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Liberdade desfrutei: dona Ivone Lara e o poder curativo da música na luta antimanicomial
Reportagem Especial

Liberdade desfrutei: dona Ivone Lara e o poder curativo da música na luta antimanicomial

Primeira-dama do samba dedicou quase 40 anos a uma trajetória pouco conhecida como profissional da saúde e fez parte do movimento contra o estigma da loucura numa época em que nem se falava em musicoterapia. Ao lado de Nise da Silveira, uma das referências da luta pelo fim dos manicômios no Brasil, a enfermeira deixou grande obra humanitária para o campo da saúde mental — com sabedoria ancestral e devir-negro na profissão

Liberdade desfrutei: dona Ivone Lara e o poder curativo da música na luta antimanicomial

Primeira-dama do samba dedicou quase 40 anos a uma trajetória pouco conhecida como profissional da saúde e fez parte do movimento contra o estigma da loucura numa época em que nem se falava em musicoterapia. Ao lado de Nise da Silveira, uma das referências da luta pelo fim dos manicômios no Brasil, a enfermeira deixou grande obra humanitária para o campo da saúde mental — com sabedoria ancestral e devir-negro na profissão
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Ela aprendeu a cantar com um passarinho e deu voz à liberdade de viver fora de qualquer gaiola. Durante 38 anos, marcou as férias para o período do Carnaval a fim de conciliar duas grandes vocações. Nos corredores dos hospitais psiquiátricos, era a enfermeira Yvonne; na Marquês de Sapucaí, era dona Ivone Lara (1922–2018), a primeira-dama do samba.

Enfrentando o preconceito por ser mulher, negra, de origem humilde e sambista, dona Ivone está entre as principais compositoras do samba nacional(Foto: Coleção José Ramos Tinhorão/Acervo Instituto Moreira Salles)
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão/Acervo Instituto Moreira Salles Enfrentando o preconceito por ser mulher, negra, de origem humilde e sambista, dona Ivone está entre as principais compositoras do samba nacional

Essa é uma história pouco conhecida, mas foi somente aos 56 anos, depois de se aposentar do serviço de doenças mentais, em 1978, que dona Ivone Lara pôde se dedicar à carreira artística e dar vazão ao amor pela música que veio de berço como um ► “sonho meu”.

Antes de emprestar seu talento à cultura brasileira, ser melodista e compositora ao lado dos maiores letristas do Brasil e de se destacar em um ambiente até então masculino como as rodas de samba, a rainha do Império Serrano também foi pioneira ao integrar as equipes dos mais respeitados médicos do País e dedicou quase quatro décadas à carreira na saúde — com papel fundamental na luta antimanicomial e na reforma psiquiátrica brasileiras ao lado da psiquiatra Nise da Silveira.

"18 de maio é o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, o movimento por políticas de saúde mental humanizadas no Brasil e uma sociedade sem manicômios."

A paixão pelo samba que levou a baluarte a ser consagrada como majestade foi também o que conduziu, anos antes, o caminho da jovem enfermeira Yvonne da Silva Lara até o altar onde casou com Oscar Costa "Foram os primos que a levaram para a escola de samba Prazer da Serrinha. Lá ela conheceu Oscar, que era filho do dono da agremiação, com quem se casaria em 1947. Assim Yvonne entra no ambiente do Carnaval, que ainda era muito masculinizado, machista e misógino. Para driblar os obstáculos e participar com sua música, ela mostrava as composições como se fossem feitas pelos primos." — quando passou a assinar Yvonne Lara da Costa, já como uma das primeiras mulheres negras a segurar o diploma de assistente social no País, num período em que a profissão ainda nem havia sido regulamentada.

Não satisfeita com as duas formações, ainda especializou-se em uma das turmas do curso elementar de terapêutica ocupacional "Até a década de 1950, a terapia ocupacional não era uma profissão de ensino técnico ou superior no Brasil — e só viria a se institucionalizar posteriormente. Naquele momento, a função também chamada de praxiterapia e terapêutica ocupacional era a definição de um conjunto de práticas que usavam a ocupação de forma terapêutica." ministradas por Nise, que também era sua supervisora.

