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De onde vem o cuscuz? Conheça a história e saiba como ele chegou ao Brasil
Reportagem Especial

De onde vem o cuscuz? Conheça a história e saiba como ele chegou ao Brasil

No dia 19 de março, o cearense comemora o padroeiro São José e o mundo celebra o dia mundial do cuscuz. Essa tradicional iguaria, da qual o nordestino tão bem se apropriou, tem gosto de história e regionalidade. O POVO+ vai contar qual a origem, falar sobre valor nutricional e outras curiosidades

De onde vem o cuscuz? Conheça a história e saiba como ele chegou ao Brasil

No dia 19 de março, o cearense comemora o padroeiro São José e o mundo celebra o dia mundial do cuscuz. Essa tradicional iguaria, da qual o nordestino tão bem se apropriou, tem gosto de história e regionalidade. O POVO+ vai contar qual a origem, falar sobre valor nutricional e outras curiosidades
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Em um recipiente, misture farinha de flocos de milho e umedeça com a água. Junte também o sal e deixe hidratar de 5 a 10 minutos. Coloque a mistura em uma cuscuzeira e cozinhe o cuscuz no vapor por aproximadamente 15 minutos. Pronto! Você pode se deliciar com o prato, que tem gosto de história e regionalidade, que de tão brasileira, parece nativa do País, mas precisou cruzar o oceano Atlântico até se enraizar no Brasil. 

Anualmente, em 19 de março, é celebrado o Dia do Cuscuz. A iguaria é reconhecida como patrimônio imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Mas, para além desse reconhecimento oficial, o prato detém grande consideração afetiva por milhões brasileiros.

O Nupê Café, localizado no Meireles, em Fortaleza, tem várias opções de cuscuz (Foto: Divulgação/Nupê Café)
Foto: Divulgação/Nupê Café O Nupê Café, localizado no Meireles, em Fortaleza, tem várias opções de cuscuz

A relação afetiva e cultural com prato é ainda mais especial para os nordestino que viram nele uma fonte de carboidrato barata, que pode substituir outros alimentos e compor a mesa em diferentes refeições, conforme explica a nutricionista e professora Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Roberta Becco.

Para saber da história do cuscuz, conhecer algumas curiosidades, entender como ele chegou no Brasil e como se firmou na rotina e memória dos brasileiros, precisamos voltar no tempo em uma saga épica. Então pegue o cafezinho e vamos lá!

 

 

Da África para o mundo: conheça a origem do cuscuz 

Feito com farinha de milho, de fácil preparo, baixo custo, mas com garantia de "sustança", o cuscuz, é uma iguaria tão difundida no Brasil, que muitos acreditam ser um prato criado na nossa terra, mas isso está longe de ser verdade. Na realidade, a origem do cuscuz sequer envolve o milho

Apesar de não haver um consenso sobre a origem exata do alimento, a hipótese que mais prevalece entre historiadores define a África como seu ponto de nascimento, mais especificamente na região de Magrebe, no noroeste do continente, na área que inclui o que conhecemos atualmente como o Marrocos, a Tunísia e a Argélia.

Tradicional cuscuz marroquino de frango com frutas secas e especiarias, vista superior. (Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Tradicional cuscuz marroquino de frango com frutas secas e especiarias, vista superior.

Um dos registos mais antigos da iguaria é datado do século XIII e está presente no livro de receitas magrebina Kitab al-tabikh fi al-Maghrib wa’l-Andalus s (Livro de Culinária do Magreb e Andaluzia), de autoria desconhecida.

Diferentemente de como conhecemos aqui no Brasil, a base do cuscuz africano é a farinha de trigo ou sorgo, um cereal encontrado na região. Além disso, a nutricionista Roberta Becco explica que o tempero utilizado originalmente é bastante diferente do que usamos aqui.

