É comum andar nas ruas da periferia de Fortaleza e encontrar dezenas de igrejas em uma mesma via. Entre templos maiores e outros que se confundem com comércios ou residências, a Capital tem 4.081 estabelecimentos religiosos. O dado é do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (Cnefe), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Cruzando os dados com a malha geográfica dos bairros, é possível ver que os estabelecimentos religiosos se concentram na periferia, mais distantes do Centro. Granja Lisboa é o bairro com maior número de igrejas, com 178 templos. Ele é seguido pelo Siqueira (161) e Jangurussu (154). Já o Meireles tem o menor número, com dois templos computados.
A concentração de igrejas forma ainda “corredores de fé”, que são caracterizados por vias com grande número de templos. A avenida Presidente Castelo Branco, ou Leste Oeste, tem mais de 30 igrejas, sendo a maioria evangélica. Ela cruza bairros como o Pirambu, Cristo Redentor e Barra do Ceará, que têm 27, 26 e 110 estabelecimentos religiosos, respectivamente.
A quantidade de igrejas chega a ser maior do que o número de estabelecimentos de saúde (1.573) e ensino (2.337) combinados na Capital. Fortaleza tem 168 templos a cada 100 mil habitantes. Entre as outras capitais do Brasil, Fortaleza é a 6ª em maior número de templos e a 22ª quando comparadas as taxas por 100 mil habitantes.
Os estabelecimentos de saúde também têm uma concentração em área específica da Cidade, mas, ao contrário dos religiosos, eles são mais numerosos próximos ao centro. O bairro com a maior quantidade desse tipo de estabelecimento é a Aldeota, com 265. Eles podem incluir hospitais, clínicas de atendimento ou exames etc.
Esta é a primeira vez que os estabelecimentos religiosos ganham uma classificação própria no Cnefe. Em outras edições do Censo, eles estavam agrupados em estabelecimentos com “outras finalidades”, como lojas, comércios, entre outros. No entanto, não é descrito a quais religiões os templos pertencem.
O número de templos é divergente dos registrados em órgãos fiscais. Em reportagem especial de 2022, O POVO mostrou que existiam 1.759 pessoas jurídicas em atividade como “organizações religiosas” na Capital, conforme a Superintendência da 3ª Região Fiscal da Receita Federal do Brasil (RFB). Já a Secretaria Municipal das Finanças (Sefin) apontava 910 organizações religiosas com imunidade ou isenção tributárias.
Isso mostra que grande parte dos estabelecimentos religiosos são informais. O advogado Jean Montenegro explica que templos informais podem começar em locais de trabalho comunitário, casas de oração ou pequenos templos de uma igreja sede.
“Iniciaram com um encontro entre pessoas próximas, vizinhos, que aos poucos foram ganhando uma amplitude maior, foi crescendo e as pessoas que estão à frente da igreja acabam não realizando ali a sua formalização, ou seja, a realização dos seus atos constitutivos e criação do seu CNPJ”, afirma.
Para igrejas informais que não são regulamentadas com um Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), as consequências podem vir na hora de declarar os dízimos e ofertas recebidas. Quem está à frente do local de oração deve estar atento aos riscos fiscais.
“Se eu tenho uma igreja informal, como é que funciona a questão da arrecadação de dízimos e ofertas, já que ele não vai para um CNPJ? Se as ofertas forem recebidas na conta de uma pessoa física, na hora da declaração de imposto de renda não dá para fazer uma separação e dizer que [o dinheiro] seria para uma entidade que, pela informalidade, não existe”, explica o advogado Jean Montenegro.
Jean afirma que a questão pode trazer multas, processos administrativos e virar uma “bola de neve”. Além disso, o registro traz benefícios para a igreja, como imunidade de taxas e impostos, como o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).
Para realizar a formalização, Jean explica que é preciso criar um estatuto, escolher presidente, vice, secretariado, tesoureiro, entre outros cargos importantes para a gerência do templo. Depois, é preciso submeter os documentos a um contador para fazer o registro do CNPJ. A necessidade de licenças ou alvarás pode mudar de acordo com o estado e o município.
“É sempre importante perceber que a formalização de uma igreja traz também segurança aos seus membros. O membro vai para aquele culto sabendo que está tudo funcionando como é para funcionar, sem nenhum problema adicional, sem nenhuma dor de cabeça ou risco”, explica.
