“Agenda woke”, “ideologia de gênero”, “identitarismo”. O fenômeno nas redes sociais invadiu os debates políticos e está encabeçando a agenda de ativistas, políticos e figuras influentes.
O mote lembra muito a discussão dos anos 2000 sobre o "politicamente correto" e leva uma parte dos ativistas a reagir com indignação a qualquer discurso que considerem ofensivo ou controverso.
Diferente de algumas correntes da esquerda intelectual, que adotam uma postura mais relativista, o
Essa abordagem resulta em uma percepção binária da realidade, onde ideias e comportamentos fora do espectro aceitável são vistos como profundamente condenáveis.
Paradoxalmente, a cultura woke também se tornou uma obsessão entre grupos conservadores, que frequentemente se revoltam contra casos de cancelamento.
O repúdio ao woke passou a ser um ponto de convergência para políticos e veículos de imprensa da direita, que encontram nesse tema uma bandeira comum.
No entanto, a constante indignação gerada por episódios de cancelamento acaba desviando o foco de discussões políticas mais aprofundadas dentro desse espectro ideológico.
Seja por um lado ou outro do espectro político, o termo “identitarismo” assume caráter acusatório contra grupos sociais que enunciam certas demandas e reivindicações no espaço público. Enquanto críticos de direita o veem como ameaça ao status quo, setores da esquerda apontam que ele desvia o foco da luta de classes.
No calor das discussões de uma sociedade cada vez mais polarizada e com uma demanda crescente por visibilidade, espaço e justiça social, deve haver espaço para reivindicações tão específicas?
O cientista político germano-americano Yascha Mounk é conhecido por pesquisar a ascensão de líderes populistas e a crise da democracia liberal. Ele afirma que uma parcela considerável da esquerda passou a desprezar — ou relegar a segundo plano — “valores universais e regras neutras, como liberdade de expressão e igualdade de oportunidades”, que historicamente são bandeiras do espectro esquerdista.
Segundo Mounk, isso ocorre em nome de ideias e valores “centralmente preocupados com o papel que categorias de identidade como raça, gênero e orientação sexual desempenham no mundo”. O pesquisador chama esse fenômeno de “síntese identitária”.
No Brasil é o que tem sido batizado, à esquerda, de pauta identitária, e à direita, de “agenda woke”, seguindo uma nomenclatura norte-americana.
Um episódio na eleição de 2024 que inflamou os debates sobre a questão aconteceu após um ato de campanha do então candidato à Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos (Psol), com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O fato aconteceu durante uma das eleições mais polarizadas e violentas da história democrática do Brasil. Toda a polêmica começou a partirde uma interpretação do Hino Nacional com “linguagem neutra” gerou uma onda de críticas nas redes sociais e levantou questionamentos sobre a possível desvirtuação de um símbolo nacional.
Ao passo que a direita acusava o outro lado do espectro de querer impor uma visão de mundo e deturpar um símbolo coletivo, a esquerda reclamava que o movimento LGBT estava impedindo a agenda trabalhista de avançar, a troco de mera representatividade.
O cientista social e professor associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carlos Sávio Teixeira, diz que o identitarismo possui “duas dimensões fundamentais”: a intelectual e a política, destacando que ambas estão profundamente interligadas.
Para ele, a dimensão intelectual é resultado de uma crise que afeta a inteligência contemporânea, especialmente no campo progressista.
“O mundo intelectual passa por uma crise, particularmente entre os progressistas e a esquerda, onde o identitarismo se manifesta com mais força, monopolizando grande parte do debate público”, afirma.
Essa crise estaria vinculada a um duplo acontecimento histórico: o colapso do socialismo no final do século XX e a consequente desorientação da esquerda. Segundo ele, com o fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, o campo socialista perdeu seu referencial político e ideológico.
“A esquerda ficou desorientada e, nesse vácuo, surgiu o identitarismo. Mas ele não é uma corrente teórica nem um movimento social, e sim uma corrente de opinião”, defende o professor.
Os movimentos considerados identitários
Movimento feminista
Movimento negro
Movimento LGBT
Movimento indígena
E dentro desse campo, duas ideias fundamentais sustentariam sua expansão: a representatividade e a resistência.
