Metade das linhas de ônibus de Fortaleza tiveram redução do número de viagens no período entre dezembro de 2023 e abril deste ano. Ao todo, 154 rotas (50,65% do total) foram alteradas ao longo dos últimos quatro meses, com perdas de até 47% nos itinerários mais prejudicados.
Segundo levantamento exclusivo do O POVO, as linhas mais afetadas trafegam nos extremos da cidade, em bairros das Secretarias Regionais (SER) 6, 9 e 10. A análise foi feita com base nos horários de cada linha em 8 de dezembro de 2023 e 8 de abril deste ano, que podem ser acessados através do Catálogo de Serviços da Prefeitura de Fortaleza.
O bairro Jangurussu, na SER 9, se destaca negativamente, figurando em 3 das 10 linhas que mais registraram diminuição de viagens durante o período. A redução tem sido sentida por moradores da região desde o início do ano. Entre os reclamantes está Regina de Oliveira, de 50 anos, que lista diversos problemas como insegurança nas paradas, mudança na rotina, falta de conforto nos coletivos, entre outros desafios, todos causados pela queda na quantidade de viagens.
“A gente tem que acordar mais cedo, correndo risco de ficar mais tempo nas paradas, às vezes ficando 20, 30 minutos. (...) Eu já fiquei uma hora esperando o ônibus, e com frequência. Uma hora, 1h20min, esperando o ônibus para retornar para casa”, relata a auxiliar de laboratório.
Segundo levantamento feito pelo O POVO em 304 linhas de ônibus de Fortaleza, as rotas utilizadas por Regina (646 - São Cristóvão/Messejana e 635 - Tamandaré/Messejana), perderam, respectivamente, 43,9% e 42,5% das viagens durante o período analisado. As quedas foram de 41 para 23 viagens no São Cristóvão e de 40 para 23 no Tamandaré.
Os problemas não se restringem ao tempo gasto para ir ou voltar dos destinos. Devido à falta de espaço, dentro dos coletivos a situação apresenta outros embaraços, conforme conta a usuária.
O desconforto no interior dos coletivos vai além do espacial. A passageira reclama ainda que o aperto incomoda principalmente as mulheres, que se sentem mais vulneráveis a casos de importunação sexual em meio às multidões diárias.
“A gente tem que se afastar mais para não encarar como um assédio, para (os homens) não se aproveitarem”, complementa.
O sofrimento gerado pela redução das viagens diárias de ônibus não é exclusivo à população do Jangurussu. Entre os milhares de passageiros prejudicados pela diminuição, os da linha 334 - Monterrey/Siqueira, são os que mais têm a reclamar.
Com 22 viagens a menos por dia, a linha foi a mais afetada entre as mais de 300 que compõem a frota de Fortaleza. Em dezembro do ano passado, o ônibus fazia 46 percursos que iam do Terminal do Siqueira, no bairro Vila Peri, até a rua Dionísio Cerqueira, no Novo Mondubim. Neste abril, 24 viagens são realizadas diariamente pela rota, o que representa uma redução de 47,83%.
Consequentemente, o tempo de espera pelo 334 também aumentou. Em dezembro do ano passado, o tempo médio entre a saída dos ônibus do Terminal do Siqueira era de 25 minutos, com intervalos máximos de 41 minutos. Este ano, o intervalo médio de saídas da rota é de 48 minutos, chegando a até 1h18min, entre os veículos de 8h6min e 9h24min.
Para Cristiane da Silva, 42, usuária do 334, os momentos mais difíceis foram logo que a redução foi iniciada, já que ela veio sem aviso prévio. Ela relata que os passageiros tiveram de adequar as rotinas para os novos horários.
“Tudo também é o costume, né? A gente está acostumado com dois ônibus (número anterior de veículos na frota, segundo ela) e, de repente, libera só um? Aí tudo complica”, comenta a moradora do bairro Mondubim.
Para evitar ruído de dados e eventual sazonalidade do mês de dezembro, O POVO comparou os dados não só entre dezembro do ano passado e abril deste ano, mas ainda entre datas equivalente em 2023 e 2024. O cenário se mantém. Eram 46 viagens nos dois pontos do calendário do ano passado. Agora, são 24.
