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Eólicas e morcegos: uma relação fatal a ser contornada
Reportagem Especial

Eólicas e morcegos: uma relação fatal a ser contornada

São milhares de morcegos ameaçados por ano no Brasil por conta do funcionamento de parques eólicos. Para especialistas, o cenário mostra que os parques precisam assumir medidas protetivas para evitar a morte desses animais e garantir uma energia verdadeiramente sustentável

Eólicas e morcegos: uma relação fatal a ser contornada

São milhares de morcegos ameaçados por ano no Brasil por conta do funcionamento de parques eólicos. Para especialistas, o cenário mostra que os parques precisam assumir medidas protetivas para evitar a morte desses animais e garantir uma energia verdadeiramente sustentável
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À noite, o vupt-vupt constante das eólicas rompe o silêncio. Pás gigantescas deslocam enormes massas de ar, ensurdecendo a vida ao redor. Apesar do barulho, elas parecem inofensivas; melhor, elas parecem esperançosas. Os parques eólicos são parte da solução para enfrentar a crise climática, garantindo uma transição de uso de combustíveis fósseis para uso de energia verde. O problema é quando o verde ameaça espécies importantes para equilíbrio de ecossistemas.

Vista de aerogeradores de energia eólica, ao pôr-do-sol. Pôr-do-sol no Titanzinho no bairro Serviluz.(Foto: RODRIGO CARVALHO)
Foto: RODRIGO CARVALHO Vista de aerogeradores de energia eólica, ao pôr-do-sol. Pôr-do-sol no Titanzinho no bairro Serviluz.

Ocorre que morcegos morrem noturnamente após colidirem nas pás das turbinas. Esses mamíferos são importantes polinizadores e controladores de pragas, prestando serviços ecossistêmicos que possibilitam a segurança sanitária e alimentar dos humanos e outras espécies. Infelizmente, a mortalidade por eólicas é absurda: na Alemanha, a estimativa é de 200 mil mortes ao ano; nos Estados Unidos, é provável que mais de um milhão de indivíduos morram anualmente.

Quanto ao cenário do Brasil, os dados são opacos. Em tese de doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a bióloga Marília de Barros estima uma taxa de fatalidade de 4,7 morcegos mortos por turbina ao ano no agreste do Rio Grande do Norte (RN). Considerando que o estado tem 4.151 aerogeradores em funcionamento, uma conta simples aponta que cerca de 19.509 morcegos podem ter morrido apenas no RN no ano passado.

 

 

De acordo com o painel da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), com dados da Aneel "Agência Nacional de Energia Elétrica" , o Brasil tem 978 parques eólicos em operação, totalizando 10.325 aerogeradores. Ao mesmo tempo, outros 1.973 parques estão ou em fase de documentação do Requerimento de Outorga (DRO), o que equivale a 71,7% dos casos, ou em construção (6,2%), ou ainda não foram iniciados (22,1%).

 

 

“Apesar de termos centenas de parques eólicos no Brasil, temos uma enorme lacuna de informação sobre os impactos que eles têm, principalmente sobre os morcegos”, aponta o biólogo Enrico Bernard, professor da UFPE e um dos autores de uma pesquisa multinacional que analisa possíveis soluções para o conflito entre eólicas e morcegos, publicada hoje na revista científica BioScience.

“Você vai ficar surpresa se eu te disser que a gente não tem nenhum estudo científico publicado que fale sobre a mortandade de morcegos associada às eólicas”, critica o professor. Não é que os dados não existam: eles simplesmente não são disponibilizados publicamente, caindo em uma “caixa-preta”.

Isso ocorre porque todos os empreendimentos de eólicas precisam apresentar um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para serem viabilizados, mas não há a obrigação de divulgar estes dados. “Sabemos que eles existem porque a gente sabe que tem consultores que estão coletando essas informações”, reforça.

Morcego-Bombachudo (Chrotopterus auritus) é uma das espécies que ocorre no Ceará(Foto: Irineu Cunha, alguns direitos reservados (CC BY-NC))
Foto: Irineu Cunha, alguns direitos reservados (CC BY-NC) Morcego-Bombachudo (Chrotopterus auritus) é uma das espécies que ocorre no Ceará

A relação fatal, no entanto, é bem conhecida. “Há mais de dez anos já tínhamos indícios. Os animais que voam sempre foram muito afetados pelas eólicas”, explica Enrico.

Para o pesquisador, há uma clara contradição na falta de transparência dos impactos dos parques eólicos. Afinal, a indústria eólica tem uma imagem ambiental forte, associada à energia menos poluente. “Eles deveriam ser os principais interessados em provar que essa fonte de energia não tem impacto”, argumenta. “Nós temos parques no Brasil que têm potencial de zero mortandade de morcegos, mas também temos parques que existem informações não publicadas de centenas de morcegos morrendo.”

Em nota enviada ao O POVO, a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) explica que durante o processo de emissão do licenciamento ambiental, as empresas avaliam se a área é rota de espécies migratórias. "O monitoramento constante nos primeiros anos de operação também é fundamental", afirma a associação. "Há na literatura estudos que mostram ainda a tendência natural das aves de desviar das estruturas e até mesmo de mudar parcialmente sua rota."

"Quando as empresas fazem os estudos para avaliar a viabilidade ambiental dos parques, o que integra o processo de licenciamento ambiental, todos os impactos são analisados, entre eles os relacionados à avifauna e quiropterofauna", continua. De acordo com a ABEEólica, todos os impactos que não puderem ser evitados ou mitigados,devemm ser compensados. "Há diversas medidas que podem evitar ou mitigar os impactos sobre a avifauna e a quiropterofauna, a exemplo da pintura especial para as pás e outros recursos tecnológicos que estão sempre em evolução, como a mudança de velocidade ao detectar uma aproximação, com diminuição da rotação e até mesmo a parada por completo do aerogerador."