O conceito, conforme explica Carlos Sávio, parte da premissa de que a estrutura social não se transforma, mas que, dentro dessa estrutura desigual, grupos minoritários devem ocupar espaços de destaque.
“Coloca-se o negro, a mulher, o homossexual em posições de representação para chamar a atenção para os problemas que esses grupos enfrentam”, exemplifica. No entanto, ele critica essa abordagem por considerar que ela não altera as causas estruturais das desigualdades.
Em diversos aspectos, a chamada onda "woke" remete ao debate sobre o politicamente correto dos anos 1990, especialmente na tentativa de regular a linguagem, excluindo termos considerados ofensivos ou cuja origem pode remeter a uma prática opressiva.
Usar termos como "bicha", "mulata" e "retardado", por exemplo, levam ativistas a reagir com indignação, e o impacto dessas palavras vai além da simples polêmica: pode gerar consequências concretas. Uma vez que uma pessoa é rotulada como problemática, há o risco de ser “cancelada” e afastada do espaço público.
A indignação, não é sem fundamento, conforme explica a professora do Laboratório de Educação Inclusiva (LEdI) da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) Geisa Kempfer Bock. Segundo a especialista, ao perpetuar preconceitos e estereótipos, tal linguagem contribui com a exclusão.
“A linguagem pode hierarquizar formas de ser e de se estar nesse mundo, como se houvesse corpos mais dignos de viver em sociedade do que outros. São termos que possuem como referência um corpo normativo que é heterossexual, branco, cisgênero e sem deficiência. Assim, tudo o que foge desse perfil passa a ser retratado como sub-humano ou risível por meio de palavras e expressões”, afirmou.
Por outro lado, a direita também transformou a prática em alvo constante de críticas, muitas vezes adotando um tom de indignação diante de casos de cancelamento.
Esse grupo aponta que a prática pode levar à criação de um ambiente de autocensura, no qual o medo de represálias impede a expressão de opiniões, limitando o debate aberto e a troca de ideias.
O cancelamento atinge principalmente os famosos
Foi cancelada após compartilhar um vídeo de um pastor, que dizia ser contra o casamento homoafetivo
Cancelado por defender a criação e legalização de um partido nazista no Brasil durante um episódio do "Flow"
Foi cancelada por criticar a abordagem do filme Black is King, de Beyoncé, sendo uma mulher branca
Cancelado por fazer piada envolvendo o programa Teleton e uma criança com hidrocefalia
Cancelada quando participou do BBB 21, acusada de ser injusta com um participante, xenofóbica e machista
Cancelado por cometer assédio, quando tentou tirar os biquínis de mulheres durante um evento de digital influencers
Outro ponto de destaque é a forma como o movimento define prioridades entre diferentes formas de opressão, estabelecendo que as pessoas são interceptada simultaneamente por marcadores de raça, de classe, de gênero, de território e identidade religiosa, por exemplo.
Assim, uma pessoa que está mais longe do centro de poder e é vista a partir de marcadores que a colocam em um posição social inferiorizada, sofreria mais.
Por exemplo, a diferença de tratamento dispensada a uma mulher, branca, rica e cristã e a uma mulher, negra, pobre e umbandista seria explicada pela interseccionalidade.
(Foto: Artigo "Investigação sobre Critérios de Avaliação da Caminhabilidade sob a Perspectiva de Gênero")Interseccionalidade se refere à interação ou sobreposição de fatores sociais que definem a identidade de uma pessoa e a forma como isso irá impactar sua relação com a sociedade e seu acesso a direitos
“No entanto, diferente de liberais e socialistas, que sempre tiveram programas para enfrentar problemas estruturais, os identitários se limitam a apontar erros e fazer denuncismo”, critica Carlos Sávio Teixeira.
Por fim, o professor argumenta que essa abordagem tem impacto direto na política institucional e nas políticas públicas, mas reduz questões complexas, como os desafios da saúde, educação e tributação, a problemas de racismo, machismo e intolerância.
“Os grandes problemas estruturais do Brasil não estão ligados diretamente a essas questões identitárias”, conclui.
