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Consumo de açúcar: a linha tênue entre o desejo e a compulsão
Reportagem Especial

Consumo de açúcar: a linha tênue entre o desejo e a compulsão

Não há evidência científica para sustentar hipótese do vício em açúcar, porém especialistas apontam como a substância está relacionada a questões nerológicas. Entenda quais são os impactos do consumo de açúcar em excesso para a saúde

Consumo de açúcar: a linha tênue entre o desejo e a compulsão

Não há evidência científica para sustentar hipótese do vício em açúcar, porém especialistas apontam como a substância está relacionada a questões nerológicas. Entenda quais são os impactos do consumo de açúcar em excesso para a saúde
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Presente em grande parte dos pratos, o açúcar — termo genérico para carboidratos cristalizados comestíveis, principalmente a sacarose — é um dos ingredientes que não podem faltar na mesa de muitos brasileiros. Comumente utilizado para adocicar cafés e sucos ou compor receitas, quando consumido em excesso o açúcar pode acarretar sérios danos à saúde, inclusive a compulsão por doces.

Para além das diabetes, o consumo desenfreado de açúcar pode causar problemas como resistência à insulina, gordura no fígado, aumento de acne, desequilíbrio da microbiota intestinal, candidíase de repetição, aumento de gordura corporal e peso indesejado.

Alguns tipos de medicamentos podem estar associados ao consumo de açúcar, como os antidepressivos(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Alguns tipos de medicamentos podem estar associados ao consumo de açúcar, como os antidepressivos

Segundo a nutricionista e mestre em Nutrição e Saúde pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), Jamile Tahim, é importante salientar, no entanto, que ainda não há um consenso na comunidade científica sobre vício em comida, inclusive em açúcar.

“O que ocorre é que os indivíduos passam a buscar frequentemente as sensações de prazer por meio do consumo de itens açucarados, geralmente preparações saborosas que têm um valor social, cultural e afetivo”, afirma.

Jamile Tahim, nutricionista e mestre em Nutrição e Saúde (Uece) (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)
Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal Jamile Tahim, nutricionista e mestre em Nutrição e Saúde (Uece)

Desta forma, ela explica que diferentemente do vício — que se configura como um transtorno de saúde mental induzido por uma substância que inclui padrões de comportamento de dependência e abstinência —, no caso do açúcar as pessoas podem vir a desenvolver um padrão de consumo semelhante, mas é incomum que indivíduos ajam de forma periculosa pela falta ou redução do consumo da sacarose.

“Não se pode, no entanto, equiparar o termo 'vício em açúcar' ao vício em drogas, como popularmente as pessoas questionam, por não existir evidência científica que sustente a hipótese de vício em açúcar por humanos”, aponta a nutricionista.

Sobre a comparação do açúcar com drogas como o tabaco, a professora do departamento de Engenharia de Alimentos da Universidade Federal do Ceará (UFC), Andréa Cardoso, elucida que o cigarro contém nicotina — um alcalóide do grupo orgânico das aminas. Ela se caracteriza pelo amargor e pela liberação de agentes tóxicos na combustão durante a queima do cigarro. A sacarose, por sua vez, é um glicídio constituído de duas moléculas, uma glicose, produzida no processo de fotossíntese na planta, e uma frutose.

Equilíbrio alimentar depende de uma boa dieta e a busca de saúde mental (Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Equilíbrio alimentar depende de uma boa dieta e a busca de saúde mental

“A nicotina é extraída das folhas do tabaco, e o açúcar é extraído do colmo da cana-de açúcar e da raiz beterraba açucareira. Contudo, assim como o tabaco, o açúcar provoca dependência. No caso do açúcar, ela ocorre uma vez que sua ingestão ativa receptores na língua, que enviam sinais para o cérebro, ativando vias de recompensa, liberando hormônios de bem-estar, como é o caso da dopamina”, descreve.

Nesse momento, por causa do elevado nível de glicose no sangue, o organismo libera grande quantidade de insulina e o nível de glicose no sangue cai, ativando assim a fome e o desejo por mais açúcar. “É essa sensação de bem-estar que pode levar à dependência e, consequentemente, ao consumo em excesso de açúcar”, traduz a professora.

O médico nutrólogo e professor de Medicina da UFC, Paulo Vasconcelos, detalha que existem fatores que podem contribuir para o consumo excessivo de açúcar. Dentre eles, estão determinados medicamentos que podem estar associados a mudanças nos padrões alimentares e que podem desencadear um aumento na busca por açúcar.