"O tempero que eles também utilizam não é como a gente faz aqui no Nordeste. Eles usam legumes, carneiro e caldo de carne. Colocam também passas, uvas tâmaras. O que tem na região é acrescentado para enriquecer o prato " Roberta Becco

O prato teria sido difundido para além das fronteiras africanas pelos povos berberes, grupo nômade cuja economia era baseada no comércio de diversos itens, como alimentos, tecidos e joias.

Mulher descendente do povo berbere no Marrocos em sua típica cozinha antiga com forno a lenha enquanto prepara o jantar(Foto: Julio Rodriguez/ Adobe Stock)
Foto: Julio Rodriguez/ Adobe Stock Mulher descendente do povo berbere no Marrocos em sua típica cozinha antiga com forno a lenha enquanto prepara o jantar

Em suas transações e mudanças, eles teriam levado o preparo para diversas outras regiões, entre elas, a Península Ibérica, formado por Espanha, Portugal e o principado de Andorra e Gibraltar.

Ao longo dos séculos, o cuscuz foi incorporado em diversas culturas, adaptando-se a elementos de cada regiões. Na França, por exemplo, uma das primeiras referências que se tem do alimento, são do século XVII.

A palavra "couscous" vem dos franceses, sendo uma tradução da palavra berbere "K'seksu", que faz referência ao som do vapor na cuscuzeira durante o cozimento do insumo.

No Brasil, após a colonização dos portugueses, o termo foi abrasileirado para "cuscuz", palavra que segue viva na língua e na mesa dos brasileiros. 

Salada francesa de cuscuz com bife grelhado, ervas e tomates (Foto: Adobe Sotck)
Foto: Adobe Sotck Salada francesa de cuscuz com bife grelhado, ervas e tomates


 

O Cuscuz na cultura brasileira

A introdução do cuscuz no cardápio brasileiro se deu pelos colonizadores portugueses por volta do século XVI e sofreu influência direta de três culturas distintas, a africana, a indígena e a portuguesa.

Já em solo brasileiro, a receita passou por adaptações com ingredientes locais. A sêmola de trigo - que era base da receita original - deu lugar ao milho, mandioca e coco, por exemplo. 

Roberta Becco é nutricionista, professora do IFCE(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Roberta Becco é nutricionista, professora do IFCE

 

 

"Eles trouxeram a memória daquela receita do cuscuz, só que aqui no Brasil na época não era fácil encontrar sorgo, trigo e outros ingredientes da receita. Então eles utilizaram o milho, que era o nosso alimento nativo" Roberta Becco

 

  

"Você sabia? Em 1996, Caruaru produziu 600kg de cuscuz. Fato reconhecido pelo Guinness World Records como maior cuscuz da história. Em 2023, o mesmo festival de São João chegou a produzir um cuscuz com 800kg de flocos de milho, fora os demais ingredientes (Antoyles Batista)"

  

 

Sobre a diferença cultural e a forma de consumo do alimento dentro do Brasil, a professora explica que ia-se acrescentando outros ingredientes conforme a influência da imigração que cada região teve. A questão econômica, por exemplo, influencia nas guarnições que o acompanham.

No Sudeste do Brasil, o cuscuz paulista herdou a farinha indígena e levou outros insumos como milho verde, sardinha, ovos, azeite, ervilha, molho de tomate, pimentão, azeite, alho e cebola, além da farinha de milho.

Cuscuz Paulista mistura o milho com outros condimentos como tomate, sardinha, ovo, molho de tomate(Foto: Flavia Novais Nakamura/Adobe Sotck)
Foto: Flavia Novais Nakamura/Adobe Sotck Cuscuz Paulista mistura o milho com outros condimentos como tomate, sardinha, ovo, molho de tomate

A versão paulista do alimento teria surgido entre o século XVII e XVIII, na época dos tropeiros, condutores de tropas de cavalo ou mulas que carregavam alimentos no farnel, uma espécie de bolsa para carregar alimentos durante uma jornada.