“Eu não sou eu, nem sou outro. Sou qualquer coisa de intermédio”. Os versos são de Mário de Sá-Carneiro, um dos poetas mais célebres do modernismo português e falam de uma busca da própria identidade, tentando definir o que separa a identidade que é própria, da que se reconhece como externa.
Sá-Carneiro menciona nos versos que esse processo prescinde de uma ponte, que pode ser interpretada como a própria comunicação.
O filósofo e doutor em Educação Maurício Abdalla, professor do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), alerta que o diálogo e o entendimento mútuo são centrais no debate político. No entanto, se desfazem quando a lógica e a interpretação da linguagem são desprezadas.
Ele considera recorrente e, muitas vezes, irritante a identificação - partindo de movimentos identitários - de uma crítica contextualizada como se fosse uma crítica absoluta. Para ilustrar seu ponto, apresenta um exemplo fictício: a crítica à monocultura do eucalipto.
Segundo Abdalla, ao criticar-se a monocultura do eucalipto, não se está condenando a árvore em si, mas sim o fato de ela ser cultivada de forma exclusiva, em detrimento da biodiversidade.
"Se alguém diz ‘não se pode plantar só eucalipto’, essa pessoa não está rejeitando o eucalipto ou negando sua importância e utilidades", explica, destacando que a crítica é direcionada à monocultura e não à árvore como espécie.
Ele propõe uma analogia com o debate sobre o identitarismo, conceito que, segundo ele, não se trata de uma escola de pensamento bem definida, mas sim de uma forma de compreender a luta política.
Abdalla argumenta que o identitarismo reduz a emancipação social à solução dos problemas relacionados às identidades oprimidas, sem considerar a universalidade de pautas unificadoras e as causas estruturais das opressões.
"Os identitaristas podem ter como inimigo mortal um estudante universitário branco e trabalhador, apenas por ele não compartilhar mesmo universo simbólico e linguístico", afirma.
Há, contudo, um contraponto. A visão de que o identitarismo tem origem nos grupos marginalizados é questionada pelo professor Deivison Faustino, doutor em sociologia e professor do programa de pós-graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de São Paulo.
Faustino estuda o pensamento de Frantz Fanon, psiquiatra morto em 1961, e que se tornou célebre por suas análises do sofrimento psíquico causado pelo racismo.
O professor argumenta que os fundamentos da crítica de Fanon ao racismo e à racialização estão na tese de que o branco cria o negro - no sentido de estabelecer uma distinção entre si e o outro. É a partir de um ideal de cidadania e civilização que surge o projeto de exploração colonial, negando aos negros e ameríndios o reconhecimento como sujeito.
Ao fazer isso, como explica Faustino, o branco “constrói uma prisão para si”, uma vez que passa a cristalizar a ideia de que ele representa o que é universal, correto e hegemônico, enquanto os grupos racializados são vistos como portadores de identidades, membros de guetos, e passam a ser inferiorizados.
Para o pesquisador, a obra de Fanon ensina que brancos também são identitários e que é preciso questionar esse identitarismo. Criticar os limites dos movimentos negros sem olhar para o racismo dos brancos, diz, significa direcionar as armas para quem está perdendo a batalha.
“Antes de criticar o identitarismo negro, a principal tarefa é criticar o identitarismo branco, que está presente nas ciências sociais, na filosofia, na psicologia, no jornalismo, nas religiões. Embora não se paute necessariamente por uma defesa do branco —o branco não aparece nomeado—, todas as vezes que se fala de humano, é do branco que está se falando”, pontua.
A pesquisadora Lia Schucman, doutora em Psicologia Social e professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina aponta que a noção de que políticas de reparação histórica são apenas pautas identitárias é um reflexo da própria lógica da branquitude, que reforça a supremacia branca.
Autora do livro “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo”, a professora argumenta que, se há um grupo que pode ser considerado identitarista, esse grupo é o branco, pois está fechado em si mesmo e distribui o poder e a riqueza apenas entre seus pares.
"A branquitude se caracteriza como uma posição em que pessoas classificadas como brancas são beneficiadas por uma estrutura racista de 500 anos de expropriação e espoliação", explica. E o ponto central não é apenas a existência desses privilégios, mas o fato de que eles são mantidos e distribuídos exclusivamente dentro do próprio grupo.