“Isso inclui corticosteróides, como a prednisona, alguns antidepressivos, alguns antipsicóticos e, surpreendentemente, alguns medicamentos para diabetes, como a insulina”, argumenta o médico.

 Doenças causadas pelo consumo excessivo de açúcar

Para a Psicologia, a compulsão por açúcar é um fenômeno complexo, influenciado por diversas questões psicológicas e emocionais, como a busca por conforto emocional, recompensa e prazer, além de desafios relacionados à autoimagem e autoestima, e até mesmo transtornos alimentares. É o que explica a psicóloga Karla Ito,. 

“Frequentemente, em momentos de ansiedade, estresse ou depressão, muitos buscam no açúcar um refúgio temporário, uma forma de melhorar o humor. Alimentos ricos em açúcar liberam neurotransmissores, como a dopamina, gerando uma fugaz sensação de bem-estar. Questões de autoimagem também têm um papel crucial. Indivíduos com baixa autoestima podem recorrer ao consumo de doces como um mecanismo de enfrentamento para seus sentimentos negativos”, diz.

Além disso, ela ressalta que essa busca desenfreada pelo consumo de açúcar frequentemente se entrelaça com transtornos alimentares, refletindo uma relação complexa e muitas vezes problemática com a comida.

 

 Relação entre açúcar e compulsão alimentar

 

Prestes a completar 30 anos, em 2016, a autônoma Délhi Gadelha decidiu que era a hora de uma mudança completa de vida. Como forma de amenizar a ansiedade, ela consumia doces em excesso. Todos os dias e em diferentes horários, ela comia balas, chocolates, bolos e sobremesas recheadas de açúcar, o que, à época, agravou o seu estado de saúde.

Délhi Gadelha tinha o costume de consumir muito açúcar. Quando estava perto do aniversário de 30 anos, decidiu procurar especialistas para iniciar novos hábitos(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Délhi Gadelha tinha o costume de consumir muito açúcar. Quando estava perto do aniversário de 30 anos, decidiu procurar especialistas para iniciar novos hábitos

“Minha alimentação era completamente desregrada. Eu sentia prazer em comer doces. Descontava o estresse nisso. Era um consumo desenfreado, compulsivo e diário. Estava insatisfeita com o meu corpo e comecei a ter problemas de saúde, como inflamações, fui diagnosticada com artrite reumatóide e fibromialgia. Isso me afetava muito, porque além da autoestima, sentia muitas dores”, relata Délhi.

Como no caso de Délhi, o médico nutrólogo Paulo Vasconcelos destaca que a compulsão alimentar ocorre quando o ciclo vicioso do sistema de recompensa cerebral se torna um padrão estabelecido. “A pessoa não consome alimentos movida pela fome, mas sim pela sensação que determinado alimento proporciona. O açúcar é particularmente problemático, pois pode levar à dependência de forma mais rápida”, afirma o especialista.

Conheça os diversos tipos de açúcar

A psicóloga Karla Ito complementa ainda que os três elementos — açúcar, ansiedade e compulsão alimentar — estão interconectados, formando um complexo emaranhado de causas e efeitos.  A ansiedade frequentemente desencadeia a compulsão. Neste contexto, a comida torna-se um meio para manejar emoções ou diminuir o estresse, embora de maneira disfuncional.

“O consumo de açúcar traz um alívio temporário aos sintomas de ansiedade, ativando o sistema de recompensa do cérebro e liberando neurotransmissores como a dopamina. No entanto, este alívio é passageiro, levando a um aumento progressivo do consumo de açúcar na tentativa de recriar essa sensação efêmera de prazer”, destaca.

No caso de Délhi, a proximidade do 30º aniversário, somada ao desejo de perder peso e de estabilizar o quadro de saúde, a fez iniciar um projeto que mudaria completamente sua relação com a alimentação e com o próprio bem-estar físico e emocional. Délhi começou sua jornada buscando o auxílio de especialistas e decidiu se matricular em uma academia.

Silvana Castelo Branco, psicóloga(Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)
Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal Silvana Castelo Branco, psicóloga

“Na época, eu fiz uma dieta bem restritiva, com auxílio de nutricionistas e de um cardiologista, junto à atividade física diária. Fiz tudo certinho e cheguei a perder 20 quilos em seis meses. Minha alimentação passou a ser balanceada, cortei o açúcar e reduzi a quantidade de calorias que consumia antes. Percebi que, para além das mudanças estéticas, alcancei, com muito esforço, um estilo de vida mais saudável e feliz”, diz.