Como um passarinho que voa pacientemente e colhe galhos para construir o seu ninho, Ivone se deslocava entre o Rio de Janeiro e municípios de estados vizinhos para “buscar quem mora longe”, parentes dessas pessoas cujos laços foram partidos.

Ivone Lara recebe uma homenagem dos médicos do Engenho de Dentro. Ela era conhecida por percorrer as enfermarias e pavilhões do Instituto(Foto: Acervo da família da artista)
Foto: Acervo da família da artista Ivone Lara recebe uma homenagem dos médicos do Engenho de Dentro. Ela era conhecida por percorrer as enfermarias e pavilhões do Instituto

Devolver minimamente o convívio social era uma tentativa de resgatar o senso de humanidade delas.

Com a sensibilidade e o conhecimento que lhe eram natos, a enfermeira, assistente social e terapeuta ocupacional ajudou a construir uma visão diferente da maioria dos diagnósticos médicos — uma abordagem completamente nova de humanização que revolucionou o tratamento da saúde mental.

Tal enredo remete a uma época em que não se via profissionais negros na área da saúde, a musicoterapia era um processo terapêutico impensável e pacientes com transtornos mentais eram isolados da sociedade e abandonados pela família.

E se a sambista Ivone embalou histórias e transformou vidas com a voz quando artista, a melodia e eloquência da enfermeira Yvonne também ajudaram a levar a terapia musical para quem era acolhido por ela nas instituições pelas quais passou: da Casa das Palmeiras e do Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro ao Hospital Psiquiátrico Pedro II (hoje Hospital Nise da Silveira), onde era conhecida por percorrer as enfermarias e os pavilhões em busca de histórias, referências e laços familiares dos pacientes.

A busca ativa não parava por aí: através das amizades que fazia com facilidade, conseguiu patrocinar instrumentos musicais e criou uma oficina de música onde passou a apoiar festas e eventos de socialização entre enfermos, familiares e funcionários — uma experiência que, anos mais tarde, daria origem ao bloco de carnaval carioca Loucura Suburbana.

“Eu descobri muitos doentes que eram músicos. Muitos que estavam abandonados pela família. A doutora Nise botou uma sala de música com piano, cavaquinho, pandeiro. À tarde tinha um ensaio geral e eu estava sempre lá, dançando com eles, sambando, cantando com eles. Tinha um doente que era catatônico, mas a doutora Nise ria muito porque ele dizia assim: "Ivone, vai ter ensaio hoje?", e depois caía no mundo dele. Só conversava comigo”, contou em entrevista.

“Tinha o Ribamar, que era catatônico. Vivia lá, esquecido pela família, quase sem falar. Um dia, estávamos ouvindo uma outra doente tocar piano e comecei a cantar. Ele prestou atenção e ficou admirando, até que me disse que era músico. Tinha sido clarinetista da Orquestra Tabajara. Passou a tocar nas festas do hospital. Melhorou de um dia para o outro, uma coisa impressionante! Fui à casa dele, os familiares passaram a visitá-lo. Ficou curado. Dali a um tempo, saiu de lá bonzinho”

Ela fazia plantões de 24/48 horas que, segundo a própria, eram desgastantes, mas, ao mesmo tempo, muito gratificantes porque ajudavam a diminuir o sofrimento daqueles que procuravam as unidades públicas de saúde.

A partir desse trabalho, a música passou a ser utilizada de maneira estratégica para tratar do agravamento de doenças mentais, o que possibilitou a ruptura com antigas práticas psiquiátricas que, além de silenciar os pacientes, ainda destruíam suas singularidades. Assim, ações humanizadas começaram a ocupar o lugar de tratamentos agressivos como eletrochoques e lobotomia.

Seu trabalho na área foi tão importante que vários equipamentos de saúde mental hoje levam seu nome, como o Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Outras Drogas (CAPSad) Dona Ivone Lara e a Residência e Unidade de Acolhimento (RUA) Sonho Meu, referência a uma das principais composições da cantora, no Rio de Janeiro.