Tempos depois, a receita adotou a fôrma de bolo no preparo, dispensando a cuscuzeira, objeto comumente usado em outras regiões do País. As diferenças na receita e no preparo entre as regiões do Brasil alimentam "rixas" (e memes) entre os moradores de ambas as regiões sobre qual seria a melhor forma de consumir o alimento, já que o cuscuz paulista chegou a ser eleito a pior comida brasileira.

 

 

 

Cuscuz nordestino: Um símbolo de afeto e identidade

Na região Nordeste, o cuscuz é costumeiramente utilizado nas três principais refeições diárias, seja como prato principal do café da manhã - acompanhado de ovo, manteiga e queijo -, ou como uma espécie de farofa no almoço e jantar. Hidratada, a iguaria também é conhecida em alguns lugares do Ceará como pão de milho. 

O Nupê Café, localizado no Meireles, em Fortaleza, tem várias opções de cuscuz (Foto: Divulgação/Nupê Café)
Foto: Divulgação/Nupê Café O Nupê Café, localizado no Meireles, em Fortaleza, tem várias opções de cuscuz

Para o professor e chef de cozinha, Franzé Melo, o cuscuz tem uma importância histórica significativa para o povo nordestino, pois representa uma herança cultural e gastronômica.

"É um alimento tradicionalmente consumido em diversas ocasiões, como festas populares, celebrações religiosas e no dia a dia das pessoas. Além disso, o cuscuz é um símbolo de resistência e identidade regional, pois preserva tradições ancestrais e mantém viva a cultura nordestina". 

 

 

"Você sabe como se chama o objeto que fica no meio da cuscuzeira que separa a água do cuscuz? E não, o nome não é "trequinho da cuscuzeira", o objeto na verdade é oficialmente chamado de "ralo vaporizador", mas acredito que faz parte da cultura do cuscuz o fato de cada família o chamar de uma forma diferente"

 

 

Símbolo cultural e de regionalidade, a iguaria é muito ligada a cultura do Nordeste. E quem mora longe, como a cearense Sherida Teles, 48 anos, não abre mão de fazer o tradicional cuscuz brasileiro. A chef  de cozinha mora há dois anos e seis meses no Algarve, região no extremo sul de Portugal, mas o modo de preparo brasileiro, além de ser seu favorito, é uma forma de se conectar com sua terra natal. 

Sherida Teles, de 48 anos, mora há dois anos e seis meses em Portugal e não abre mão de fazer o tradicional cuscuz brasiliero (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Sherida Teles, de 48 anos, mora há dois anos e seis meses em Portugal e não abre mão de fazer o tradicional cuscuz brasiliero

“Preparar e consumir cuscuz aqui em Portugal é a lembrança do nosso paladar, sabe? É o que retrata as nossas raízes, então dá muita saudade toda vez que eu como um cuscuz bem quentinho”, recorda com saudosismo.

Sherida, que está fazendo uma especialização na cozinha portuguesa, conta que consumia a iguaria no mínimo duas vezes por semana quando morava em Fortaleza. Já em Portugal, seu apetite pelo bom cuscuz quentinho aumentou, atualmente ela consome um pacote por semana, que custa entre 2,50 a 3 euros, cerca de R$ 5,44, de acordo com a cotação de março deste ano.

O chef Franzé Melo diz que esse relacionamento afetivo das pessoas que moram longe com o cuscuz pode ser explicado pelo fato de que o alimento está associado a memórias, tradições e identidade cultural.

“Para aqueles que estão distantes de sua terra natal, o cuscuz pode representar uma conexão com suas raízes e uma forma de manter viva a cultura e os sabores de sua região”, complementa.

o chef de cozinha Franzé Melo, explica a importância histórica significativa para o povo nordestino(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal o chef de cozinha Franzé Melo, explica a importância histórica significativa para o povo nordestino

 

 

 

 

Da venda na esquina ao café refinado

Da venda na esquina, aos bairros mais nobres de Fortaleza, não é difícil encontrar o cuscuz em cardápios de cafeterias, restaurantes, hotéis ou barraquinhas de lanches. O prato sobrevive ao longo do tempo como um alimento democrático e está presente na mesa de praticamente todos os cearenses. 

