O prédio da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) em Fortaleza, na avenida Francisco Sá, nº 1.873, no bairro Jacarecanga, está sendo depenado desde os primeiros dias de 2024. O local já abrigou o setor de transportes, a oficina e o almoxarifado do órgão, e vinha sendo usado há alguns anos apenas para estocar pastas de arquivo com documentos técnicos e administrativos. Mas está totalmente desprotegido, vulnerável, à própria sorte.
Desde o último dia de 2023, não há mais vigilantes no imóvel. O contrato da empresa terceirizada Acesso Segurança Privada (nº 11/2022) havia acabado em 12 de agosto do ano passado. Apesar disso, o serviço de vigilância patrimonial foi mantido pela prestadora num acordo com a superintendência local do órgão, para que tentassem a renovação ou prorrogação emergencial junto à gestão federal em Brasília (DF), o que acabou não acontecendo.
Os saqueadores têm ido ao lugar diariamente, à luz do dia ou à noite, sem distinção nem empecilho. No andar térreo, várias das janelas e portas foram arrancadas. Não há mais nenhuma na fachada. Levaram várias estantes de ferro, o corrimão de alumínio da escadaria interna, parte da mobília, interruptores, luminárias, telhas, peças de máquinas que restavam no local, tubulações de metal e PVC, fiações, garrafões plásticos de água. De tudo tem sido retirado, possivelmente para venda em sucatas.
Os furtos teriam começado desde o dia 9 deste mês. Nos dias 10 e 11, a Polícia Federal recebeu ofícios alertando sobre a situação, por se tratar de uma repartição federal. Um vídeo do dia 17, feito por moradores do condomínio ao lado, mostra uma das janelas do andar superior sendo retirada por puxões e marretadas. O barulho de vidro quebrado e estruturas arrancadas ressoava desde cedo. Nessa mesma data, uma viatura da Polícia Militar chegou ao local. Os agentes teriam impedido dois homens de levarem uma estante e mais material. Eles teriam sido presos e liberados poucas horas depois.
Na manhã dessa última quarta-feira, 24, quando O POVO esteve no imóvel acompanhado por três servidores do órgão, dois agentes de endemia inspecionavam possíveis focos do mosquito Aedes aegypti, transmissor de dengue, chikungunya e zika vírus. No andar superior, um homem dormia numa sala ao lado de onde a janela do vídeo fora arrancada — também já sem nenhuma janela, tinha apenas duas cadeiras. Ele não foi acordado. Estava com um dos tornozelos cortados.
O ferimento aparentava ter sido causado pelos estilhaços espalhados no piso da entrada do térreo e na própria sala. Também no térreo, uma sala maior tem várias das estantes de arquivamento fora do lugar, reviradas, com caixas de documentos públicos amontoados. Folhas de croquis de engenharia voam espalhadas pelo jardim da frente.
A situação na sede do Jacarecanga é só um recorte do sucateamento generalizado na estrutura da Funasa, seguido de um cenário de indefinições no histórico recente.
O órgão chegou a ser extinto, em 1º janeiro de 2023, por medida provisória (nº 1.156/2023). O Governo Federal recuou da decisão após pressão política para recriar a Fundação. Principalmente pelo peso de um orçamento na casa dos R$ 3 bilhões. Os recursos e os cargos entraram em disputa.
A MP caducou com o acerto de um grupo de trabalho formatar a proposta de modernização e reestruturação de uma nova Funasa. Que seguiu a passos lentos, perdeu prazos (seria para agosto, foi estendido até setembro) e não avançou. O que mais há, de momento, é incerteza nas 26 unidades no País, em capitais e cidades do Interior.
Formalmente, há convênios, orientações e trabalhos administrativos em vigência. Os servidores registram o dia de trabalho, mas o expediente e as atividades do órgão estariam praticamente inexistindo, muito abaixo da rotina antiga. São respostas levantadas junto a servidores contatados pelo O POVO.
“A maioria dos funcionários não voltou ou não pode dar expediente na Funasa porque não faz mais parte da Funasa e as portarias de realocação não saíram ainda”, contou Dário Guerreiro, servidor há 34 anos.
“Essa matéria vai nos ajudar na nossa luta para retomar a Funasa”, afirmou o engenheiro Récio Ellery, servidor há 36 anos, que acompanhou a visita ao prédio do Jacarecanga. Outra que esteve no local com O POVO foi a agente administrativa Alexandra Leite Dias, há 40 anos no órgão. Ela foi superintendente da Fundação até 2022, ano anterior à extinção. “Nunca vimos uma situação dessas. E estamos impossibilitados de tomar decisões e atitudes”, reforçou.
Por email, O POVO demandou os ministérios das Cidades e da Saúde sobre a situação da Funasa em Fortaleza, mas não obteve respostas.
A Funasa é vinculada ao Ministério da Saúde. Foi criada em 1991, com a fusão de vários órgãos, entre eles a Fundação Serviços de Saúde Pública (Fsesp) e a Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam). Uma das competências é promover a saúde pública em ações de saneamento, trabalho preventivo e educativo de combate a endemias, atenção à saúde de populações carentes e desenvolvimento de pesquisas científicas e tecnológicas.
Vários dos papéis espalhados pelo chão do imóvel do Jacarecanga contam parte dessa história.
