O Brasil vive uma séria crise na segurança dentro dos estádios de futebol. Brigas constantes entre torcedores, como as cenas de barbárie antes do clássico entre Sport e Santa Cruz, em Recife (PE), onde 14 pessoas foram presas e 15 ficaram feridos, vêm repercutindo bastante na mídia nacional.
O futebol vem cada vez mais sendo vinculado a um espaço de disputa e violência devido aos constantes casos de brigas. Ainda que em menor escala que a vista em Recife, a violência também atingiu as arquibancadas cearenses no fim de semana de 25 e 26 de janeiro.
Em disputa pela primeira fase do Campeonato Cearense contra o Horizonte, membros de duas torcidas organizadas do Fortaleza protagonizaram pancadaria nas arquibancadas do Estádio Domingão, em Horizonte, no sábado, 25. A partida chegou a ser paralisada por conta dos confrontos, e uma pessoa foi presa no local do jogo.
No dia seguinte, com o Ceará, não foi diferente, no domingo, 26, duas torcidas organizadas do Alvinegro de Porangabuçu entraram em confronto, ironicamente no "Clássico da Paz", nome dado à partida entre o time contra o Ferroviário.
O nome Clássico da Paz infelizmente não foi lembrado na ocasião, onde torcedores removeram gradis e passaram a trocar socos, pontapés e arremessar objetos, o que levou também à paralisação da partida. Nove pessoas foram presas nesse caso mais recente.
Ambos os casos demonstram o mais alto nível de violência desmedida dentro do contexto do futebol, as próprias torcidas brigando entre si, indo contra a própria paixão, o clube.
Em entrevista ao O POVO, Luiz Fábio Paiva, professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, avaliou que o estádio é um ambiente que pode ser propício para surgimento de violência, pela cultura de rivalidade presente nas torcidas organizadas.
“Cultura estruturada por uma masculinidade na qual o enfrentamento ao adversário passa por essa agressão, seja por meio de ofensas, ou por meio da violência que acaba eclodindo a partir desse jogo de ofensas, de disputa e de rixa. Então, tem uma configuração ali de uma situação que, de certa maneira, favorece o surgimento desses episódios de violência”, disse.
Em 14 de junho de 2023, o Governo Lula sancionou a nova Lei Geral do Esporte, com algumas mudanças significativas para o esporte no Brasil. A mudança gerou polêmicas, principalmente no Art. 148, onde obriga arenas esportivas com capacidade maior que 20.000 (vinte mil) pessoas a controlar a entrada e monitorar o público através da identificação biométrica.
Em resposta à nova lei, o governador Elmano de Freitas (PT) anunciou na terça-feira, 4, que o sistema de reconhecimento facial dos torcedores será implementado a tempo da final do Campeonato Cearense, que ocorrerá no dia 15 de março.
Em live nas redes sociais, Elmano garantiu que os torcedores dentro e fora dos estádios terão segurança cada vez mais forte em todos os aspectos. "Seja por dever legal, seja porque nós queremos o estádio seguro, e que as famílias estejam lá, com tranquilidade, sabendo que elas estão em um espaço em que a sua integridade e da sua família está segura".
A um primeiro olhar, a medida parece promissora em resolver a questão da fiscalização e responsabilização de pessoas envolvidas em atos de violência no ambiente esportivo, e pode sim ajudar bastante nisso, como explicou o especialista Victor Hugo Albuquerque, em entrevista ao O POVO.
“Um sistema de visão computacional para reconhecimento facial agrega, sem dúvida, um valor significativo como ferramenta no combate à violência, tanto em estádios quanto em qualquer contexto urbano”, disse.
Professor e pesquisador do Departamento de Engenharia de Teleinformática da UFC, Victor afirmou que a tecnologia agregada à Inteligência Artificial (IA), pode não só monitorar e identificar milhões de pessoas em tempo real, como pode justamente apontar pessoas banidas por comportamentos violentos em jogos anteriores.
