Nem os deuses, os santos, os pastores ou os orixás conseguem esclarecer o assunto. Em Fortaleza, com cerca de 2,5 milhões de habitantes e onde pouco mais de 162 mil se declararam sem religião no último censo demográfico (2010), atualmente não é possível saber exatamente quantas são e onde estão localizadas de fato todas as igrejas, os templos evangélicos, as mesquitas, sinagogas, os centros espíritas, os de práticas budistas e os terreiros de umbanda e candomblé espalhados no território da cidade.
Com registros defasados em mais de quatro décadas, mapear os credos de Fortaleza é uma incógnita, é como um labirinto dos mais difíceis de atravessar. A
Ao todo, O POVO analisou dados com 89.286 empresas inscritas no Brasil pela Receita nessa mesma natureza jurídica, e após cruzar com bases da Secretaria Municipal de Finanças (Sefin), classificar os templos de acordo com a categoria de religiões do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), chegamos a um indicativo de mapa da fé na capital que é: excludente das religiões de matriz africana, reducionista das práticas espíritas e outras religiosidades, porém contundente ao mostrar a presença evangélica nos bairros com IDH mais baixos e católica nas regiões mais centrais da cidade.
As igrejas evangélicas predominam em 65% dos 108 bairros identificados com templos na cidade. Embora tenham destaque no conjunto de dados, sem a dimensão temporal não é possível verificar quando as religiões evangélicas assumiram a liderança em benefícios concedidos pela Sefin, e consequentemente a territorialidade da cidade. Mas ao analisar os dados da Receita, se pode perceber, de um modo geral, o crescimento religioso nos bairros mais distantes do centro ao longo dos últimos 50 anos.
Atualmente, os templos catalogados pela Sefin com imunidade tributária foram classificados pela central DataDoc como: Evangélicas (361 ou 44%), Católica Apostólica Romana (291 ou 36%), Outras religiosidades (100 ou 12%), Espírita (33 ou 4%) e Sem Definição (34 ou 4%).
Para o professor de teoria política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Emanuel Freitas, e pesquisador das áreas de religião e política, esse avanço evangélico é superior aos dados do governo. “ Eu diria até que o número de igrejas evangélicas pode ser ainda maior do que isso. Se você vai, sobretudo para a periferia, você vê muitas casas, comércios, áreas que são transformadas em templos evangélicos, que passam ao largo dessa fiscalização”.
Com exceção de Messejana, os cinco bairros com maior quantidade de templos catalogados estão na região central de Fortaleza, são eles: Centro, Rodolfo Teófilo, Benfica e Aldeota e somam 27% do total, ou seja, 218 unidades do universo amostral composto por 819 registros. Quase a totalidade dos bairros possuem, no máximo, 10 templos regulamentados pela Sefin. Apenas o Centro possui mais de 90.
No Poder Público, há contagens divergentes de acordo com a esfera administrativa. Se por um lado a Superintendência da 3ª Região Fiscal da Receita Federal do Brasil (RFB) informa que são 1.759 pessoas jurídicas na atividade “organizações religiosas” na Capital cearense, outro dado público que embaralha o entendimento é o da Sefin, que aponta a existência de 910 organizações religiosas hoje se beneficiando de imunidade (819) ou isenção (91) tributárias em Fortaleza.
Quaisquer que sejam os números oficiais apresentados, são totalizações bem distantes do que está nas ruas e avenidas da cidade. Por exemplo, em seis quilômetros percorridos na avenida Leste-Oeste (do hotel Marina Park à ponte sobre o rio Ceará), O POVO contou 37 templos religiosos, enquanto as bases federais e municipais somam apenas 12 igrejas. O fato é que tanto a Sefin quanto a Receita Federal mostram um número menor e também aquém da realidade da Capital. E evidencia que as representações religiosas não estariam tão preocupadas em se formalizar, nem mesmo para buscar direitos adquiridos.
