A jovem Rânia, no filme homônimo que chegou à plataforma do OPOVO+ na última segunda, 29 de janeiro, tem um sonho: seguir carreira como uma dançarina profissional. No entanto, as condições financeiras e o apoio dos pais se apresentam como dificuldades em seu caminho.
Fora das telas da ficção, artistas cearenses enfrentam problemas similares nos labirintos de suas jornadas, buscando soluções em ocupações paralelas e diferentes da arte que em estão envolvidos. Os caminhos são vários, nenhum segue a mesma narrativa, mas as semelhantes dificuldades estão intrincadas nelas.
A dança levou Graziela Felix ao cinema, onde interpretou Rânia — que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz na 22ª edição do Cine Ceará. O momento como atriz, entretanto, foi rápido, apesar do “talento nato” destacado pela a diretora do longa, Roberta Marques, em recente entrevista ao Vida&Arte.
A insegurança neste talento por parte da dançarina foi um dos motivos que influenciou a jovem a não buscar o aperfeiçoamento nas técnicas. Por outro lado, a questão financeira também se levantou como uma barreira. Apesar dos convites recebidos para participar de outras produções, a cearense não tinha como arcar com as despesas em viajar para outros estados para atuar em outros projetos.
“Rânia” foi o único trabalho no cinema de Graziela, mas a carreira artística continuou na dança. Integrante da companhia Estrelas da Rua há quase 10 anos, mostra o amor pela arte a partir de coreografias apresentadas em festivais nacionais e internacionais.
Mas a paixão e dedicação pela a dança não afasta a realidade dura que sonda a realidade de muitos artistas: a impossibilidade de viver apenas da arte, precisando dividir o tempo com outro ofício. No caso dela, a massoterapia.
“Viver só de arte aqui no Nordeste, infelizmente, é muito difícil. Vivemos a dança porque amamos”, sustenta.
O diretor e fundador da Companhia Teatral Acontece, Almeida Junior, compartilha um pensamento similar ao da dançarina sobre as dificuldades dos setores artísticos. Por muito tempo, sua antiga profissão, a contabilidade, esteve em sua rotina juntamente com o teatro. Ela, inclusive, manteve e pagou as contas que a cia tinha com a arte cênica.
“Foi ela que manteve o teatro quase esse tempo todo. Eu utilizava o dinheiro das minhas férias, do meu décimo terceiro, do meu salário, para fazer cenário e figurino, porque, como não tinha apoio, saia do meu bolso”, declara.
Além dos detalhes para as montagens dos espetáculos, a base financeira também ajuda em aspectos, como em conseguir um espaço para ensaios e apresentações. Almeida aponta que tende a ser difícil arranjar locais para essa atividade, no início e no decorrer da carreira.
Segundo o diretor, há uma burocracia em adquirir permissão para utilização dos teatros públicos, além de que alguns se encontram fechados ou não possuem condições para receber o trabalho dos artistas. Nos teatros da iniciativa privada, os valores cobrados para a pauta tornam inviáveis que muitas companhias cearense consigam ocupar esses palcos.
O artista cênico relembra um outro desafio que ele e outros enfrentaram no início da carreira: a participação em editais, que exigiam um histórico com a presença de trabalhos realizados para conseguir aprovação.
“Hoje em dia, tem alguns editais que abrem opções para quem está iniciando. Na nossa época não tinha essa opção, você precisava ter um currículo bem bonito para conseguir passar neles”, relembra.
Os desafios com editais também estão nas páginas do setor literário. Quando a escritora Anna K. Lima passou pela a primeira vez em um, buscando a publicação do seu primeiro livro, houve um atraso no pagamento, gerando um impacto na produção da obra.
Foi por meio de uma editora independente que a autora alcançou a satisfação em ser impressa e publicada, conseguindo o apoio necessário.
“Quem escreve, quer ser lida”, lembra ela. Contraditoriamente, o maior desafio do escritor é, segundo ela, a distribuição de sua obra. Antes disso, outras dificuldades ainda aparecem pelo caminho, como a impressão, a revisão e a demanda por uma assessoria.
