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A exploração da fome como moeda de troca na política
Reportagem Especial

A exploração da fome como moeda de troca na política

Como os índices de fome estão relacionados com crimes eleitorais e como a população sabe que nenhum político manda na fome dela

A exploração da fome como moeda de troca na política

Como os índices de fome estão relacionados com crimes eleitorais e como a população sabe que nenhum político manda na fome dela
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“O cara que trabalha com política é cruel”, foi o que disse uma das pessoas ouvidas para esta reportagem, ao ser perguntada se já havia presenciado o crime eleitoral de compra de votos em troca de alimentos, em algum momento da vida. No relato, o homem, que preferiu não ser identificado, informou ter vivido a infância inteira em Meruoca, no Sertão de Sobral. Morava em uma casa de taipa, localizada em um bairro de classe baixa, esquecido pelo resto da cidade. Ou quase esquecido.

No período eleitoral, eram constantes as visitas de políticos, que chegavam oferecendo itens como “telhas” e “cestas básicas” em troca de votos. “Eram coisas simples, mas que as pessoas não tinham e muito por conta dos próprios políticos. Mas a gente não fazia essa associação. A pessoa que não tinha nada, mas passava fome, se o político desse uma cesta básica, ela votava nele. Achava que era uma pessoa boa”, relata.

Pessoas em situação de rua em Fortaleza próximo a banner de lanchonete(Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima Pessoas em situação de rua em Fortaleza próximo a banner de lanchonete

Apesar de lamentar a situação, em todo o relato ele não repreende os eleitores que aceitam os “acordos”, especialmente em troca das cestas. O motivo é a imagem da própria mãe, preparando a comida diária. “Era farinha com açúcar, porque enchia. Eu nunca passei fome, mas já vi minha mãe dormir com fome para que a gente não passasse por isso. Nunca vou esquecer. A fome te obriga fazer qualquer coisa, ela dói”.

Relatos como este foram onipresentes ao longo desta apuração. O POVO coletou oito histórias pessoais, que constam nesse material sem identificação de nomes — e em alguns casos, municípios —, para preservar os envolvidos. A mesma pergunta foi feita a todos: Você já presenciou políticos oferecendo alimentos em troca de voto?

As respostas afirmativas foram unânimes, com algumas variações: “Sim, mas vêm diminuindo”, “Sim, mas é mais comum por dinheiro”, “Sim, mas não comigo”, ou, simplesmente, “Sim, desde sempre”.

 

 

Confira, abaixo, relatos de troca de votos por alimentos


A troca de votos por alimentos é resultado de anos de ausência de resutados das políticas de combate à fome. Após histórico de omissão, ações governamentais passaram a consistir em medidas compensatórias para remediar a situação, ou na distribuição direta de bens. Esse último caso é ainda permeado de características clientelistas "Prática eleitoreira que consiste no tratamento do eleitor como 'clientela', por meio do oferecimento de benefícios em troca de apoio político." como a entregas de cestas básicas, utilizadas como maneira de angariar apoio, por figuras ou grupos políticos.

O fortalecimento da distribuição de cestas se deu, especialmente, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-1998), com ações como o Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos (Prodea), que teve o orçamento cortado em 2001, devido ao “caráter assistencial” da ação. No entanto, mesmo em vigência, as medidas eram vistas como insuficientes.

“Era tão pouco que só dava mais confusão. A frente emergencial só dava 900 e poucas cestas para nossa cidade de 30 mil habitantes. Se a gente chegasse em um sítio que tinha cinco vagas, a confusão era feita. Era melhor nem ir”, comenta Manoel Filho, coordenador da ação nos anos 1990, em Acopiara, região Centro-Sul.

Na cidade, houve aumento no número de cestas apenas após manifestação de agricultores em 1997. Eles invadiram e levaram todo o estoque de alimentos da Prefeitura, por não aguentarem mais a escassez de comida, mesmo com a existência dos programas sociais. “Depois o Governo mandou mais. Passou para 5.932 cestas, não esqueço esse número”, diz Manoel.

A falta de fomento ia de encontro a um quadro de insegurança alimentar grave no Brasil. Em 1990, 22% da população estava subnutrida, o que colocou o País no mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em um quadro de moderado para alto. O País saiu do mapa em 2014, devido ao aumento no incentivo de políticas assistenciais nos anos anteriores, mas retornou em 2022, após o desmonte de algumas delas, o que ficou ainda mais evidente na pandemia de Covid-19.

No Ceará, há a influência de fatores climáticos como as secas. No Estado, incialmente atribuíam-se as secas a condições naturais e até mesmo divinas. Depois, nas secas de 1915 e ainda mais na de 1932, foram utilizados campos de concentração com condições inóspitas de vida para "abrigar" os refugiados sertanejos. Hoje, mesmo com políticas públicas, levantamento recente do IBGE mostrou que cerca de 3,4 milhões, dos 8 milhões de cearenses, ainda vivem em algum nível de insegurança alimentar.