No Nupê Café, localizado no Meireles, bairro nobre de Fortaleza, as opções são variadas e podem custar de R$ 14, na versão tradicional, até R$ 23 em um preparo mais recheado, com carne de sol e queijo coalho.

Bia Araújo, chef de cozinha e sócia-proprietária do estabelecimento, conta que o cuscuz é um prato muito pedido no café da manhã. O que mais sai é o que acompanha queijo coalho e carne de sol. “A santíssima trindade do nordeste”.

Ela relata ainda que o apetite pelo prato milenar independe de idade. “O cuscuz é muito pedido e por todas as idades. As mães pedem para os bebezinhos que já iniciaram a introdução alimentar, até os mais velhos que amam tomar café da tarde”, afirma.

A paixão pelo prato é tamanha, que esse amor se estendeu para além da mesa e ganhou vida em quatro patas. A empresária decidiu homenagear a iguaria ao batizar seu pet e melhor amigo como "Cuscuz".

"Tem alguém que não goste de cuscuz?", brinca. "Ele é maravilhoso, cheiroso e gostoso igual cuscuz", completa a mulher.

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Um alimento tradicional

Do ponto de vista nutricional, o cuscuz é um excelente alimento e, por não conter glúten, pode ser uma opção para aqueles com algum tipo de restrição alimentar. Em 100g da iguaria, temos 23g de carboidratos, 112kcal , 1,4g de fibras e muitos outros nutrientes.

Além disso, o várias vitaminas e minerais essenciais, como vitaminas do complexo B, ferro, zinco e magnésio, além de fibras dietéticas. O cuscuz, em sua forma básica, é naturalmente baixo em gordura saturada e colesterol, o que o torna uma opção saudável para quem procura controlar a ingestão de gordura.

Por esses motivos, o prato serve como um alimento curinga, conforme analisa Monalisa Moreira, nutricionista especialista clínica, estética e funcional.

Monalisa Moreira é nutricionista e especialista clínica, estética e funcional(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Monalisa Moreira é nutricionista e especialista clínica, estética e funcional

"Ele pode ser usado, por exemplo, no jantar substituindo o arroz ou macarrão ou outra fonte de carboidratos. E para a refeição ficar mais completa, a inclusão de uma fonte de proteína e salada, é interessante", sugere a nutricionista.

Outra característica da versatilidade do prato que existe há mais de 2 mil anos é que ele consegue combinar com outros acompanhamentos como queijo, ovos, carne moída, frango desfiado ou atum, por exemplo.

Há algum tempo o cuscuz se tornou um "queridinho" no universo fitness das academias e famosos porque potencializa o rendimento no pré-treino, devido ser de rápida absorção, e auxilia no pós-treino, sendo possível de ser consumido com proteína. Assim, ele pode auxiliar tanto no emagrecimento como ganho de massa muscular, explica Monalisa.

"A fama dele vem também de alguns nutrientes como potássio, que auxilia na contração muscular, e o selênio que também é um potente aliado para quem se exercita", destaca.

De tão versátil e irresistível, o cuscuz está presente na mesa dos brasileiros, sendo visto por muitos como um símbolo de resistência e afeto. Sua importância é reconhecida mundialmente.

No pedido de reconhecimento como Patrimônio Imaterial da Humanidade - confirmado em 2020 -, países argumentaram que o cuscuz é muito mais que um prato, e o definiram como "um momento, memórias, tradições e gestos, que se transmitem de geração em geração”. 

 


"Cuscuz para mim tem gosto de infância. Na receita da minha mãe, ela colocava coco e a gente se reunia para tomar com café. E depois de tanto escrever sobre a iguaria tornada nordestina, deu até vontade de comer um cuscuz quentinho. Se você sentiu também, a receita está disponível no começo da reportagem ;)"

 

 

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