Para contornar essas situações, Anna afirma que é preciso que os escritores “tenham muito estudo”. “Irem atrás de se formar e capacitar em outras áreas que não somente a escrita e leitura, mas aprendendo a se tornar um microempresário individual, deixando em detrimento muitas vezes de ser só artista”, destaca.
Diante das situações enfrentadas, a artista oferece sugestões que podem se tornar soluções para essas questões. Para Anna K., o poder público deveria investir em um maior incentivo em políticas do direito às literaturas e desburocratizar os editais, democratizando o acesso para aqueles que não tem um “manejo”, com questões mais técnicas.
Almeida Junior também tem uma solução a sugerir, apontando que prédios públicos abandonados poderiam ser doados como sedes aos grupos de teatro sem local próprio, como uma forma de apoio à cultura cênica do Estado.
Aos 12 anos, Graziela Felix entrou no projeto social Vidança. Diferentemente da personagem que interpretou nos cinemas — que trazia em seu enredo a falta de apoio dos pais —, sua mãe foi responsável por aproximá-la da dança, quando a inscreveu nas aulas de formação.
A justificativa para a inscrição estava em uma preocupação de saúde: a mãe da cearense achava que ela não tinha a altura ideal para a meninas da sua idade. Assim, Graziela e a irmã gêmea entraram para o projeto, que hoje é reconhecido como escola da Cultura pelo governo estadual.
“Foi amor à primeira vista. Era muita informação, muita coisa que eu nunca tinha visto. Não aprendemos só arte, aprendemos como lidar com a vida”, relembra. Na dança, ela encontrou uma paixão e uma arte que gostaria de seguir carreira.
O amor e dedicação à arte, contudo, não é o suficiente para contornar os percalços e garantir a permanência da carreira artística.
Há quase 10 anos, Graziela é integrante fixa da companhia Estrelas da Rua, grupo de Fortaleza de danças populares. Divide o tempo entre os passos das coreografias com os movimentos realizados na massoterapia, sua segunda ocupação, para conseguir se manter.
“Fazemos realmente por amor, porque não [recebemos] apoio financeiro”, destaca, acrescentando que não tem como viver apenas da arte.
Na companhia, algumas alternativas também precisam ser tomadas para mantê-la ativa. Como exemplo, a dançarina explica que o grupo aluga o local fixo que possui para ensaios para eventos, com o objetivo de arrecadar dinheiro. Além disso, editais são realizados com o mesmo objetivo.
Quando participam de festivais, a alternativa encontrada pelo grupo é a realização de campanhas para a arrecadação de verba, e, em outros casos, recorrem às parcelas do cartão de crédito.
Frente às adversidades, Graziela ressalta que falta investimento dos setores públicos e em ações que incentivem a área cultural. Ela relembra que, por falta de incentivo, o projeto Vidança, que participou até 2012, quase fechou, e como as coisas ficaram mais difíceis com a pandemia.
“Nem todo mundo vê a arte com bons olhos, como uma experiência para o ser humano. No nordeste, principalmente, é difícil ter apoio de pessoas que podem realmente ajudar”, sustenta.
Quando trabalhava como contador, Almeida Junior participou de um curso oferecido pelo Conselho Regional de Contabilidade de inteligência emocional. A intenção ao se inscrever era melhorar sua socialidade, mas ali ele descobriu a vontade de fazer teatro.
Participou do grupo Pirilampo, no Conjunto Palmeiras, e em 2002 montou a Companhia Teatral Acontece. O pensamento de viver profissionalmente de artes cênicas, no entanto, não era uma possibilidade ainda naquele momento.
Durante 10 anos, Almeida viveu dividido entre a contabilidade e o teatro, mergulhando cada vez mais na arte, até que precisou decidir entre as duas. “Mesmo sabendo que no teatro enfrentaria bilhões de dificuldades para sobreviver, mesmo assim optei por ele”, conta.
