entrevistado pelo O POVO no fim dos anos 1990, eles sabiam que sua sobrevivência dependia dessa união: “Montamos do nada uma sociedade exclusivamente de amizades, abandonada no lugar mais frio do mundo.”

Das 45 pessoas que embarcaram no voo 571 da Força Aérea Uruguaia, apenas 16 sobreviveram(Foto: Netflix/Divulgação)
Foto: Netflix/Divulgação Das 45 pessoas que embarcaram no voo 571 da Força Aérea Uruguaia, apenas 16 sobreviveram

 

 

Os sobreviventes dos Andes

Nem todos os 16 sobreviventes do acidente com o Fairchild FH-227D faziam parte da equipe de rugby Old Christians. Alguns deles eram amigos dos atletas, enquanto outros viajavam por motivos pessoais, como Javier Methol, que ia para o Chile com a esposa para comemorar o seu aniversário de casamento. Os 72 dias de convivência, porém, estabeleceram entre esses homens uma relação que anulou diferenças e firmou uma sociedade baseada nos afetos.

Conheça a seguir os 16 sobreviventes, quais eram suas responsabilidades nos 72 dias de isolamento que se seguiram ao acidente e o que fizeram depois que foram resgatados.

 

Os 16 sobreviventes do desastre aéreo

 

 

O pós resgate dos sobreviventes

Fernando Parrado, que perdeu a irmã e a mãe no acidente, abandonou os estudos e, durante um período, trabalhou na cadeia de lojas de ferragens que pertencia à sua família. Simultaneamente, se aventurou no automobilismo, chegando a competir em campeonatos europeus de corrida. Trabalhou ainda como apresentador e produtor de televisão. Por fim, começou a realizar palestras motivacionais. É casado e pai de duas filhas.

Roberto Canessa finalizou sua graduação em medicina e se especializou em cardiologia infantil. Por sua atuação na área, recebeu três vezes o Prêmio Nacional de Medicina. Atualmente é professor de medicina e diretor de um departamento cardiológico no Hospital Italiano de Montevideo. Em 1994 chegou a concorrer à presidência do Uruguai pelo Partido Azul. É casado e tem três filhos. 

Antonio Vizintín teve três casamentos e trabalhou em uma importadora de produtos químicos. Gustavo Zerbino seguiu vinculado ao rugby, tendo integrado a seleção nacional, e foi presidente da Câmara de Especialidades Farmacêuticas e Afins do Uruguai. Carlos Páez trabalhou como técnico agropecuário e empresário. Roy Harley trabalhou como fabricante de tintas e teve três filhos, um dos quais também atuou na equipe do Old Christians.

Os sobreviventes foram resgatados após 72 dias no Vale das Lágrimas(Foto: Netflix/Divulgação )
Foto: Netflix/Divulgação Os sobreviventes foram resgatados após 72 dias no Vale das Lágrimas

Pedro Algorta finalizou seus estudos em economia e se instalou na Argentina, trabalhando como diretor de uma fábrica de bebidas. Álvaro Mangino se casou com a namorada da época do acidente e viveu durante muitos anos no Brasil antes de retornar a Montevidéu. Roberto François teve três filhos e se tornou produtor agropecuário. Ramón Sabella se mudou para o Paraguai e se tornou empresário. Alfredo Delgado tornou-se dono de um dos cartórios mais importantes do Uruguai.

Dos quatro primos que embarcaram no avião, três sobreviveram. Eduardo Strauch tornou-se um dos mais renomados arquitetos de Montevidéu. Adolfo Strauch se casou, teve três filhos e passou a se dedicar a atividades rurais. Daniel Fernández se casou com sua namorada e com ela teve quatro filhos.

Dos 16 sobreviventes, 2 já faleceram. Javier Methol, o mais velho do grupo, teve oito filhos e faleceu em junho de 2015. José Luis Inciarte se casou com seu amor de infância e se tornou um dos maiores produtores lácteos do Uruguai. Faleceu em julho de 2023.

Dos 16 sobreviventes da tragédia, 14 seguem vivos em 2024 (Foto: Netflix/Divulgação )
Foto: Netflix/Divulgação Dos 16 sobreviventes da tragédia, 14 seguem vivos em 2024

 

 

As mulheres

Embora nenhuma das cinco mulheres a bordo do Fairchild 571 tenha retornado para casa, são figuras que merecem menção. Duas mulheres sobreviveram ao acidente, mas acabaram morrendo durante os 72 dias de espera pelo resgate.

Susana Parrado, irmã de Nando Parrado, tinha 20 anos à época do acidente que a deixou gravemente ferida, com grandes hematomas no rosto. Embora estivesse consciente a maior parte do tempo, muitas vezes vivenciava episódios de desorientação, nos quais chamava sua mãe. Foi cuidada pelo irmão até seu último momento, oito dias após a queda do avião.

