O surgimento do termo ‘sebo’ tem algumas versões. A prática de ler livros à luz de velas engordurava os livros devido ao sebo da vela, a parafina. Outra versão, é que esses livros passaram por tantas mãos que ficavam ‘ensebados’ de gordura. Em alguns desses livros, que passam por tantas pessoas e estão, hoje, nas estantes desses sebos, há dedicatórias endereçadas a alguém. Mesmo com as tecnologias, as dedicatórias ainda narram caminhos misteriosos entre vários leitores.
Alda, professora aposentada da UFC, foi à rua 24 de maio, número 950, endereço do sebo “o Geraldo”, no Centro de Fortaleza, para trocar e vender alguns exemplares da sua biblioteca particular. Olhou para Estela Alvez, que trabalha nesse endereço há 23 anos, se sentou e disse que demoraria a entregar os livros. “Vou demorar aqui, porque ainda não tirei as dedicatórias. Vou arrancar as folhas e já te entrego”, explicou Alda à funcionária.
Segundo Estela, por algum motivo que ela não sabe explicar, os clientes procuram livros com dedicatórias. A funcionária conta que algumas pessoas decidem comprar um exemplar ou não a depender das inscrições marcadas no livro. Porém, com o tempo, ficaram mais raros tanto os livros marcados quanto as pessoas que os procuram.
O sebo “o Geraldo” conta com mais de 200 mil exemplares. Seu Geraldo e dona Estela somaram em suas várias estantes, ao longo de décadas, algumas bibliotecas particulares. Nos livros, para além do texto do autor, há marcas físicas deixadas pelos leitores. O livro mais antigo, encontrado por Estela, tem assinatura datada de 1948. As dedicatórias nos exemplares que resistem à passagem dos anos deixam pistas de fragmentos de histórias alheias que falam sobre amor, encontro e, agora, saudade.
Alberto Manguel, diretor da Biblioteca Nacional da Argentina e ensaísta, com livros publicados sobre temas que envolvem escrita e leitura, é autor de "A cidade das palavras: as histórias que contamos para saber quem somos". Nele, percebe-se a importância das palavras na construção do mundo interior do ser humano.
Quem cita Manguel é a professora e fundadora do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará, Alesandra Xavier, que escreve dedicatórias tanto em livros de sua autoria quanto nos que presenteia. Com estudos voltados, também, para psicanálise e literatura, ela explica que a linguagem, enquanto palavra, tem dimensão valiosa para o ser humano. Para a professora, a dedicatória tenta explicar o que sentimos pelo outro.
“Ela (palavra) é aquilo que vai nos humanizando. Então, quando a gente é tocado por uma obra, quando temos a vida afetada por aquilo, temos a tradução do que estamos sentindo. Quantas vezes um livro nos muda? Quantas vezes uma poesia nos oferece tradução para o que a gente não sabe? Quando a gente faz uma dedicatória e oferece um livro para alguém, o desejo da gente é de partilhar com outro algo”, identifica.
A doutora em psicologia conta que, para além de uma autoidentificação, as dedicatórias carregam um vínculo entre duas pessoas — o dedicado e o dedicador.
“Essas declarações envolvem declarações de amor, de afeto, de vínculo… O desejo de partilhar visões de mundo”, identifica.
Como nos tempos em que o rádio era um dos poucos meios de comunicação e o amante dedicava uma música a sua amada, esta a ouvia como se tivesse sido feita em sua homenagem.
Nos livros, diferente do rádio, o dedicador compõe o texto com a suas palavras, seus afetos e assina, de certa forma, a coautoria da obra.
Apesar dessa partilha de sentimentos, a professora comenta sobre a falência simbólica que vem percebendo nas relações. Para a estudiosa, as interações se limitam a figurinhas de WhatsApp, memes e há falta de elaboração dos sentimentos.
“As dedicatórias pedem que o escritor assuma um lugar de importância e escreva sobre suas memórias pessoais e subjetivamente. Porque é muito difícil mandar uma coisa ruim, né? Odeio você, por isso estou te dando esse livro. Isso não acontece. Vem de dentro e com bons afetos”, conclui.
A jornalista Erilene Firmino conta que, além das dedicatórias feitas para os outros, ela dedica também mensagens a si mesma. A escritora de “Manga verde com sal - cartas de amor, de luto, do sabor agridoce da vida” narra que essas inscrições nos livros são formas de não se perder de si própria.
“Como na história de João e Maria, eles vão para a floresta e vão botando os pedaços de pães para não se perderem. E eu fico assim, fico deixando rastros de mim nas (minhas) frases, para caso eu estiver perdida, me encontrar nesses livros, nas dedicatórias inscritas nesses papéis”, explica.
A escritora afirma que “o livro é frio, a gente que faz a obra”. Além de "riscar" seus livros, Erilene compartilha canetas com outros amigos no mesmo livro. Em "Encontro Marcado", do escritor mineiro Fernando Sabino há marcas dela e de mais dois amigos.
A história das canetas trocadas começou em 1989, quando ganhou de um colega que conheceu na época em que estudava no Colégio Estadual Liceu do Ceará, no bairro Jacarecanga.
“Esse é o livro da minha vida. E aí, pensei que se relacionasse só com um amigo, mas me remete também a outro amigo. Esses amigos que a gente vai fazendo e eles vão ficando, a gente vai deixando de se ver, deixando de se encontrar, mas as dedicatórias e o carinho ficam marcados”, narra.
Formada em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), Erilene comenta que as histórias desses livros e as inscrições que estão nele falam sobre ela e os amigos. "São vínculos que estabelecemos entre pessoas”, afirma a professora.
Erilene Firmino conta ainda haver momentos que gosta tanto de um livro, que ela tem que escrever nele sobre esse amor. “Tenho que fazer as minhas interferências. As pessoas não gostam muito de livro marcado, mas eu preciso fazer as marcações, sublinhar. Riscar um livro é ter nossa história marcada”, finaliza.
O vínculo por meio da palavra fica marcado no papel. A designer, Mariana Gogu, teve uma ideia e criou o Eu te dedico, perfil no Instagram feito para colecionar esses fragmentos de amor. A colecionadora conta que passeava pelos sebos e procurava os livros que tivessem dedicatórias, buscava por essas memórias.
Apesar de procurar nos sebos por esses trechos, sempre se deparava apenas com o nome do antigo dono e data. Ela conta que “quando você dá um livro com dedicatória dificilmente a pessoa vai se desfazer daquilo. As que vão para os sebos (dedicatórias) não são tão detalhadas”. Pelo Instagram, os seguidores são incentivados a mandarem suas dedicatórias tanto as que receberam quanto as que escreveram.
A designer comenta que todas as suas dedicatórias são diferentes, mas, geralmente, contam com o nome — do dedicador e dedicado — data, local e os detalhes do momento que marcou ambos.
Essas ‘rasuras’ nas primeiras páginas do papel falam sobre duas pessoas. Conforme o tempo passa, esses livros acabam tomando outros rumos, nas estantes dos sebos, por exemplo, ou, como é o caso, em páginas de Instagram. O que acontece é que essa palavra escrita dá corpo a algum sentimento partilhado. Mesmo que mude, ele está marcado fisicamente ao punho. Os amores se vão, os livros permanecem. E as dedicatórias também.