Ela também chama atenção para o fato de que, majoritariamente, pessoas brancas ocupam os espaços de maior poder, consolidando essa dinâmica no campo político, econômico e jurídico.
"Se há algo que é identitarismo, é a branquitude. Mas há uma projeção que tenta rotular as lutas por direitos como identitárias", afirma.
Schucman enfatiza que as demandas dos movimentos negros e feministas são por direitos básicos, como saúde, educação, dignidade e reconhecimento simbólico. "Direito à creche, ao aborto, à dignidade e à autodecisão: chamar isso de identitarismo é pura má-fé", conclui.
Apontar essas questões é importante, mas não responde à todas as críticas. Em entrevista ao jornalista Leandro Demori, a psicanalista Maria Rita Kehl fez apontamentos sobre a tática política usada pelos grupos colocados como identitários.
Segundo ela, na dinâmica destes movimentos, apenas quem pertence ao grupo pode falar sobre ele. Eles têm o “lugar de fala” enquanto para todos os outros resta apenas o “lugar de cale-se”.
Maria Rita destacou, contudo, a importância dos movimentos identitários na construção de reconhecimento e pertencimento.
Segundo ela, é fundamental que grupos historicamente marginalizados, como o movimento negro ou LGBTQIA+, se organizem e afirmem suas identidades coletivas. "Essas pessoas se unem e dizem: 'nós somos isso, e queremos um lugar sendo isso'", pontuou.
No entanto, alertou para o risco de esses movimentos se fecharem em “nichos narcísicos”, grupos isolados nos quais apenas os membros do próprio grupo podem dialogar entre si.
Ela argumentou que essa dinâmica pode levar a uma estagnação do debate, pois limita a troca de ideias e impede o contraditório. Na visão da profissional, o problema é que esse quadro não contribui para a formação de laços sociais mais amplos, mas sim para uma espécie de "enclausuramento discursivo".
O ex-deputado federal Jean Wyllys vê com preocupação a ideia de que o "lugar de fala" confere automaticamente autoridade a um discurso. "Eu digo: ‘Não. É um pensamento torto’. Não vou ser cúmplice disso."
Para ele, essa lógica alimenta um comportamento de "enxame" nas redes sociais, onde as pessoas se contaminam mutuamente, assim como acontece com as fake news.
"Elas produzem linchamentos virtuais, forçam retratações públicas, exigem autopunição. E o pior: isso acontece dentro dos próprios movimentos identitários", aponta.
Jean rejeita o que chama de cultura do cancelamento. "Tenho pavor desse enxame que nega às pessoas o direito de se explicar, de ter uma segunda chance. Eu defendo a justiça, não a vingança. Se a gente cancela e elimina uma pessoa sem julgamento justo, está agindo exatamente como os fascistas", finaliza.
No mundo corporativo, apesar dos retrocessos em políticas afirmativas e no alinhamento ao discurso mais conservador, ainda há espaço para uma visão positiva.
Izabela Holanda, diretora da IH Consultoria e Desenvolvimento Humano aponta que, embora a decisão de reduzir investimentos em diversidade e inclusão possa parecer estratégica no curto prazo, os impactos negativos podem ser significativos a longo prazo.
A perda de credibilidade no mercado, dificuldades na retenção de talentos e até mesmo impactos financeiros estão entre as consequências.
"As novas gerações valorizam empresas que tenham um compromisso real com diversidade. Organizações que retrocedem nesse sentido correm o risco de afastar talentos qualificados e perder competitividade", alerta Izabela.
E a visão é corroborada por dados: de acordo com um estudo da McKinsey & Company, organizações que investem em diversidade têm 35% mais chances de superar seus concorrentes.
Nos debates sobre diversidade, um dos desafios é diferenciar práticas genuínas de iniciativas meramente performáticas. Muitas empresas adotam discursos inclusivos sem implementar mudanças reais na cultura organizacional.
Para evitar esse risco, Izabela recomenda que as empresas busquem coerência entre discurso e prática. "A diversidade precisa estar enraizada nos processos internos, desde o recrutamento até a liderança. Além disso, é fundamental medir o impacto das iniciativas, garantindo que elas realmente promovam inclusão e equidade", pontua.