Liliana Methol, de 34 anos, à época casada com Javier Methol, com quem viajava para o Chile em comemoração ao décimo segundo aniversário de casamento, foi soterrada durante a avalanche. Segundo relatos dos sobreviventes, era ela que, no acampamento, exercia o papel de mãe do grupo, oferecendo consolo aos mais angustiados e auxiliando os estudantes de medicina, como uma espécie de enfermeira.

 

 

Uma história cinematográfica

A história de tragédia e milagre dos passageiros do voo 571 da Força Aérea Uruguaia foi resgatada em diferentes ocasiões em filmes, documentários, livros, podcasts e exposições. Além das reportagens e adaptações para o cinema, pelo menos sete dos sobreviventes publicaram seus relatos. Outros quatro livros foram escritos por seus familiares. Por mais de cinco décadas, a curiosidade a respeito do caso permaneceu inabalada.

A mais recente adaptação da história foi produzida pela Netflix e estreou em sua plataforma no último em 4 de janeiro de 2024, com direção do cineasta espanhol Juan Antonio Bayona, conhecido por “O impossível”, de 2012, que adapta a experiência de outra sobrevivente: María Belón, que escapou do tsunami que devastou a costa da Tailândia em dezembro de 2004.

O filme de Bayona, que vem sendo elogiado pela crítica especializada, alcançou também inesperado sucesso de público, entrando, em poucos dias, para a lista de produções mais vistas da Netflix. Em meados de janeiro de 2024, o longa atingiu 68,3 milhões de horas vistas. A previsão é que o filme suba ainda mais no ranking dos próximos dias. Suas indicações ao Oscar 2024, nas categorias de filme estrangeiro e maquiagem, devem fortalecer essa divulgação.

Confira a seguir as outras adaptações que a história rendeu ao longo das últimas décadas.

 

 

“Criamos um mundo, uma sociedade”

Em junho de 1998, em viagem de negócios ao Ceará, o uruguaio Ramón Sabella, um dos sobreviventes do “milagre dos Andes”, conversou com dois estudantes de comunicação social, Wilson Zanini e Tatiana Holanda, que enviaram para O POVO a íntegra da entrevista.

Aos 47 anos, Sabella rememorou os instantes anteriores ao acidente e descreveu a rotina que se estabeleceu entre os sobreviventes nos 72 dias em que enfrentaram o frio e a desesperança, perdidos na Cordilheira dos Andes, à espera de um resgate incerto.

O uruguaio fala da formação, pela escassez, de uma sociedade moldada por afetos, na qual o dinheiro só servia “para tocar fogo e esquentar um pouco”, e reflete sobre como mesmo os mais céticos do grupo foram tomados pela necessidade de depositar sua fé em alguma força superior.

Por fim, Sabella, que à época do acidente tinha apenas 21 anos, comenta sobre os momentos em que, para não morrer de fome, e depois de tentarem comer o couro das malas, os companheiros e ele precisaram se alimentar da carne dos amigos mortos.

Entrevista com Ramón Sabella em edição de 1998 de O POVO(Foto: O POVO)
Foto: O POVO Entrevista com Ramón Sabella em edição de 1998 de O POVO

O POVO - Qual foi o momento em que o senhor percebeu que se encontrava numa situação de risco?

Ramón Sabella - Antes do acidente eu estava viajando na cabine do piloto, tirando fotografia das montanhas, mas depois o tempo ficou ruim e o comandante me mandou sentar. O avião começou a perder altitude. Pegamos duas turbulências muito grandes. O avião desceu tanto que entramos nas nuvens e, quando saímos, estávamos com as montanhas à vista, logo abaixo. O piloto tentou subir para tentar passar as montanhas, mas não conseguiu e bateu. O avião caiu próximo à fronteira da Argentina com o Chile.

O POVO - Quais as primeiras providências tomadas?

Ramón Sabella - O piloto estava morto nesse momento e o co-piloto ainda vivo. Ele me explicou como mexer com o rádio para pedir socorro. A primeira coisa que fizemos também foi socorrer os mais feridos. Tem muita gente que fica em estado de choque. A primeira reação é ajudar todos os feridos. Não tínhamos muitos meios, não tínhamos equipamentos necessários, mas procuramos cuidar da melhor forma possível dos feridos, teve muita gente que ficou presa nos assentos, uma confusão, uns sobre os outros nas poltronas. Tentamos tirar todos para fora, mas era muita gente. Chegou a noite e não conseguimos soltá-los. Muitos passaram a noite presos nos assentos. Havia muita gente em estado de choque, muitos feridos, muitos gritos.

