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Manual antirracista: Por que ensinar cultura africana nas escolas pode reduzir o racismo
Reportagem Especial

Manual antirracista: Por que ensinar cultura africana nas escolas pode reduzir o racismo

Pesquisa do Itaú Social constata que apesar das leis que asseguram o ensino da história dos povos afro-brasileiros e africanos na educação básica, apenas 1 em cada 10 escolas pesquisadas cumprem a lei

Manual antirracista: Por que ensinar cultura africana nas escolas pode reduzir o racismo

Pesquisa do Itaú Social constata que apesar das leis que asseguram o ensino da história dos povos afro-brasileiros e africanos na educação básica, apenas 1 em cada 10 escolas pesquisadas cumprem a lei
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Com um lápis em mão, escreva as leis: Lei do Ventre Livre, dos Sexagenários e a Áurea. O filho estava subjugado à mãe escravizada, o velho não aguentava mais viver e o último ficava a mercê do nada, porque não lhe foi dada estrutura. Em 1996, nasce a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional "Lei nº 9.394/1996 define e regulariza a organização da educação brasileira com base nos princípios presentes na Constituição"  que inclui, só em 2003, as temáticas Histórico-Culturais Afro-Brasileiras e Africanas na grade curricular, contudo, segundo pesquisa do Itaú Social, nove em cada 10 escolas não cumprem a Lei.

Na década de 90, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Na Ordem, o artigo 26 apresenta que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia”. Em 2003, o código foi alterado para tornar obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas.

No entanto, pesquisa feita pelo Itaú Social revela que 3.114 turmas do total de 3.467 estão sem a efetivação da LDB, ou seja, nove em cada 10 escolas não cumprem a Lei. Os resultados da Avaliação da Qualidade da Educação Infantil, realizada pelo Itaú Social em 2021, evidenciam que o atendimento feito às crianças nas unidades educacionais do Brasil é apenas regular. Contudo, há lacunas em relação às oportunidades de aprendizado relacionados à educação étnico-racial.

Uso e disponibilidade de materiais com repertório artístico-cultural e científico de diferentes origens étnico-raciais

Apesar dos dados oferecidos pelo Itaú Social, o secretário executivo de Equidade, Direitos Humanos, Educação Complementar e Protagonismo Estudantil, Helder Nogueira, afirmou que não existem dados oficiais, nem verificação acerca da efetivação ou não da Lei. Para o secretário, “a realidade da Lei é que ela é cheia de desafios, grandes e nacionais. Uma das principais questões, é que a Lei estabeleceu obrigatoriedade, mas não estabeleceu metodologia”, declarou.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de número 10.639/2003 existe há mais de 21 anos. Helder Nogueira conta que a secretaria vem desenvolvendo, há cerca de apenas dois anos, o Sistema de Gestão para a Equidade Racial, o qual conta com formação ampliada e processo de médio a longo prazo.

Segundo o Instituto Unibanco, que trabalha em conjunto ao estado do Ceará no Sistema de Gestão para Equidade Racial, o projeto “permite às escolas realizarem uma autoavaliação sobre como está o nível de suas ações pela equidade racial, ao mesmo tempo que são orientadas sobre possíveis atividades que podem realizar para melhorar sua atuação na área”.

Para Juliana Yade, coordenadora de Educação Infantil do Itaú Social, o Brasil é um país de população majoritariamente afrodescendente e periférico, mas não é representado adequadamente nas escolas e na educação. Conforme a pedagoga, “lidamos com esse dado quando observamos que as oportunidades de aprendizagem das crianças não estão relacionadas às relações raciais”, identifica.

Juliana Yade, doutora em educação pela Universidade Federal do Ceará(Foto: Reprodução / Linkedin - Juliana Yade)
Foto: Reprodução / Linkedin - Juliana Yade Juliana Yade, doutora em educação pela Universidade Federal do Ceará

A inclusão da obrigatoriedade das temáticas História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional vem da demanda de movimentos sociais negros. Desde o final do século XX, os movimentos vêm lutando por uma educação brasileira que pautasse questões da cultura afro-brasileira na base comum curricular das escolas ou, pelo menos, no processo curricular. A pesquisadora Juliana observa como a pesquisa retrata o racismo enquanto processo estruturador no Brasil.