As dificuldades são muitas, desde a customização do figurino, ao espaço em que o coletivo realizará suas atividades. Em 2022, a cia perdeu sua sede, mas conseguiu uma parceria com uma faculdade privada, a UniFametro, que cederam um local para eles até em 2023.
O ano de 2024 começou incerto sobre onde aconteceria as atividades formativas do grupo e seus ensaios. “Tenho um espaço terapêutico que trabalho com massoterapia, e resolvemos que faremos uma adaptação no nosso espaço e vamos transformá-lo também na escola de teatro”, revela.
A solução para o problema do espaço foi encontrada, mas outras questões ainda precisam ser resolvidas. A valorização dos espetáculos por parte do público do Estado também afeta as companhias, que precisam de espectadores para suas montagens.
“Quando vem um espetáculo de fora, lota, pagam ingressos caríssimos. Mas, na maioria das vezes, quando é pra ver um grupo cearense [não]”, aponta.
Almeida acredita que o motivo para essa preferência está ligado com a apreço do cearense pelo que vem de fora. “Valorizar o que vem da Globo, principalmente se for um ‘artista global’. É um público muito viciado em na linguagem de novela”, afirma. “Aos poucos está mudando, mas muito devagar”, continua.
Para superar essa afeição pelo que vem de fora, o diretor busca novas maneiras de atrair o público. Como exemplo, ele utiliza o Festival de Esquete, promovido pela companhia, que aconteceu em janeiro deste ano.
Para levar o público ao evento, eles criaram um sorteio especial para aqueles que participassem de todos do festival, sendo a premiação em dinheiro. “Tem que trazer uma situação que cause desejo nesse público de estar com você, porque se não tiver isso, as pessoas não sairão do Tik Tok, da novela, para ver seu espetáculo”, destaca.
“Hoje em dia, você tem que ser muito habilidoso nisso para poder trazer os espectadores”, conclui.
A escritora Anna K. Lima levou muitos "não” até receber seu primeiro “sim” em um edital. Ainda assim, o processo para publicação de seu livro não correu como esperava e ela precisou aguardar até a oportunidade com a Editora Substância chegar, onde recebeu o apoio que necessitava
Visando oferecer o mesmo para outras autoras, a cearense montou a própria editora, a Aliás, que atende mulheres que desejam publicar suas obras ou precisam de alguma ajuda específica para esse processo.
O objetivo da empresa é oferecer o serviço completo para a impressão e publicação de um livro, ou alguns específicos que cada escritora deseja. “Algumas escritoras não contratam o pacote todo, apenas alguns serviços específicos, como o curatorial, ou somente o de diagramação. Muitas vezes eles querem apenas o auxílio da ficha catalográfica”
O trabalho entre editora e autoras é uma parceria, acontecendo em conjunto para que o resultado final seja alcançado. Anna explica que isso é algo necessário a ser explicado logo no início, pois, por ser independente, a empresa não detém os mesmos meios de produção que as grandes do mercado editorial brasileiro.
Anna afirma que as dificuldades de manter a editora são as mesmas que um artista literário enfrenta — questões orçamentárias e de distribuição de material —, “e ainda mais”. “O acesso aos bens culturais é amplamente prejudicado - sobretudo - pelas burocracias existentes nas esferas públicas”, pontua.
“Não há investimento e nem mesmo preocupação em fomentar ações que não deem visibilidade ao gestor da pasta. Lançar livros não engaja nas eleições”, completa.
Uma das ações tomadas pela a Aliás para manter sua atuação no mercado foi abrir como uma editora de serviços, oferecendo valores acessíveis, mas buscando não perder a qualidade da linha curatorial.
Outro caminho que a empresa optou por criar para 2024 foi a criação de um selo editorial exclusivo para atender autores homens, o Entretantas, sendo um dos motivos a demanda pelo atendimento.
“Devido a essa demanda de escritores que querem vir conosco, somado a essa escassez de recursos, sejam eles próprios e também por questões por nenhum investimento público — esperando resultado de editais — vamos abrir esse selo editorial”, conta.