O POVO - Qual era a expectativa em relação ao resgate?

Ramón Sabella - A primeira expectativa é que no outro dia viessem a nossa procura. Pensávamos que no outro dia haveria helicópteros, gente do resgate nos procurando. Saímos do avião cedo. Mas quando passaram os dias, começamos a acreditar que não conseguiriam nos encontrar. Nós olhávamos os aviões que passavam muito alto, muito alto, não conseguiam perceber que nós estávamos lá. Depois quando passou algum tempo escutamos pelo rádio que as buscas haviam sido suspensas.

O POVO - Quando cessaram as buscas, qual a reação imediata dos sobreviventes?

Ramón Sabella - Foi um choque muito grande para nós. Foi muito duro saber que pensavam que estávamos todos mortos. Estávamos no meio de uma montanha que não conhecíamos, não tínhamos experiência de ficar em montanhas, de como fazer as coisas a 4.500 metros de altura. Muito frio, fome e sede. A primeira reação de muita gente foi o desespero, mas para mim foi um alívio. Agora, não dependíamos mais de terceiros e só de nós mesmos. Tínhamos que tomar medidas para sobreviver. O que iríamos fazer? Era inverno, fazia muito frio, com muitos temporais de neve. Era impossível sair dali naquele momento. Não tínhamos equipamentos para neve. Não estávamos preparados para caminhar pela montanha.

O POVO - Como vocês se organizaram para garantir a sobrevivência?

Ramón Sabella - Todo mundo colaborava no melhor que podia. Havia muita gente que não tinha possibilidades físicas nem psicológicas de colaborar muito. Cada um fazia o que lhe permitiam as possibilidades. A primeira coisa que pensamos foi na água. A sede era muito grande. Começamos a pensar um método para fabricar água. Era muito difícil porque, com aquela temperatura, tudo congelava. Mas tínhamos duas ou três garrafas e nelas colocamos neve. Colocamos as garrafas de encontro ao corpo, contra a pele, para que, com o calor do corpo, derretesse, mas demorava muito tempo. Enchíamos uma garrafa de neve e tínhamos apenas algumas gotas de água. Depois, inventamos, com as poltronas do avião, um sistema que chamamos “máquina de fazer água”. Era com as chapas das poltronas que, nos dias mais quentes, colocávamos fora, púnhamos neve em cima das chapas, o sol derretia a neve e a água caía numa garrafa embaixo. Havia muitos dias que ficava frio demais, não havia sol, e não conseguíamos fazer água.

O POVO - Como morreram as pessoas que sobreviveram à queda?

Ramón Sabella - Alguns morreram dos ferimentos, outros começaram a ficar deprimidos. Se a pessoa tinha dúvida se iria sair dali, morria. As avalanches foram as que mais mataram gente. As avalanches foram terríveis. Não conseguíamos dormir em paz. Teve um dia com duas avalanches que mataram muitos. Uma das avalanches deixou o avião soterrado e começamos a nos asfixiar. Foi terrível. Não tínhamos luz, era totalmente escuro. Eu que era o menor, procurei sair pela cabine do piloto e com um ferro procurei empurrar a neve para cima, para entrar ar. Conseguimos fazer um pequeno buraco, depois disso passamos uns dois ou três dias para sair. Tivemos que fazer um túnel com as mãos para sair do avião.

O POVO - Como o grupo reagia às perdas?

Ramón Sabella - Era difícil. Nós pensávamos: "o que mais nós podemos passar?” Seguíamos sofrendo. Fomos nos acostumando a viver com muito medo. Vivíamos num estado de medo permanente.

O POVO - Como foi que vocês resolveram comer a carne dos que haviam morrido o acidente?

Ramón Sabella - Não havia nada para comer no avião. Ficamos praticamente mais de uma semana sem comer absolutamente nada, apenas uns chocolates que repartíamos em pequenos pedaços. Repartimos algumas gotas de vinho que alguém conseguiu numa garrafa que havia no avião e um pouco de licor. Quando soubemos que não iam mais nos procurar, que nos consideravam mortos, começamos a pensar como sobreviver. Tentamos comer o couro das malas, mas não conseguimos, era impossível, tinha uma tinta muito tóxica. Procuramos comer musgos, mas não alimentavam nada. Nós precisávamos rapidamente nos alimentar, porque senão iríamos estar tão debilitados que não íamos conseguir sair, íamos todos morrer ali. Pensamos em tirar a carne dos corpos das pessoas mortas e sobreviver com isso. Começamos a falar isso entre nós e concluímos que era o melhor, que era obrigação nossa sobreviver.

O POVO - Todos aceitaram a decisão?