O sistema promete, ainda mais, identificar pessoas que estejam com mandado em aberto, se integrando aos dados da segurança, ajudando na prevenção de crimes “automatizando o controle, o monitoramento e a gestão estratégica de multidões”, segundo Victor.
O prefeito de Fortaleza, Evandro Leitão (PT), falou ao O POVO sobre a questão da segurança, e afirmou que o problema da violência não está apenas dentro dos estádios.
"O primeiro ponto é a questão da impunidade. As pessoas não têm mais medo de serem presas, porque sabem que serão soltas no dia seguinte. O segundo é a gente ter um controle maior não só dentro dos equipamentos esportivos, que são importantes, mas a grande violência — e eu digo isso com conhecimento de causa — não está dentro dos equipamentos esportivos. A grande violência está fora dos equipamentos esportivos, na ida e na volta dos eventos esportivos, porque não se tem o controle, não se tem o acompanhamento", pontuou Evandro.
A medida recebeu críticas por obrigar o uso de uma tecnologia que não é 100% precisa, para que a mesma não vire um instrumento de exclusão e marginalização.
Toda tecnologia tem falhas — o reconhecimento facial não seria diferente. Fatores externos como iluminação variável, oclusões e multidões densas podem induzir falhas na interpretação.
Um dos fatores mais preocupantes em relação a essa tecnologia foi chamado de viés algorítmico. O analítico do reconhecimento facial é desenvolvido por pessoas que levam seu conhecimento e interpretação no treinamento do sistema.
“A tecnologia de reconhecimento facial ainda não é 100% precisa, e nunca será, apresentando falhas principalmente com mulheres (a maioria dos programadores são homens), negros (a maioria dos programadores são brancos) e pessoas trans (a maioria dos programadores são cisgênero)”, acrescentou, Luiz Fábio.
Apesar das falhas ainda presentes, a tecnologia vem em constante processo de evolução, com o uso de dados mais diversificados, e a realização de muitos testes de tolerância e falhas, aos poucos o sistema consegue ir reduzindo o viés, e trazendo mais precisão para a análise.
Os dados se tornaram quase como uma moeda, na sociedade hiperconectada que vivemos, sites pedem cadastro dando em troca algum benefício, as pessoas sempre são identificadas por alguma informação, seja um email, um telefone ou usuário de rede. Mas esse dado precisa ser sigiloso.
Recentemente, a empresa Meta/Facebook, teve um caso sério de vazamento de dados, em que 533 milhões de usuários tiveram números de telefone, nomes completos, localizações, datas de nascimento e e-mails comprometidos.
Com determinada quantidade de informação coletada sobre alguém, já se pode criar um problema — imagine com um dado tão sensível como o próprio rosto. Problemas como roubo de identidade, acesso a contas bancárias e vigilância indevida são alguns exemplos claros de o que se pode fazer com o uso inadequado de uma imagem facial, comprometendo a privacidade de muitos.
A implementação precisa ser baseada na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), criada para resguardar os usuários em casos como os de possíveis vazamentos, exigindo transparência, além de medidas robustas na segurança dos dados.
Já em casos específicos com menores de idade, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), exige cuidados ainda mais críticos com esse dados. O ECA pede o consentimento dos pais do menor. Ainda mais segurança é necessária, com “transparência sobre como os dados são armazenados e protegidos”.
“Embora a tecnologia ofereça benefícios significativos para a segurança nas cidades, aqui incluímos os estádios e eventos, sua implementação deve ser baseada em uma regulamentação rigorosa relacionada a proteção dos direitos dos indivíduos, a conformidade das jurisprudências e a adoção de medidas técnicas e éticas robustas para evitar abusos e garantir a privacidade e os direitos da sociedade”, concluiu o especialista Vitor Hugo.
O sentimento de insegurança nos estádios e a vinculação a um ambiente de violência vem sendo cada vez mais comum, e isso afeta principalmente os torcedores que realmente querem torcer pelos seus times. É o que aponta uma pesquisa realizada em 2024, em parceria por Quaest/CNN/Itatiaia.