A psicóloga e psicanalista Silvana Costa elenca que, apesar de que em determinados casos o consumo demasiado de açúcar não represente um quadro de compulsão alimentar, é importante que seja feita a busca por um profissional de saúde mental também. Isto porque, geralmente, “indivíduos com baixa autoestima, que passaram por traumas ou estão em processos depressivos, com graus de ansiedade intensos e/ou são portadores de estresse crônico, têm uma propensão maior na ingestão de doces para compensação”.

Nesses casos, a psicoterapia entra como forma de resgate da autoestima e do autocuidado de dentro para fora. Além disso, a psicanalista recomenda que a atividade física esteja sempre alinhada aos demais cuidados. “A atividade física é muito importante para a administração do estresse emocional. Com ela, a pessoa passa a desenvolver outras práticas para poder canalizar o desejo para desfocar essa busca desenfreada pelo açúcar”, sugere.


 

O consumo de açúcar ideal

Se o excesso faz mal, quando consumido com moderação o açúcar pode desempenhar um papel positivo no bem-estar emocional. A psicóloga Karla Ito comenta que um dos seus principais benefícios é a capacidade de melhorar o humor. Isso ocorre porque o açúcar ativa o sistema de recompensa do cérebro, estimulando a liberação de neurotransmissores como a dopamina, associada à sensação de prazer e satisfação.

“Além disso, o açúcar serve como uma fonte de energia rápida, que pode ser particularmente útil para potencializar as funções cognitivas e aumentar a sensação de alerta e bem-estar. Essa energia imediata pode ser benéfica em momentos de necessidade de foco e atenção. No entanto, é crucial ressaltar a importância de um consumo equilibrado, evitando excessos que possam levar a efeitos negativos na saúde”, elenca Karla.

Excesso de açúcar pode causar muitos outros danos à saúde além da diabetes(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Excesso de açúcar pode causar muitos outros danos à saúde além da diabetes

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), no máximo 10% das calorias diárias devem ser provenientes do consumo de açúcar. Considerando uma dieta de 2 mil calorias, esse percentual equivale a 50 gramas de açúcar por dia (cerca de dez colheres de chá).

No entanto, reduzir essa porcentagem para 5% (25 gramas ou 5 colheres de chá) é ainda melhor para a saúde. Essa recomendação abrange tanto os açúcares adicionados pela indústria quanto pela população no ato de cozinhar e consumir, bem como os naturalmente presentes nos alimentos (por exemplo, mel, suco de frutas).

O médico nutrólogo Paulo Vasconcelos destaca que o grande desafio em manter o equilíbrio reside no fato de que a maioria dos alimentos prontos contêm açúcar, o que pode distorcer nossa percepção da ingestão diária para valores mais elevados.

 

Alimentos que podem substituir o açúcar 

“Um exemplo prático ilustra uma situação cotidiana: é mais fácil para uma mãe ou pai solteiro abrir um pacote de biscoitos recheados e servir aos filhos antes de sair apressado para o trabalho do que preparar um alimento saudável. Essa dinâmica torna-se bastante complicada”, comenta o médico.

Aos 21 anos, enquanto fazia exames de rotina, o assistente administrativo Pedro Lucas Rodrigues foi diagnosticado como pré-diabético. Ele também consumia açúcar em excesso e não dispensava sobremesas como chocolates, bolos, sorvetes e biscoitos. Atualmente, com ajuda de especialistas, ele encontrou na substituição dos doces por frutas e pequenas quantidades de chocolates zero açúcar uma solução equilibrada para o consumo.

Frutas com tâmaras, bananas e ameixas podem substituir o açúcar(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Frutas com tâmaras, bananas e ameixas podem substituir o açúcar

“Estou fazendo uma dieta com acompanhamento de uma nutricionista. O consumo de doces ficou praticamente nulo, como somente em pequenas quantidades uma vez por semana, diferente de antigamente quando comia quantidades exorbitantes diariamente. Hoje, quando opto por comer algo doce, tenho tentado ingerir mais frutas e pequenas quantidades de chocolates zero açúcar”, relata Pedro.

Como alternativas para substituir o consumo de açúcar, a nutricionista Jamile Tahim indica a troca dos doces por frutas como tâmaras, ameixas desidratadas e bananas, além de adoçantes naturais como stevia, xylitol e eritritol — importante ressaltar que eles não são indicados para indivíduos que possuem disbiose ou condições de inflamação intestinal.

 Atendimentos de pacientes diabéticos em 2023 no Centro Integrado de Diabetes e Hipertensão (CIHD) do Ceará

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