Ramón Sabella - Todos aceitaram. A princípio havia muita resistência de todos. Era muito estranho ter que fazer isso. Era muito árduo. Mas pensamos que era mais importante sobreviver e que não ganharíamos nada todos morrendo. Nós tínhamos nossos pais, mães, irmãos e todos os familiares. Já que havíamos sobrevivido à queda, tínhamos que seguir tentando sair dali. Era mais fácil morrer, mais fácil não sofrer mais. Me deixo morrer e pronto. Era mais fácil isso que seguir vivendo.

"Criamos um mundo, uma sociedade, onde não existia o materialismo. Era tudo por afeto. Se a gente dava algo a você, era por afeto e não querendo nada em troca, porque depois poderíamos estar todos mortos"

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O POVO - Como era a convivência entre vocês?

Ramón Sabella - Éramos um grupo muito unido, ajudávamos muito uns aos outros e havia muito afeto entre nós, muita amizade, muita união. Havia brigas normais, pela convivência num pequeno espaço. Vinte e cinco, trinta pessoas, no princípio era muito ruim, não havia espaço para todos, dormíamos uns sobre os outros. Mas, com pouco tempo, fomos colocando mais comodidades. Cada um fazia as suas tarefas. Uns se encarregavam da água, outros da comida, outros da faxina do avião, outros de costurar o saco de dormir, outros de fazer lentes para os olhos pois a neve cegava. Ficamos todos doentes dos olhos durante dias sem conseguir olhar nada, lacrimejando permanentemente. Passamos dias com os olhos vendados. Muita dor. Daí inventamos umas lentes feitas de fios do avião e de leitores de instrução de voo que tinham uma parte de mica azul transparente.

O POVO - Em algum momento mudou o seu conceito de fé em Deus?

Ramón Sabella - Nós rezávamos todos os dias. Nos agarramos muito à fé em Deus, mas em certos momentos, como nas avalanches, nós o renegamos e nos perguntávamos: “Se Deus existe, por que nos faz seguir sofrendo mais e mais? Basta com isso”. Havia algumas pessoas que não tinham muita crença em Deus, mas, um dia, houve uma tempestade terrível na montanha, muito vento, muita neve. Então o avião se movia e nós tínhamos medo que ele escorregasse para baixo, onde havia quilômetros e quilômetros de montanha. Se o avião seguisse deslizando, morreríamos todos. Começamos a rezar e tinha uma pessoa, o Adolfo, que nunca rezava. Nós dissemos que ele deveria rezar, e ele rezou. O vento parou e o tempo ficou tranquilo.

O POVO - Com a polêmica criada em torno do gesto de comer carne humana, como foi a repercussão? Houve muito preconceito?

Ramón Sabella - Não, todo mundo entendeu a situação. Inclusive o papa. Houve repercussão, mas o que importa é que era uma forma de sobrevivermos. Éramos muito jovens, abandonados numa montanha sem comida, sem equipamentos de neve, com muito frio. As pessoas ficaram muito comovidas com isso. Não conseguiam acreditar como conseguimos nos salvar. Ninguém sobrevive a isso. É impossível sobreviver a isso. Falaram com alpinistas, pessoas com experiência em montanhas, ninguém entendeu como sobrevivemos e não morremos congelados em tanto tempo.

O POVO - Vocês receberam algo com as produções de filmes e livros? E indenizações?

Ramón Sabella - Recebemos pouco dinheiro com as produções. Indenizações, não. Não reclamamos indenizações de nenhum tipo da Força Aérea Uruguaia. Só pedimos que dessem uma pensão à mãe de uma das vítima, que não tinha condições e vivia do trabalho do filho. Pedimos à Força Aérea que a mantivesse, só isso.

O POVO - O senhor mantém contato com os sobreviventes até hoje?

Ramón Sabella - Somos muito unidos. Sempre fazemos uma festa em 22 de dezembro. Vamos todos juntos, todos os anos, e nos confraternizamos com churrasquinhos e bebidas.

O POVO - Como ficou a sua forma de ver a vida após o acidente?

Ramón Sabella - Aquele mundo era um mundo irreal, não? Naquele mundo onde nós vivíamos, o material não existia. Você queria um cigarro, oferecia mil dólares por um cigarro, mas ninguém lhe vendia. Se alguém queria, tinha de graça, de presente, não por dinheiro. O dinheiro servia para tocar fogo para esquentar um pouco. A relação entre nós era muito especial. Criamos um mundo, uma sociedade, onde não existia o materialismo. Era tudo por afeto. Se a gente dava algo a você, era por afeto e não querendo nada em troca, porque depois poderíamos estar todos mortos. Aprendemos muito com esse tipo de sofrimento.

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