Segundo a pesquisa, 33% dos torcedores entrevistados não se sente seguro no ambiente de estádio no Brasil, e 20% relataram que a insegurança é o principal motivo de afastamento dos estádios.
Fábio, que também é pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), cobrou mais ação do Estado, não só em punir, responsabilizando aqueles que efetivamente cometam atos de violência, mas em educar mais a população, criando uma metodologia e aplicando “uma pedagogia da não violência, da cultura de paz no estádio, da diversão responsável, do torcedor que cuida do espaço, cuida do outro”, completou.
O professor também cobrou ação dos clubes, que precisam atuar junto ao Estado para que o estádio não seja um “espetáculo da violência”, e sim de futebol.
Os dois casos de violência no Ceará, citados acima, foram repudiados por representantes dos clubes. O Fortaleza emitiu nota lamentando os incidentes e destacou que a briga foi contrária aos valores defendidos pela instituição, rompendo mais uma vez a relação com as torcidas organizadas.
Marcelo Paz, CEO da SAF do Fortaleza, classificou como "uma vergonha", os torcedores envolvidos nos incidentes. No Alvinegro, a nota seguiu a mesma linha, onde o clube repudiou as ações e disse que não irá compactuar “com atos de tamanha selvageria”. “O que presenciamos no estádio Presidente Vargas nos entristece e, acima de tudo, envergonha”, pontuou.
O Ceará Sporting Clube se posicionou a favor da Biometria Facial, afirmando que a medida é importante para a criação de um ambiente mais seguro nos estádios, coibindo quem busca confusão.
“A rapidez e a precisão que essa ferramenta oferece funcionarão como um auxílio crucial para garantir que aqueles que não deveriam estar nos estádios sintam-se desencorajados a frequentá-los, ajudando a manter esses ambientes livres de comportamentos indesejados. ”, afirmou o presidente João Paulo.
O clube conclui apontando que o sistema auxilia, mas que apenas a participação de “várias mãos: clubes, sociedade e pode público”, podem solucionar o problema da segurança.
"Parabenizo a iniciativa [...] Certamente muito em breve a gente vai ter nas duas maiores praças esportivas do estado, reconhecimento facial que traz vários benefícios para o futebol cearense, para a segurança pública, para o melhor espetáculo", afirmou Paz. (Colaborou Guilherme Gonsalves)
Estádios brasileiro que já usam a biometria facial
Nove estádios já usam a tecnologia tecnologia de reconhecimento facial. Pelo menos 48 ainda precisam se adaptar a lei e implementar a biometria
O Ceará ainda não finalizou a implementação da nova tecnologia, com o anúncio desta terça-feira, 4, Elmano definiu o prazo até o dia 15 de março de 2025 para finalização do processo.
A Secretaria do Esporte (Sesporte) informou, por nota, que vão se utilizada da adaptação de alguns equipamentos da Copa do Mundo de 2024, com a inclusão de novos câmeras mais modernas.
“Para otimizar recursos, a Arena Castelão aproveitará toda a infraestrutura da Copa do Mundo de 2014, utilizando as 246 câmeras e 144 catracas existentes. Esses equipamentos serão adaptados e implementados para receber a tecnologia de biometria facial. Além disso, câmeras novas e mais modernas serão instaladas para garantir uma leitura facial mais ágil e eficiente”, disse a nota.
A secretaria informou ainda que a Empresa de Tecnologia do Estado do Ceará (Etice) é quem está conduzindo o processo de implementação.
O POVO pediu mais informações sobre o projeto de Biometria Facial no estádio Castelão, na capital, no Romeiro, em Juazeiro do Norte, e também sobre a possibilidade de inclusão do Presidente Vargas (PV), após anúncio do estudo de viabilidade. Por estar em fase de negociação, a Etice e a secretaria não deram detalhes.