Um dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do Rio de Janeiro leva o nome de dona Ivone Lara em homenagem ao trabalho da enfermeira(Foto: Edu Kapps/Prefeitura do Rio)
Foto: Edu Kapps/Prefeitura do Rio Um dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do Rio de Janeiro leva o nome de dona Ivone Lara em homenagem ao trabalho da enfermeira

Além disso, a Associação Brasileira de Enfermagem (Aben) e o Conselho Regional de Enfermagem do Estado do Rio de Janeiro (Coren-RJ) criaram o prêmio Dona Ivone lara – a profissional de saúde por trás do samba, iniciativa que reconhece propostas em valorização do trabalho de enfermagem, com desenvolvimento sustentável e bem viver.

A premiação defende propagar “técnicas e tecnologias não invasivas do cuidado de enfermagem, tão defendidas e difundidas pela a enfermeira Ivone Lara no auge da reforma psiquiátrica, com humanização do tratamento de pessoas com sofrimentos mentais, um movimento reconhecido mundialmente”.

 

 

Eu vim de lá pequenininha

A grande dama do samba partiu em 16 de abril de 2018, três dias depois de apagar as velas do aniversário de 97 anos. Mas além da tristeza da despedida, dona Ivone Lara também deixou as boas memórias de um quase centenário muito bem vivido — apesar dos pesares.

Nascida em Botafogo em meio às transformações urbanas e sociais que o Rio de Janeiro atravessava no início dos anos 1920, a pequena Yvonne Lara herdou dos pais o amor pelo samba: filha da costureira Emerentina Bento da Silva, que cantava no rancho "Flor de Abacate", e do violonista José da Silva Lara, que tocava no Bloco dos Africanos, cresceu sob o batuque dos tantãs.

A harmonia, porém, não durou muito. Ficou órfã aos 11 anos depois de perder o pai em um acidente, ainda na infância, e a mãe vítima de uma pneumonia, quando ainda nem havia atingido a adolescência.

Nascida em berço musical, Ivone Lara seguiu carreira na saúde em busca de estabilidade financeira depois de ficar órfã de pai e mãe. Para conciliar o trabalho com sua paixão, além de levar a música para a terapia dos pacientes, costumava tirar férias durante o Carnaval(Foto: Acervo de família/dona Ivone Lara)
Foto: Acervo de família/dona Ivone Lara Nascida em berço musical, Ivone Lara seguiu carreira na saúde em busca de estabilidade financeira depois de ficar órfã de pai e mãe. Para conciliar o trabalho com sua paixão, além de levar a música para a terapia dos pacientes, costumava tirar férias durante o Carnaval

Antes de partir, para garantir uma boa educação formal para as filhas (Yvonne e a irmã, Elza), Emerentina teve a ideia de matriculá-las em uma escola pública que funcionava em regime de internato, o Colégio Interno Orsina da Fonseca, na Tijuca.

Para isso, precisou declarar que Yvonne tinha um ano a mais, por isso aparece registrada como nascida em 1921.

Aos 12 anos, foi presenteada pelos primos – os futuros parceiros Hélio e Mestre Fuleiro –, com um pássaro Tiê-sangue.

O nome da ave e a expressão “Oialá-oxa”, herdada da avó moçambicana, serviram de inspiração para ela compor o seu primeiro samba de partido-alto: Tiê, parceria com os já chamados Mestre Fuleiro e Tio Hélio.

Fuleiro, aliás, foi quem, durante muito tempo, apresentou as composições da sambista como se fossem dele — uma estratégia da compositora para dar vida às suas músicas enquanto mulheres ainda não eram bem-vindas na ala dos compositores.

Na escola onde permaneceu até os 16 anos, as alunas eram ensinadas a fazer trabalhos manuais como artesanato e costura.

Mas foi lá também que Yvonne aprendeu o canto orfeônico com a prática de canto em grupo. Teve professoras como a pianista Lucília Guimarães, que foi companheira de Heitor Villa-Lobos e elogiou o talento da menina.

Na época, passou a morar com o tio Dionísio, que tocava trombone e violão nos saraus que costumava fazer no quintal de casa.

Nos encontros, Yvonne assistia a músicos como Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Candinho do Trombone. Vivenciou a transição do samba, de perseguido e criminalizado — juntamente com o candomblé, espaço no qual se originou — a símbolo da cultura brasileira.