No Ceará, cerca de 70 servidores da Funasa já foram ou aguardam portaria para serem realocados em outros órgãos dos ministérios da Gestão e Inovação (MGI), da Saúde (MS) e das Cidades (MCID). Na sede principal da Fundação em Fortaleza, na avenida Santos Dumont, no bairro Aldeota, o órgão não tem, por exemplo, nenhum veículo à disposição — a não ser um carro-laboratório. Os contratos de locação veicular não foram renovados.
Há receio, admitido por servidores, de que o prédio também possa ser invadido e saqueado em algum momento, como no prédio do Jacarecanga. Um servidor tem feito a vigilância noturna. Durante o dia, ela é feita por terceirizados. O local segue tendo expediente administrativo, mesmo com a movimentação bem discreta. A fachada está desgastada, revestimento solto ou trincado, marcas das incertezas.
No fim da manhã desta segunda-feira, 29, foi descoberto que o terceiro imóvel do órgão, localizado em Maranguape, na Região Metropolitana de Fortaleza, também sofreu arrombamento e furto neste fim de semana.
Entre os objetos que foram retirados estavam aparelhos de ar condicionado e hastes metálicas para perfuração de poços profundos. Foi registrado um Boletim de Ocorrência (nº 102-1230/2024).
O superintendente substituto do órgão no Ceará, Aureolino Fonseca, enviou ofício ao comandante-geral da Polícia Militar, Klênio Savyo, "solicitando apoio na intensificação de rondas policiais". A diretoria da Funasa em Brasília e a superintendência da Polícia Federal no Ceará também foram avisadas da ocorrência.
O prédio em Maranguape éum local de guarda de patrimônio em desuso e inservíveis, disponíveis para leilão, além de uma sala de administrativo.
Apenas um funcionário terceirizado, do serviço de limpeza e conservação, comparece em horário comercial. Mas de dia e à noite, também está sem vigilância. O contrato encerrado no fim de 2023 cobria as três unidades locais do órgão.
O superintendente substituto da Funasa no Ceará, Aureolino Fonseca, contou ao O POVO que deu ciência imediata à direção do órgão em Brasília, tão logo soube do arrombamento e furto ao imóvel do bairro Jacarecanga. “Comunicamos o fato imediatamente a diversos órgãos da Presidência”.
Em uma série de ofícios, despachos e emails disponibilizados, ele afirma que vinha alertando, desde o ano passado, à própria Fundação e ao Ministério das Cidades, sobre o risco de o local ficar vulnerável pelo fim do contrato de vigilância patrimonial terceirizada (nº 7/2021) das unidades locais, e a necessidade de renovação ou prorrogação imediata. A troca de mensagens entre setores da Funasa foi mais intensa quando o furto foi denunciado.
O processo nº 25140.001350/2023-14, que consta no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do Governo Federal, cita a necessidade urgente de “contratar empresa especializada para prestação de serviço continuado de vigilância armada e desarmada e segurança patrimonial, mediante Dispensa de Licitação”. A demanda foi feita, mas a dispensa de licitação não foi autorizada pelo Ministério.
Quando a Funasa foi extinta no início de 2023, foi o MCID que recebeu seus direitos e obrigações de contratos administrativos e convênios (portaria nº 921). No SEI, há pelo menos cinco números de protocolos (4572249, 4670645, 4681787, 4681754 e 4683031) mencionando a urgência para um novo contrato.
A Superintendência Regional da Polícia Federal no Ceará foi avisada dos furtos pelo ofício nº 10/2024, às 15h26min do dia 9 de janeiro. O primeiro arrombamento teria sido notado na manhã daquela data. Um servidor foi ao prédio e confirmou que o corrimão de alumínio da escadaria havia sido retirado. Nos dias 17 e 18, o engenheiro Récio Ellery, servidor do órgão, fez novas comunicações à PF, incluindo fotos e vídeos. Um inquérito foi aberto. O POVO tentou contato com a PF, mas não obteve resposta.
Numa das soluções tentadas, na iminência de perderem totalmente a vigilância, Fonseca chegou a fazer um pedido diretamente à unidade do Ministério da Gestão e Inovação (MGI) no Ceará, em dezembro. Para que cedesse dois servidores do órgão, que assumissem a segurança do imóvel do Jacarecanga.
“Somente outro normativo pode liberar servidores. A gente não tem gestão sobre contratos”, explicou Carla Pinho, que em dezembro respondia como substituta da Superintendência Regional de Administração do MGI. Oito servidores da Funasa-Ceará estariam aguardando a portaria de realocação para o MGI.
“Esse cenário de agora da Funasa no Ceará é o mesmo no Brasil inteiro. Está acontecendo nas 26 superintendências. Além de não ter sido feita a reestruturação, os servidores não retornaram na sua totalidade”, diz Fonseca, servidor federal desde 1978, 13 anos antes da Fundação ser criada.
Atualmente de férias, desde 17 de janeiro de 2024, Fonseca deve retornar às atividades em 2 de fevereiro. Perguntando sobre quem responde pela superintendência estadual interinamente em sua ausência, sua resposta traduz o momento da Funasa: “Não tem ninguém. Ninguém quis ficar como substituto”.