Ao se ter racismo naturalizado na prática docente, no currículo, na composição das histórias formais e informais que dialogam com o patrimônio, as crianças pretas são afetadas de diversas formas. A pedagoga alerta que parte das educadoras, de alguma forma, negligenciam o corpo dessas crianças, ao pegar menos no colo ou mesmo ridicularizar seus cabelos. Para a coordenadora de Educação Infantil do Itaú Social, “a escola não pode ser um lugar de naturalização das violências, mas pode ser um lugar que traga criticidade”, explica Juliana Yade. 

Thais Pereira, diretora de Conteúdo Pedagógico no SAS Plataforma de Educação, afirma que a BNCC reforçou a lei e sinalizou como a legislação pode ser executada desde a educação básica. Segundo a psicopedagoga, “A Lei estabeleceu a diretriz inicial para que essa perspectiva seja trabalhada na educação como uma forma de promover uma reflexão crítica sobre a história dos povos africanos em suas origens e também como parte constituinte da matriz do povo brasileiro”, narra. 

A diretora de conteúdo ainda comenta que a temática é trabalhada da Educação Infantil até o último ano do Ensino Médio - de diferentes formas. Contudo, Thais Pereira explica que "em muitos contextos essas pautas ainda não são trabalhadas adequadamente, mas há avanços significativos nos últimos anos", observa.

O professor de História da Organização Educacional Farias Brito, Isaac Santos, afirma que, na escola, existe a aplicação da Lei por meio do livro didático que desenvolve a temática. “Primeiro, por meio do livro didático que tem capítulos que desenvolvem a temática diretamente e indiretamente. Depois, através da própria ação de muitos dos professores do departamento, com projetos e debates”, identifica.

Assim como a psicopedagoga Thais Pereira, Isaac Santos repara que a Lei ainda não é desenvolvida de forma completa. Para o professor de história, "a temática deveria estar relacionada de forma ainda mais explícita e menos dependente dos professores. Ou seja, mais capítulos e mais espaços para propor a reflexão dessa temática".

Já o professor de escola estadual, Márcio Manoel, comenta que é a Olimpíada Nacional de História Brasileira que “debate e insiste nessa temática”, a ONHB, porém, é voltada apenas para alunos a partir de 12 anos. Além disso, o professor lembra que “não é todo professor que está preparado para debater cultura africana”, destaca. 

O secretário executivo de Equidade, Direitos Humanos, Educação Complementar e Protagonismo Estudantil, Helder Nogueira, afirma, ainda, que o maior desafio em aplicar a Lei se dá devido o racismo no Brasil.

O racismo estrutural no Brasil se manifesta de duas formas: pelo material e pelo simbólico, o qual produz e difunde ideias que inferiorizam a cultura negra e naturalizam a superioridade branca. Segundo o ministro e jurista Silvio de Almeida, a negação do próprio racismo como sistema de opressão e a defesa de uma ideia de humanidade universal — “somos todos iguais” — são facetas do racismo estrutural.

 

Gráficos e mais informações estão disponíveis em: Racismo, educação infantil e primeira infância

Para a antropóloga Angela Abuk, “o racismo é um elemento estruturante da nossa sociedade", e completa: "os seus impactos são tão incalculáveis quanto as formas com as quais ele pode se apresentar”.

A estudiosa ainda pontua que a “infância é uma fase fundamental no reconhecimento de si no mundo e na construção da autoimagem e autoestima a partir desse reconhecimento”, explica. Para a antropóloga, “um dos impactos do racismo na infância de uma criança negra é decorrente da falta de referências positivas relacionadas a negritude”.

As mulheres negras cuidavam das crianças brancas das casas-grandes. Além do leite que as amamentavam, elas os ensinavam a falar, interagiam e desenvolviam suas capacidades — educavam. Em "Infância e educação infantil: uma abordagem histórica", Moysés Kuhlmann Júnior alerta que os cuidados com as crianças negras estão pouco documentados no Brasil, se as mães negras estavam ocupadas, os cuidados com seus filhos ficavam em segundo plano.