Ivone Lara em foto dos anos 1940, quando tinha 19 anos(Foto: Acervo de família/dona Ivone Lara)
Foto: Acervo de família/dona Ivone Lara Ivone Lara em foto dos anos 1940, quando tinha 19 anos

Certo dia, a jovem leu em um jornal sobre a abertura de vagas para a Escola de Enfermagem Alfredo Pinto e decidiu prestar. A escolha pela enfermagem se deu por aquele ser o único curso gratuito e vislumbrar a oportunidade de mudança da sua realidade socioeconômica.

Yvonne passou entre os dez primeiros colocados e isso deu a ela direito a uma bolsa de estudos, dinheiro que usou para ajudar a família nas despesas domésticas.

Já formada, foi trabalhar na Colônia Juliano Moreira – Hospital psiquiátrico. A música era algo paralelo que se dividia com o desejo pela estabilidade financeira, e foi esse último que a levou a fazer o curso de assistente social.

Concluiu em 1947 pela primeira turma da profissão, que ainda estava sem regulamentação no País.

Com a intensa carga horária de trabalho, a estratégia era programar as férias para fevereiro — e, naquela época, fim da década de 1940, já ouvir suas composições interpretadas por grandes músicos no Carnaval.

Foi contratada para trabalhar no Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, onde prestou serviço até se aposentar, em 1978.

Lá, se especializou com Nise da Silveira em terapia ocupacional, área através da qual desempenhou papel fundamental na revolução do tratamento psiquiátrico no Brasil. Durante mais de 30 anos atuou na Colônia Juliano Moreira junto a pacientes com doenças mentais.

Dona Ivone quem pediu a Nise — que costumava usar muito mais as artes visuais no tratamento dos pacientes — para que fosse criada uma sala com instrumentos musicais na unidade hospitalar.

Ivone Lara integrou a equipe da psiquiatra Nise da Silveira (que aparece no centro da imagem), referência na defesa e aplicação de tratamentos humanizados para pessoas em sofrimento mental. A atuação da enfermeira, no entanto, não é tão reconhecida quanto a da médica(Foto: Acervo Dona Ivone Lara)
Foto: Acervo Dona Ivone Lara Ivone Lara integrou a equipe da psiquiatra Nise da Silveira (que aparece no centro da imagem), referência na defesa e aplicação de tratamentos humanizados para pessoas em sofrimento mental. A atuação da enfermeira, no entanto, não é tão reconhecida quanto a da médica

Chegou a compor com uma colega de enfermagem, Teresa Batista, a valsa "Pétalas Esquecidas", gravada muitos anos depois por Marisa Monte.

Embora a música estivesse em segundo plano até sua aposentadoria como enfermeira em 1977, o dom de Yvonne fez parte de um momento de ressignificação da saúde mental no Brasil.

Considerada uma das precursoras da musicoterapia, teve uma participação ativa e valorização de sua ancestralidade através da música para construir uma nova mentalidade.

Dona Ivone Lara, que faleceu em 2018, aos 97 anos, foi melodista e compositora ao lado dos maiores letristas do País. Na foto, Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Cartola, Ivone e seu Edgar, na Império Serrano(Foto: Acervo Dona Ivone Lara)
Foto: Acervo Dona Ivone Lara Dona Ivone Lara, que faleceu em 2018, aos 97 anos, foi melodista e compositora ao lado dos maiores letristas do País. Na foto, Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Cartola, Ivone e seu Edgar, na Império Serrano

Sua carreira musical foi tão brilhante quanto a de profissional da saúde. Yvonne, que se tornou também Dona Ivone Lara, foi esposa, mãe, fez grandes parcerias na música, gravou diversos discos e recebeu premiações.

Enquanto sua carreira artística foi notável e impossível de ignorar, no entanto, a vida acadêmica e o papel social que Ivone Lara desempenhou são um exemplo do apagamento da mulher negra na história.

A pergunta que fica é: por que esse legado não é tão conhecido quanto o de Nise da Silveira ou, até mesmo, da trajetória da própria dona Ivone Lara como sambista?