A fé nem precisa de CEP, mas há deveres em questão. A imunidade é garantida pela Constituição Federal, quando o imóvel pertence à própria entidade, e a isenção é dada por lei municipal, para imóveis locados para uso exclusivamente religioso. É o segundo maior número de registros em dez anos - eram 920 em 2020.
O gerente da Célula de Análise e Informações Tributárias (Ceint) da Sefin, Paulo César Leitão, reconhece que os registros para esses casos de beneficiários de imunidade e isenção em Fortaleza estão desatualizados em mais de quatro décadas, o que inclusive afeta a arrecadação de impostos prediais da Capital.
“Nosso cadastro é muito antigo. São dados no mínimo de 40 anos da forma como a gente dispõe. Muita coisa antiga lá foi colocada, houve alteração e o benefício ficou”, confirmou. Gente e empresas que tiraram proveito da situação distorcida para não pagar o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Os dados da Sefin utilizados nessa reportagem foram repassados ao O POVO em novembro de 2021, atualizados até setembro.
As situações irregulares já estariam sendo corrigidas, segundo Leitão, com notificações enviadas aos contribuintes descobertos. Os impostos perdoados por erro deverão ser cobrados, afirma ele.
Pareceria uma resposta simples, mas no fim é uma conta que ninguém sabe quanto dá. Quantos são esses locais de fé e oração? Onde estão um a um? Quais são de fato regularizados e quantos permanecem invisíveis por falhas em cadastro ou por ação deliberada para se manterem ocultos aos olhos do ente público?
Num dos cartórios de registro de títulos e documentos de pessoas jurídicas da Capital, onde toda igreja deveria se formalizar, funcionários ouvidos pelo O POVO chegaram a admitir informalmente que de três a cinco igrejas chegam a ser abertas por dia em Fortaleza. O mesmo número foi reafirmado pelo gerente da Ceint/Sefin, Paulo César Leitão. Mas é uma quantia que não aparece nas contabilizações oficializadas.
O presidente da Ordem dos Ministros Evangélicos do Ceará (Ormece), pastor Francisco Paixão, complementou com uma conta não muito diferente: “Se levanta de cinco a sete igrejas todo dia e fecham duas a três. Na pandemia muitas fecharam, de comunidades independentes, não tiveram como se manter. Mas é assombrosa essa dinâmica de construção de igrejas. Não queira saber. É uma dinâmica tremenda”.
Com base nas informações dos cartórios e nas estimativas do representante da Ormece, a Central DATADOC elaborou uma projeção do crescimento dos templos na Capital ao longo de 50 anos, e caso esses números fossem considerados teríamos um volume de registros 24 vezes maior do que estão oficialmente cadastrados nas bases governamentais. Em vez de 1.658 templos ativos, Fortaleza teria 40.156 locais religiosos.
O pastor Jamieson Simões, hoje afastado da atuação institucionalizada numa igreja e trabalhando como pesquisador da violência em Fortaleza, lembra que entre 2014 e 2015 foi feito um censo informal do número de templos evangélicos na cidade. “Chegou-se a cerca de 5 mil igrejas. Foi o número mais aproximado que conseguimos. Mas com certeza esse número de templos é muito maior”, analisa. Simões se mostra surpreso com estatísticas oficiais tão baixas e destoantes.
A existência desse mesmo levantamento de 2014/2015 e a quantidade de templos - “foi aproximadamente isso” - foram confirmadas pelo presidente da Ormece, que disse não dispor mais dos dados. Tanto a Ormece quanto a Federação das Igrejas Evangélicas do Estado do Ceará (Fieece), também não possuem um levantamento referente ao número e localização de igrejas filiadas.
O pesquisador Emanuel Freitas associa esse avanço evangélico a uma diversidade de fatores, que vão desde a flexibilização de legislações a processos de formação sacerdotal desburocratizado. Ele lembra que nos últimos anos houve um lobby muito intenso dos evangélicos nas diversas câmaras legislativas, exatamente para afrouxar os trâmites burocráticos em torno da legislação de fiscalização. “Desde a fiscalização de poluição sonora até a isenção de impostos”.