O Pedagogo pela USP, mostra em seus estudos que as creches populares não foram criadas visando à emancipação das mulheres negras, mas a necessidade das mulheres pobres terem onde deixar seus filhos, para que pudessem cuidar dos filhos de famílias mais abastadas. O cientista David Rudyard Williams "Professor Norman de Saúde Pública e presidente do Departamento de Ciências Sociais e Comportamentais da Escola de Saúde Pública de Harvard Chan. Ele também é professor de estudos africanos e afro-americanos em Harvard. " propõe o potencial que a família e a escola/creche têm em ser os primeiros “cursos de racismo”, pois se aprende a reconhecer, a elogiar a brancura da pele e a associar a pele escura à ausência de dignidade, inteligência e beleza.


Caminhos possíveis para uma educação infantil pela equidade racial

 

 

Brincando que se aprende

 

O psicanalista Donald Winnicott (1896-1971), pediatra, psicanalista inglês e autor de diversos livros sobre infância, como 'Seus bebês e suas mães', se volta para o brincar, enquanto verbo, percebido como uma potência propulsora de comunicação. Esse brincar não se limita às crianças e se estende aos adultos ao propiciar experiências como a integração de temáticas antirracistas por meio de brincadeiras.

Segundo o psicanalista Gabriel Azevedo, “é brincando que aprendemos e apresentamos um pouco da realidade”, explica. "A escola, assim como a família, ocupa um lugar primordial no processo de socialização das crianças, é, ou deveria ser, um ambiente de aprendizagem múltipla, um lugar de conhecer e construir histórias. A infância é a fase de reconhecimento de si no mundo e a construção da autoimagem e autoestima a partir desse reconhecimento", narra.

Assim, o Catálogo de jogos e brincadeiras africanas e afro-brasileiras foi pensado para introduzir o que está na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional pelo brincar. Para Débora Alfaia da Cunha, a ludicidade não significa falta de enfrentamento sério das desigualdades sociais, mas afirmar a urgência de valorização da corporeidade, da cultura, da história e da ancestralidade negras, escreve a doutora em educação na abertura do Catálogo.

Uma das linguagens infantis pode ser o brincar, que se expressa pelos campos da fantasia e contos de fadas. O racismo estrutural é o responsável pela demora na aparição de personagens negros no grande castelo da Walt Disney. Foi em 2009, apenas, com "A Princesa e o Sapo", que a negritude pode ocupar espaço no imaginário infantil negro.

No filme, Tiana sonha um dia abrir o seu próprio restaurante em Nova Orleans(Foto: Reprodução/Disney)
Foto: Reprodução/Disney No filme, Tiana sonha um dia abrir o seu próprio restaurante em Nova Orleans

Quando não se é a princesa, só resta outro personagem — a bruxa. O pedagogo Flávio Santiago "Pesquisador no Grupo de Estudos e Pesquisa Sociologia da Infância e Educação Infantil (GEPSI/ USP) e professor de educação básica. Santiago Possui estágio de pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Educação na linha Ciências Sociais e Educação (2019) pela Universidade Estadual de Campinas com estágio na Università degli Studi di Milano" , ao observar uma creche em São Paulo, percebe que uma menina acorda chorando devido aos seus cabelos lembrarem de uma bruxa. “Isso revela o peso de um padrão estético que liga o conceito de belo aos cabelos lisos, às tonalidades de pele clara, apresentando a gravidade que estes padrões exercem sobre os sujeitos”, explica o estudioso em "Gritos sem palavras: resistências das crianças pequenininhas negras frente ao racismo".

Para Juliana Yade, Coordenadora de Educação Infantil do Itaú Social, quando se fala de "brincadeiras inofensivas" que colocam as relações raciais fragilizadas no campo da brincadeira, as mais afetadas são as crianças. Para a pedagoga, “quando não conseguimos identificar nelas (brincadeiras) a possibilidade de diálogo e desenvolvimento das crianças, estamos falhando bastante ao não observar e enxergar a possibilidade de aprendizagem”, declara.

A coordenadora comenta que quando a criança ouve uma fala racista e escuta que isso é uma piada, sinaliza-se que a construção de mundo dela perpassa por essas violências que se normaliza e a prepara o que está por vir: a vida adulta será também violenta.

 

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