 

 

Nosso canto é de liberdade

“Uma mulher negra de axé a quem devemos pedir a benção”. Assim é dona Ivone Lara para o psicólogo Anderson Carvalho, professor do curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisador de temas como racialidade, colonialidade, atenção psicossocial e atlântico negro em uma abordagem descolonial.

“Filha de Oxum, filha de um casal de músicos, uma das primeiras mulheres negras a ter acesso ao ensino superior, cursou a faculdade através de uma bolsa porque ficou entre os primeiros lugares no processo seletivo. Então a primeira coisa que tem que se colocar é que ela foi contemporânea, sobretudo porque pegou um período em que a forma de fazer saúde e psiquiatria era orientada pelo racismo e pela eugenia, o que tem muito a ver com o processo do pós-abolição. Àquela altura, ela já percebia a importância do envolvimento da família e da arte na reabilitação psicossocial”, analisa.

O psicólogo Anderson Carvalho é professor do curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisa sobre racialidade, colonialidade, atenção psicossocial e atlântico negro em uma abordagem descolonial de avaliação de políticas públicas(Foto: Anderson Carvalho/Acervo pessoal)
Foto: Anderson Carvalho/Acervo pessoal O psicólogo Anderson Carvalho é professor do curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisa sobre racialidade, colonialidade, atenção psicossocial e atlântico negro em uma abordagem descolonial de avaliação de políticas públicas

Na avaliação de Carvalho, uma série de elementos combinados juntos explicam por que não há um reconhecimento à trajetória dela na saúde: “tanto racismo quanto a questão do gênero, passando pelo próprio poder médico, tendo em vista que, em linhas gerais, a figura do médico geralmente é tomada como a principal quando se pensa nos processos de saúde”.

Para o professor, “é fundamental que essas histórias de profissionais negros como dona Ivone sejam inseridos na formação em saúde mental no sentido de enriquecer e de reconhecer que, intelectualmente falando, esses profissionais têm profundas contribuições”.

“Quantos mais outros, quantas mais outras a gente sequer conhece? Fala-se muito de Nise da Silveira, mas não de Ivone Lara; fala-se muito de Paulo Amarante mas não de Juliano Moreira, Rachel Gouveia Passos, Virgínia Bicudo, Neusa Santos Souza, Sônia Barros. São poucas as pessoas que conhecem essas referências. É o próprio epistemicídio, como a gente chama essa forma deliberada de não reconhecer ou de invisibilizar essas produções”, coloca.

No cenário atual da luta antimanicomial, a presença de um profissional de saúde negro ou de um gestor negro, pode, sim, na opinião do psicólogo, trazer reflexões sobre quem construiu o próprio Sistema Único de Saúde (SUS) e a própria política de saúde mental.

Carvalho acredita que “diminuir as estatísticas que demostram que população negra sofre um descaso no atendimento de saúde é algo que não se resolve apenas colocando profissionais negros nessas posições. Mas a questão é mobilizar toda uma clínica que tenha a racialidade como um dos seus componentes, assim como gênero e questões de classe”.

Na análise da psicóloga, psicanalista e antropóloga Tamires Marinho, “esse deveria ser um assunto bem mais lembrado, pois assim como outras figuras negras, dona Ivone Lara tem sua contribuição apagada da história”.

A psicóloga, psicanalista e antropóloga Tamires Marinho é membro da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro) e conselheira suplente do Conselho de Igualdade Racial do Ceará(Foto: Tamires Marinho/Acervo pessoal)
Foto: Tamires Marinho/Acervo pessoal A psicóloga, psicanalista e antropóloga Tamires Marinho é membro da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro) e conselheira suplente do Conselho de Igualdade Racial do Ceará

Marinho, que é membro da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro) e conselheira suplente do Conselho de Igualdade Racial do Ceará, cita o filme Nise — O Coração da Loucura (2015) como um exemplo de como esse apagamento pode ser percebido.

Nele, o destaque dado à enfermeira Ivone (interpretada pela atriz Roberta Rodrigues) é tão pequeno que a maioria do público não consegue fazer essa associação.

Trata-se de uma personagem secundária cujo nome é pouco mencionado quando, na realidade, Ivone esteve ao lado de Nise na construção de um projeto de cuidados humanizados no serviço público em saúde mental.