Enquanto construção de templos da Igreja Católica e a educação de seus sacerdotes, por exemplo, demanda muito mais tempo.”Se a gente pensar na formação de um padre, é no mínimo dez anos. Coisa que não acontece nas igrejas evangélicas, basta dar mostras de uma certa conversão, de uma certa mudança de vida. E pronto, você já tem uma igreja”, completa o pesquisador.
As próprias representações religiosas, desobrigadas de se mostrarem por completo e sem uma fiscalização mais incisiva no seu encalço, também apresentam números e cenários diferentes. Isso se e quando elas fazem a contagem de seus pares.
Muitas igrejas, templos ou outros espaços religiosos estariam também registrados na Receita como “associações”, se distanciando do termo religião, o que esconde/confunde ainda mais a realidade dos números.
Foram contatadas lideranças e praticantes locais da Igreja Católica, da umbanda e candomblé, muçulmanos, budistas, espíritas e judeus. Além de estudiosos do meio acadêmico. Praticamente todos confirmaram dados dispersos, incertos, diferentes dos oficiais, não dispunham de listagens ou não responderam às informações solicitadas.
Em seu portal, a Federação Espírita do Estado do Ceará (Feec), uma das mais transparentes, disponibiliza endereços de 64 centros espíritas na Capital, mas só 33 aparecem nos dados da Sefin. Quase o dobro de diferença.
O portal da Arquidiocese de Fortaleza identifica 84 igrejas de paróquias e áreas pastorais na Capital, mas os benefícios da imunidade e isenção tributárias são concedidos para 291 imóveis administrados pela Cúria Arquidiocesana - sejam templos, casas paroquiais ou assistenciais - conforme a Sefin.
Na contagem própria, os praticantes de budismo se reúnem em oito centros, boa parte fechada desde o início da pandemia. Mas os espaços não aparecem nos registros públicos. Os judeus realizam celebrações em três sinagogas. Os muçulmanos se encontram em duas mesquitas na Capital. A maior delas, no momento organizando papéis para sua formalização, com capacidade para cerca de 50 fiéis.
Por exemplo, nenhum terreiro, usado por praticantes de religiões de matriz africana, aparece como “organização religiosa”. Estariam na zona sombreada das informações ou mesmo sem buscarem a regularização como pessoa jurídica. Entram na invisibilização. O Governo do Estado atualmente trabalha na conclusão de um Inventário de Terreiros do Ceará. Os números devem ser divulgados ainda no início deste ano.
Em janeiro do ano passado, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos chegou a criar, através da portaria 21/2021, um Cadastro Nacional das Organizações Religiosas (CNOR). A ideia é "mapear os dados qualitativos do Governo Federal sobre as mais diversas organizações religiosas existentes no país". O cadastro é voluntário, pode ser feito pelo link https://www.gov.br/mdh/pt-br/cnor.
Ao O POVO, no entanto, a assessoria do Ministério explicou por que ainda não há dados a serem informados do Cadastro. "Ocorre que o aplicativo que realiza o cruzamento dos dados do CNOR com IBGE, e outras bases da administração pública, está em fase final de construção. Desse modo, a base final de dados estará publicamente disponível quando essa ferramenta estiver pronta".
Ou seja, mais um caminho ainda sem respostas sobre a cartografia da fé local. O POVO adota a denominação de templos para os imóveis listados, mas nem todos são usados exclusivamente como locais para celebrações, isso reconhecido pela Sefin, apesar do livramento tributário garantido por lei.
Para as análises e mapeamentos dos credos existentes em Fortaleza, a central DataDoc utilizou dados da Secretaria Municipal das Finanças (Sefin) e Superintendência da 3ª Região Fiscal da Receita Federal do Brasil, obtidos via Lei de Acesso à Informação. A categorização das religiões usada pelo IBGE foi norteadora do trabalho de classificação dos templos pela central.
Como forma garantir a integridade e confiabilidade deste material, disponibilizamos aqui a metodologia detalhada do projeto, as fontes de dados utilizadas, nossas análises, dados agregados resultantes e o conjunto de códigos desenvolvidos.