A igreja que Célia Rocha, 54, frequenta fica a poucos metros de casa, na Barra do Ceará. Dá para ir a pé, segundo ela. Antes de virar um estabelecimento religioso, o local era a casa da pastora. Transitando pela rua, pode parecer que o espaço é apenas mais uma garagem residencial, mas é um templo para Célia e diversos outros membros evangélicos.
Os espaços centrais das cidades sempre foram reservados para as igrejas católicas, com grandes templos de arquitetura antiga, apesar de paróquias e grupos carismáticos serem distribuídos nos bairros. Raphael Teixeira, doutor em geografia da religião pela Universidade Federal do Ceará (UFC), argumenta que a própria estrutura hierárquica e rigorosa do catolicismo dificulta a capilaridade.
Já as igrejas evangélicas, que têm estrutura mais descentralizada, conseguem encontrar na periferia terrenos mais baratos, estimulam o empreendedorismo religioso e encorajam fiéis a se tornarem pastores, recrutando o próprio “rebanho”.
Além da facilidade na abertura de templos evangélicos e da informalidade de grande parte deles, a capilaridade das igrejas na periferia pode ser explicada pelo papel que têm na vida dos moradores.
Raphael explica que a ausência de políticas públicas e o caráter assistencialista das igrejas fazem com que os templos se tornem espaços de acolhimento e convívio social.
“É onde a comunidade vai ter ajuda, amparo, onde acabam dando conta de certas necessidades que a população pobre não encontra no poder público. Uma cesta básica, pastores que conseguem exames, advogados, médicos, acesso a posto ou clínica”, elenca. Não à toa, os membros se chamam de irmãos.
Para Victor Breno Farias, teólogo e cientista da religião, a fé evangélica, principalmente da vertente pentecostal, cria um senso de significado que ressoa com a comunidade mais vulnerável. “Tem todo um universo simbólico de representações que ajudam as pessoas no enfrentamento das desigualdades, pobrezas, drogas e violência”, diz.
Também por isso é perceptível um “respeito” pelas igrejas evangélicas por parte das facções criminosas — consideração que poucas instituições ainda recebem, conforme Raphael.
Tornando-se evangélico, é possível ser autorizado a sair de uma dessas organizações. “Pode ser que a pessoa escape da punição mais severa. A igreja é vista como o único caminho para restaurar do mundo do crime”, diz o geógrafo.
“Deus quer os doentes, precisa dos doentes”, afirma Célia. “Muita gente se regenerou, o semblante mudou, são outras pessoas. O alcoolismo, pessoas que viviam na droga, e assim por diante. Deus dá o livramento”, acredita.
Para o evangelista Lindomar Freire dos Santos, membro da igreja Assembleia de Deus Fé em Cristo Pirambu, a quantidade de igrejas reflete a “necessidade das pessoas pelo evangelho”.
“Hoje em dia é muita morte. Ainda antes de ontem mataram um jovem que não tinha nada a ver [com o alvo]. Ele era evangélico, vendedor de milho. Está sendo velado numa igreja aqui perto”, conta. A família do rapaz precisou de ajuda financeira para pagar o velório e o enterro.
Evangélicos da comunidade se juntaram para conseguir o valor, mesmo sendo de igrejas diferentes. “Nós somos uma família. Quando precisa, a gente está ali para ajudar”, diz Lindomar.
Com essa expansão, a influência das igrejas evangélicas se torna mais evidente em diferentes áreas, como a política e cultural. “Não cresce só o número de prédios, cresce o papel e a importância dessas igrejas”, explica Victor.
Para este material foram utilizados dados consolidados do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos - CNEFE, da Base de Faces de Logradouros do Brasil e de Agregados Preliminares (População e Domicílios) por Setor Censitário, todos disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geometria e Estatística - IBGE. A análise foi feita pelo cientista de dados do OP+, Alexandre Cajazeira.
Os dados foram coletados em 26/6/2024 e realizamos o cruzamento das informações com a malha geográfica de bairros de Fortaleza, disponibilizada na plataforma Fortaleza em Mapas. Para garantir transparência e reprodutibilidade, os códigos desenvolvidos para esta análise estão disponíveis neste link.