 

Políticas de combate à fome ao longo dos anos

Ao invés de estimular uma mudança nas políticas públicas, a perspectiva da fome tende a reforçar o quadro de crimes eleitorais. “É uma das grandes causas da corrupção do Brasil. Determinados políticos se utilizam da questão da fome, de maneira eleitoreira, quando esse tema deveria ser encarado como uma política de estado”, afirma o cientista político Kevan Brandão, professor na Unichristus.

Pessoas em situação de rua em Fortaleza: fome(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Pessoas em situação de rua em Fortaleza: fome

O especialista defende um fortalecimento de políticas assistenciais, que são diferentes do assistencialismo praticado por alguns políticos. Enquanto esse último não tem uma pretensão de mudança da realidade e visa suprir apenas uma urgência, políticas assistenciais são um direito constitucional. Para Kevan, elas devem consistir em uma convergência das mais diversas áreas em torno da questão da fome. “E estamos falando de saúde, de educação, de moradia, de trabalho, emprego. Você passa a gerar oportunidades. A questão da fome é tão grave que chega a gerar essa dependência”, diz o especialista.

No entanto, a relação não é necessariamente de causa-consequência. São diversos fatores que influenciam no voto e, assim, o recebimento de uma cesta básica não garante um apoio eleitoral. Em 2022, por exemplo, o adiantamento do Auxílio-Brasil, pelo governo Jair Bolsonaro (PL), para antes do segundo turno foi tomado como medida clientelista, visando atrair votos da população mais pobre. No entanto, se esse foi o intuito, os resultados não se concretizaram e, segundo pesquisa Datafolha, 61% dos eleitores com renda de até dois salários mínimos votaram no outro candidato: o atual presidente Lula (PT).

Neste caso, Kevan Brandão atribui o resultado muito à figura de Lula, cujas “políticas sociais promovidas nas duas gestões ainda estavam bem vivas” na mente da população. No entanto, o cientista político elencou critérios econômicos, ideológicos e religiosos como influentes na escolha eleitoral. “Tem muitas definições apressadas que acham que você recebe alguma coisa e já vota imediatamente, mas não é assim”, afirma.

Na prática, político nenhum mata a fome de ninguém e, historicamente, grande parte dos avanços nas políticas públicas partiu, na verdade, de reinvidicações da própria população, como ocorreu no caso citado em Acopiara. A alimentação é um direito constitucional: pode e deve ser cobrado.

Retomando o relato do início da reportagem, o homem citado, hoje habitante de Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza, afirmou que a experiência na infância mudou a forma dele de ver a política. “Voto em quem eu sei que vou ter acesso, mas ainda me oferecem muita coisa. Hoje eu penso: quer me dar dinheiro, alimento? Eu recebo. Mas eu voto em quem eu quiser.”

 

O que pode ser feito: quanto aos crimes eleitorais e à fome

 

Conforme o cientista político Kevan Brandão, a mudança no quadro dos crimes eleitorais precisa passar por uma reformulação da cultura política, que deve envolver a educação e o desenvolvimento econômico. É preciso haver um esforço entre diversas frentes, como a Justiça Eleitoral, o Ministério Público — com a fiscalização — e mesmo instituições de iniciativa privada. “Acho que conseguimos ver nas diferentes esferas de poder uma omissão, uma procrastinação dos governantes para contornar esses problemas inadmissíveis no dia de hoje. Imagina, estamos em 2024”, afirma.

O procurador de Justiça, Emmanuel Girão, do Ministério Público do Ceará (MPCE), afirmou que uma grande dificuldade no combate é a captação de provas, tendo em vista a participação do eleitor.

“Muitas vezes, ele não vai falar que realmente recebeu vantagens. O eleitor responde criminalmente também. Geralmente, é mais fácil quando captamos em flagrante.” Segundo o procurador, o MPCE está trabalhando na capacitação dos promotores eleitorais, por meio de palestras e oficinas, além da contratação de 25 novos profissionais.

Já o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE), atribuiu a atuação da Justiça Eleitoral ao próprio MPCE. "Existe um trabalho, tanto da Secretaria de Eleições, quanto do próprio MPCE, que faz esse acompanhamento. Analisar se os programas, os recursos estão sendo aplicados de forma impessoal. Denúncias de capacitação chegam à Justiça Eleitoral através do MP", disse Tiago Dias, supervisor do laboratório de inovação do TRE-CE.

 

 

O que faz o Estado

Sobre políticas de combate à insegurança alimentar, questionado, o Governo do Estado, por meio da Secretaria da Proteção Social, elencou as seguintes ações:

  

 

O que demandam os municípios

 

Apesar disso, O POVO foi ouvir representantes de secretarias de assistência social de sete municípios cearenses, para atestar efetividade dos programas, por quem trabalha na linha de frente. As entrevistas foram realizadas durante o evento "Seminário sobre políticas de combate à fome", promovido pelo Governo do Ceará no início de maio.

As políticas fornecidas pelo Governo do Estado foram consideradas positivas, especialmente levando em consideração à "situação de anos atrás", conforme as palavras das próprias secretárias. No entanto, algumas reivindicações persistem, elencadas abaixo:

 

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