A queda neste abril de 2024 é ainda maior se comparada com os dados dos meses de abril de 2022 e 2021, quando eram feitas, respectivamente, 53 e 54 viagens pelo 334, o que reforça o cenário atípico visto neste quadrimestre.
Na contramão da diminuição, quatro linhas aumentaram o número de viagens entre o dezembro último e abril deste ano. São elas as linhas 680 - José Walter/Cidade Jardim/Papicu, 345- Cj Ceará/Siqueira, 627 - Lagoa Redonda/Papicu e 213-Jardim Guanabara/Cj Nova Assunção II, que ganharam, respectivamente, três, duas e uma novas viagens, cada. Em abril do ano passado, os números se mantiveram os mesmos.
Fortaleza registra, ao fim do primeiro quadrimestre, 1.276 viagens a menos que em dezembro de 2023, redução um pouco acima de 26%. Segundo os dados analisados, 146 linhas mantiveram o mesmo número de viagens de 2023.
A diminuição na média no número de viagens de ônibus pode ser sentida de diversas formas em metrópoles como Fortaleza. Para usuários do sistema público de transporte, os efeitos surgem no tempo de espera, no desconforto dentro de veículos mais lotados, na necessidade de alteração nas rotinas de cidadãos. Mas a onda de efeitos vai além, uma vez que o trânsito da cidade é diretamente afetado.
Para Mário Azevedo, doutor em Engenharia de Transportes pela Universidade de São Paulo (USP), os ônibus ainda se configuram como um dos principais meios de transporte coletivo e são responsáveis por desafogar outras formas de locomoção, como os veículos de transporte por aplicativos, que quando em grande quantidade, ocupam mais espaço nas vias.
“Se você pegar um ônibus, ele carrega em condições boas de conforto, 70, 80, pessoas. Não todo mundo sentado porque isso é inviável para viagens urbanas. (...) Já se você ver um automóvel, ele passa com um (passageiro), outro com três… Na média, se ele carrega aí duas pessoas, para carregar 80 (pessoas) você precisa de 40 automóveis”, mensura Mário, que é ainda professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O docente também aponta que o transporte público oferece, de certa forma, uma estabilidade para os passageiros. Afinal, se há a certeza de que o ônibus irá passar por aquele ponto, ele não vai precisar pagar mais por um veículo por aplicativo ou utilizar um meio de transporte particular.
Mário reforça que a importância dos coletivos não se restringe aos passageiros, ela se estende ao funcionamento de vários setores das cidades. Entre estes está a economia, já que o número de viagens disponíveis afeta diretamente a locomoção de quem trabalha e compra em polos comerciais, como o Centro de Fortaleza, por exemplo.
“Transporte público funcionando bem é muito bom para a cidade toda. Mesmo que eu seja uma pessoa que tenha carro, um dono de empresa que nunca pegue ônibus, eu preciso que meu funcionário chegue lá para trabalhar e que meu cliente chegue lá para comprar”, conclui.
Fortaleza registra, ao fim do primeiro quadrimestre, 1.276 viagens diárias a menos que em dezembro de 2023. A redução é um pouco acima de 26%. Segundo os passageiros, a queda nas viagens tem sido acompanhada ainda por uma diminuição no número de veículos disponíveis em cada linha.
Marta Janara, de 33 anos é usuária da linha 603 - Jardim União/Centro. Ela afirma que ao tentar descobrir o motivo da maior espera, foi informada por pessoas responsáveis pela linha que o 603 havia perdido automóveis.
“Disseram que era o mês das férias e por isso reduziram. Quando voltaram as aulas, ao invés de botar mais dois, fizeram foi tirar mais dois. Eram oito e agora são seis”, conta a entregadora. De acordo com o levantamento do O POVO, o 603 perdeu quatro viagens diárias.
A hipótese é reforçada por Sávio Lima, 33, que utiliza a linha 303 - Igreja São Raimundo/Centro. O ceramista diz ter conversado com motoristas da linha que confirmaram a redução no número de veículos.
“Antigamente passavam três ônibus e agora só tem um na frota, então tá demorando o triplo do tempo para a gente conseguir pegar”, conta. No levantamento do O POVO, o número de viagens por dia do 303 caiu 37%: de 27 em dezembro, para 17 em abril.
A denúncia dos passageiros foi confirmada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários no Ceará (Sintro-Ce), movimento que representa os motoristas de ônibus do Estado.