Há, por exemplo, uma cena em que a médica, recém encarregada pela Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (Stor), encontra dois enfermeiros ociosos enquanto o local está sujo e com entulhos. Um dos enfermeiros é Ivone, que é a única a atender a solicitação da psiquiatra para que o local seja arrumado.

Nos momentos em que aparece, Ivone demonstra ter pouca iniciativa e recebe, na maior parte do tempo, instruções de Nise. Ao contrário, porém, são várias as entrevistas em que dona Ivone Lara relata que zelava pelo seu trabalho, não faltava e fazia muitos plantões. “A minha repartição era sagrada”, dizia.

“E assim a gente entende um pouco por que esse trabalho é pouco conhecido, especialmente se comparado ao reconhecimento de dona Nise da Silveira ou do trabalho de dona Ivone Lara como artista”, aponta.

“Ela ajudou a restaurar laços de sujeitos que estavam completamente aprisionados em atividades que passavam pela aprovação de uma equipe médica que detinha o poder sobre aqueles corpos. Então ela foi muito importante ao estabelecer esse caminho para que aqueles pacientes voltassem a ter um convívio com suas famílias, um senso de humanidade. A humanização é um dos pilares da luta antimanicomial, dar esse espaço para que o sujeito consiga ter liberdade, ter a sua identidade respeitada foi muito importante”, destaca.

Trecho de entrevista de dona Ivone Lara para Lázaro Ramos no programa Espelho, da TV Brasil

 

A psicanalista lembra que o racismo tem mecanismos, ferramentas de desumanização importadas da Europa que agem a partir de três eixos principais: o religioso, o científico e as categorias filosóficas do ser.

“No primeiro, o sujeito era desumanizado a partir de suas práticas religiosas e culturais; no segundo ele era desassociado do seu saber, era destituído do saber que ele possuía, esse saber era utilizado por brancos e todo o crédito ficava para eles; e no terceiro, a identidade, o eu, a personalidade dessa pessoa negra de alguma forma é depreciada por instituições, organizações e pessoas racistas. O caso de dona Ivone Lara pode ser pensado como uma grande junção dos três”, conclui.

Marinho acredita que é necessário lançar luz sobre essas referências para que “pessoas negras que sonham com um futuro tenham a possibilidade de se enxergar visualmente”.

DONA IVONE LARA(Foto: Acervo Dona Ivone Lara)
Foto: Acervo Dona Ivone Lara DONA IVONE LARA

“Temos muitos profissionais negros com histórias importantes, com legados grandes, como dona Ivone Lara e outras pioneiras como Virgínia Bicudo na psicanálise. Mas nunca ninguém escuta falar, ninguém sabe nem quem é Virgínia Bicudo, outras intelectuais importantíssimas na atualidade para a saúde mental como Isildinha Baptista. Elas não são trabalhadas nas escolas de psicanálise, não são lidas nas faculdades de psicologia. Se você perguntar para qualquer estudante de qualquer área da saúde mental o nome de três pessoas negras que faziam trabalhos nesse campo, muitos deles não vão saber responder”, demonstra.

A antropóloga observa, ainda, que se tem “uma maioria expressiva de pessoas negras e pardas no Brasil e a gente não tem capacitação de profissionais de saúde, nem no campo privado nem no campo público, que tenha conhecimento para dar conta dessas demandas do povo negro. São profissionais que desconhecem as necessidades, os campos psíquicos que envolvem o ser negro no Brasil, os impactos emocionais de ser uma pessoa negra numa sociedade racista”.

 

 

Conheça composições de dona Ivone Lara, a primeira-dama do samba

Não é coincidência, portanto, que liberdade e sonho sejam palavras que nortearam vida e carreira da enfermeira-sambista (ou sambista-enfermeira) Yvonne e que refletem, também, a sensibilidade dos tempos de assistência social que influenciaram o fazer artístico de dona Ivone Lara.

Boa parte da obra da primeira-dama é permeada pelo inconsciente e pela fantasia. Fique, a seguir, com algumas das principais canções da rainha do samba que continua a embalar gerações:


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