 

 

Como as turbinas eólicas matam os morcegos?

As turbinas eólicas podem vitimar os morcegos de duas maneiras: uma delas é o risco de colisão com as hélices. A depender da velocidade do vento, o sistema do aerogerador pode fazer 18 a 25 rotações por minuto (lento) até 1.800 rotações por minuto (rápida). Os valores são baseados na publicação da Enel Green Power sobre o funcionamento das hélices eólicas.

Por outro lado, nem sempre o morcego vitimado bateu em uma pá. De acordo com o professor Enrico, há também a morte por barotrauma: “Quando o deslocamento de ar é tão forte que pode estourar o pulmão do morcego”, explica.

Um artigo canadense publicado em 2008 na revista científica Current Biology já indicava o barotrauma como principal causa de morte entre os morcegos próximos de parques eólicos em Alberta, no Canadá. “Nós descobrimos que 90% das fatalidades de morcegos envolveram hemorragia interna consistente com barotrauma, e que o contato direto com as turbinas totaliza apenas metade das fatalidades”, descrevem os autores da pesquisa liderada pela bióloga Erin Baerwald.

O estudo também sugeriu que uma das razões para as aves morrerem menos que os morcegos nas eólicas está na anatomia respiratória delas, que seria menos suscetível ao barotrauma. Vale ressaltar, no entanto, que as aves também correm perigo com as hélices: outro estudo publicado em 2014 na revista PLOS One calcula que 368 mil das mortes anuais de pássaros decorrem de colisões com as turbinas eólicas.

Estação de energia eólica em Canoa Quebrada(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Estação de energia eólica em Canoa Quebrada

Todas essas mortes tendem a aumentar durante os períodos migratórios de morcegos e aves, pelo menos nos Estados Unidos. É o que indica pesquisa publicada em 2023 também na PLOS One, que usou dados de 114 estudos de monitoramento pós-construção realizados em instalações eólicas nos Estados Unidos.

Ainda, a instalação de parques eólicos provoca a fragmentação dos habitats desses mamíferos. Os animais acabam perdendo abrigo e evitam a área, deslocando-se para outros lugares. Apesar de este não ser um fator de morte, é igualmente preocupante por forçar a saída de espécies chaves.

 

Mapeamento de cavernas com ocorrência de morcegos no Brasil

Pressione o botão ‘Ctrl’ para dar zoom no mapa. Clique nos círculos em amarelo para acessar informações sobre a classificação de riqueza de morcegos em cada caverna, e se ela abriga espécies ameaçadas de extinção. No celular, use os dedos para dar zoom e clicar

 

Os morcegos são cruciais para o equilíbrio dos ecossistemas. Além de serem ótimos polinizadores, também são controladores de pragas, pois comem insetos que podem tanto transmitir doenças aos humanos, quanto prejudicar plantações agrícolas.

“Por isso, toda vez que você tomar uma margarita, tomar uma dose de tequila, faça um brinde aos morcegos”, brinca Enrico, pontuando produtos beneficiados pela existência dos animais. “Se você gosta de chocolate, agradeça aos morcegos também, porque eles comem pragas que atacam o cacau. A indústria do milho aqui no Brasil economiza todo ano 360 milhões de dólares pela supressão da lagarta-do-cartucho do milho por causa dos morcegos.”

Ou seja, além do direito inquestionável dos morcegos de terem as vidas protegidas, há também um interesse econômico e ambiental por parte dos humanos. No Ceará, oito espécies de morcego estão em alguma categoria de ameaça à extinção: quatro em perigo, três vulneráveis e um criticamente em perigo.

 

 

Como as eólicas podem proteger os morcegos?

O primeiro ponto a ser considerado é onde as turbinas estão sendo instaladas. No Nordeste, as eólicas em porções de alto relevo são as com maior potencial de impacto, pois interagem com os habitats dos morcegos, diferente de boa parte das eólicas ao longo da costa.

Morcego-Bombachudo (Chrotopterus auritus) é uma das espécies que ocorre no Ceará(Foto: tadeo_mateos, alguns direitos reservados (CC BY-NC))
Foto: tadeo_mateos, alguns direitos reservados (CC BY-NC) Morcego-Bombachudo (Chrotopterus auritus) é uma das espécies que ocorre no Ceará

“Considerando que a vida útil de um parque eólico é de 20 a 25 anos, é possível extinguir regionalmente uma população de morcegos”, alerta Enrico. Esse aspecto deve ser avaliado considerando os dados dos Estudos de Impacto Ambiental. “As turbinas eólicas não deveriam ser construídas em locais ecologicamente valiosos e sensíveis, evitando estar nas proximidades de bordas de florestas ou de corpos de água, bem como a instalação de parques eólicos em corredores de migração conhecidos para aves e morcegos”, apontam os pesquisadores.

Além disso, a forma que as turbinas operam precisa levar em consideração os hábitos dos animais, adotando o “curtailment”. Ou seja, a redução de produção de energia em momentos específicos, reduzindo a velocidade à noite. A estratégia é vantajosa pois, em áreas temperadas, a perda de rendimento dos parques com esse modelo é baixa (de 1% e 4%), enquanto a redução de mortalidade de morcegos é de mais de 80%.

“Para que isso tudo funcione, a gente precisa de normativas que realmente sejam boas e sejam eficazes em relação a o impacto ambiental”, reforça Enrico. O estudo publicado na BioScience teve participação de autores de nove países: Brasil, Alemanha, Austrália, Estados Unidos, França, Porto Rico, Quênia, Taiwan e Reino Unido.

 

 

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