Conforme o Sindicato, a queda tem afetado também a categoria, já que motoristas têm sido demitidos devido ao menor número de viagens. Segundo dados do Sintro-CE, 153 trabalhadores foram desligados desde o início do ano.
A associação laboral acrescenta que são ainda impostas condições precárias de trabalho aos que não são demitidos. Restam, segundo o Sintro-CE, perdas de direitos acordados em convenções, como o tempo de descanso entre viagens.
“Muitas vezes os motoristas não descem nem no terminal, no ponto de apoio, para fazer suas necessidades. Perdem seu horário de lanche por motivo de atraso, para que os ônibus fiquem menos tempo parados”, relata o presidente do Sintro-CE, Domingos Neto.
Procurado pelo O POVO, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Ceará (Sindiônibus), informou que "as decisões relacionadas ao dimensionamento da frota, rotas e linhas são fundamentadas em critérios técnicos, os quais são avaliados, estabelecidos e autorizados pela Etufor".
Em nota, a classe também apontou uma redução na demanda por coletivos na Capital, o que segundo o sindicato, "impacta diretamente nesse dimensionamento". O Sindionibus também disse que os desligamentos nas empresas são dinâmicos e dependem da demanda por profissionais.
"Quanto a demissões e contratações de colaboradores, incluindo os motoristas, salienta-se que esse processo é dinâmico e realizado levando em consideração o volume de oferta do momento. Dessa forma, as empresas de ônibus em operação precisam se ajustar ao cenário vigente", conclui o texto.
Questionado se há algum estudo realizado pela classe ou dado que comprove essa redução no número de passageiros, o Sindionibus não respondeu até a última atualização desta matéria.
As entrevistas com Marta e Sávio foram realizadas em 5 de abril. No dia 8, a Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor) foi questionada sobre o número total de linhas de ônibus atuantes em Fortaleza e quantos veículos cada uma possuía em 8 de dezembro de 2023 e 8 de abril deste ano.
Mais de uma semana depois, a Etufor enviou nota, que não continha nenhum dos dados solicitados. O POVO questionou novamente a empresa pública, que se restringiu a responder unicamente pela nota a seguir, publicada na íntegra.
"A Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor) avalia diariamente a oferta de veículos de acordo com a demanda de passageiros. O planejamento no sistema de transporte coletivo auxilia no equilíbrio entre a necessidade da população e a disponibilização do serviço. Os passageiros podem programar suas viagens pelo aplicativo Meu Ônibus (android e IOS), para conferir os horários dos veículos. O usuário também pode entrar em contato com a Central 156 para informar sobre a oferta de ônibus na linha utilizada".
Diante da negativa, O POVO analisou 304 linhas de ônibus que circulam por Fortaleza, dentre as quais constatou redução de viagens diárias em 154.
Após a apuração, a Etufor foi novamente contatada, desta vez sobre os motivos que levaram às reduções em metade das linhas de Fortaleza. A matéria será atualizada assim que uma resposta for emitida pela empresa.
Para acessar o número e os horários das viagens de um ônibus da Capital, o interessado deve acessar o Catálogo de Serviços da Prefeitura de Fortaleza, e clicar na aba “mobilidade”.
Em seguida, o usuário deve descer a página até o tópico “Horários de ônibus” e acessá-lo. Uma nova interface será aberta, onde o usuário deverá clicar no link abaixo do intertítulo “Link do Serviço”. Nele é possível consultar os horários de cada viagem das mais de 300 linhas de ônibus de Fortaleza, em data a sua escolha.
Para a análise, O POVO comparou os horários de todas as linhas em 8 de dezembro de 2023 e 8 de abril de 2024. No caso das 10 linhas mais prejudicadas, também foram analisados os horários de 10 de abril de 2023, data escolhida por compreender a segunda segunda-feira do mês, mesmo cenário do dia 8 deste ano.
Em casos de linhas que rodam apenas nos fins de semana, foram escolhidos o sábado ou o domingo mais próximos do dia 8 de cada mês.
As linhas 1074 - Antônio Bezerra/Unifor/TRE e 1815 - Expresso/Messejana/BR-116/Papicu foram excluídas da análise por possuírem dados inconclusivos no site da Prefeitura de Fortaleza.