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Quiet luxury: escolher como passar o tempo é o centro do novo mercado de luxo
Reportagem Especial

Quiet luxury: escolher como passar o tempo é o centro do novo mercado de luxo

Longe de se importar com ostentação de grifes, carros e imóveis, os mais ricos estão demarcando sua posição social a partir de um privilégio que não se pode parcelar no cartão: decidir como e onde gastam seu tempo. O "quiet luxury" acontece longe dos holofotes, em contato com a natureza e no tempo que eles quiserem

Quiet luxury: escolher como passar o tempo é o centro do novo mercado de luxo

Longe de se importar com ostentação de grifes, carros e imóveis, os mais ricos estão demarcando sua posição social a partir de um privilégio que não se pode parcelar no cartão: decidir como e onde gastam seu tempo. O "quiet luxury" acontece longe dos holofotes, em contato com a natureza e no tempo que eles quiserem
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Imagine comprar um aparelho de chá de 7 peças por um valor que supera em quase duas vezes salário mínimo. Esse foi o preço pago por quem adquiriu as peças da coleção Marquesa da marca Tânia Bulhões

Agora, imagine a decepção, e em alguns casos a fúria, de quem descobriu que o mesmo conjunto poderia ser adquirido pelo valor de uma xícara - cerca de 300 reais. E que na Tailândia, um cafezinho em uma padaria de rua estava sendo servido em uma peça idêntica. 

Cada peça da coleção Marquesa pode variar de R$ 210 a R$ 900, enquanto o aparelho de jantar de 18 peças chega a R$ 4.800(Foto: Tânia Bulhões / Reprodução)
Foto: Tânia Bulhões / Reprodução Cada peça da coleção Marquesa pode variar de R$ 210 a R$ 900, enquanto o aparelho de jantar de 18 peças chega a R$ 4.800

Depois de uma série de memes, vídeos virais e comentários indignados, a empresa afirmou que um dos parceiros comerciais descumpriu acordos contratuais e vendeu sobras de produção da coleção Marquesa sem autorização. 

O caso Tânia Bulhões  diz muito mais do que uma quebra de confiança entre marca e consumidor. Mostra como funciona o mercado para os mais ricos. 

Ele, como todo mercado, está em constante transformação, adaptando-se às mudanças sociais, culturais e tecnológicas. Nos últimos anos, até o conceito de exclusividade passou por uma revolução significativa.

Se antes o que estabelecia o rótulo “de luxo” era o preço ou a raridade dos produtos, hoje a classificação se baseia no nível de conhecimento, na experiência e na conexão cultural.

O distanciamento da ostentação tornou-se também um marcador social, separando os herdeiros do old money "Conceito usado para designar grandes fortunas que são derivadas de heranças — que são acumuladas de geração em geração sendo, consequentemente, velho" dos novos ricos, repetindo um conflito que remonta ao período da Renascença.

Até nos circulos da riqueza, há um distanciamento entre o 1% mais abastado e os outros (Foto: José Cruz/Agência Brasil)
Foto: José Cruz/Agência Brasil Até nos circulos da riqueza, há um distanciamento entre o 1% mais abastado e os outros

No século XXI, a mudança do comportamento no consumo do alto luxo é impulsionada por um novo perfil de consumidor: os pioneiros culturais.

Esse grupo de pessoas altamente influentes, engajadas e conhecedoras do mundo que as cerca são marcadas por deter quatro tipos de capital: cultural, financeiro, social e simbólico.

Pelo menos é o que apontam os estudos de mercado feitos pela plataforma Highsnobiety, especializada em estratégia e consultoria em conceitos criativos, produção e mídia.

O luxo contemporâneo é marcado por condensar quatro tipos de capital

 


Um desses estudos, chamado "New Luxury’s New Rules 2024" (As novas regras do novo luxo), aponta que para 90% dos pioneiros culturais, experimentar coisas novas faz parte do seu estilo de vida.

Além disso, 81% deles são as primeiras pessoas procuradas por amigos em busca de recomendações e 83% se consideram as mais informadas sobre marcas dentro de seu círculo social.


 

A modesta vida dos bilionários

Truman Capote é um ícone do jornalismo e da literatura e, talvez, o mais célebre colunista social de todos os tempos. A despeito de sua ética, a forma como capturou o estilo de vida e os conflitos do 1% pode ser considerada atemporal.

Em um artigo publicado em 1977 no The New York Times, Capote ironizou o estilo de vida de luxo, afirmando que eles não viviam à base de caviar e sim de sanduíches com maionese.

“Se os ricos parecem comer pouco, não é simplesmente por um desejo de permanecer magros. Há também um sentimento de que comer muito, ou preparar uma refeição farta, é um pouco vulgar”, escreveu.

As porções pequenas são uma marca das refeições refinadas (Foto: João Filho Tavares)
Foto: João Filho Tavares As porções pequenas são uma marca das refeições refinadas

Atualmente, a prática tem nome: quiet luxury (do inglês, luxo silencioso) e já chegou na mídia, sendo o estilo de uma das protagonistas do seriado Succession, a magnata da mídia Siobhan "Shiv" Roy. 

A figurinista da série, Michelle Matland, descreve as peças usadas por Shiv como armaduras, invocando o poder silencioso que refinamento e polidez carregam na comunicação não verbal.

Nada de cores chamativas, estampas ou marcas à mostra. Tudo é pastel, terroso, calmo e absurdamente caro.

O ar de elegância despretensiosa também contribui para uma aura de inacessibilidade, qualidade muito valorizada em meio aos incessantes jogos de poder ocorridos na série.

A personagem Siobhan Roy, da série Succession é um ícone do quiet luxury e seus looks transmitem refinamento e polidez(Foto: HBO / Divulgação)
Foto: HBO / Divulgação A personagem Siobhan Roy, da série Succession é um ícone do quiet luxury e seus looks transmitem refinamento e polidez

A escolha na ficção e na realidade se dá porque a ostentação de riqueza não é apenas desaprovada nos níveis mais altos de renda, é também evitada. E o motivo é simples: para a maioria das pessoas, ter um avião particular é sinônimo de status, já para os multibilionários, não. Eles podem ter cinco ou seis modelos à disposição.

Para esse grupo é importante se diferenciar, por exemplo, dos influenciadores digitais. Apesar de ricos, eles fizeram fortuna a partir de publicidades, monetização de conteúdo e exposição da própria imagem, além de precisarem manter esse ritmo de trabalho. 

Virgínia Fonseca e Zé Felipe são um exemplo dos novos-ricos, dos quais os herdeiros de fortunas tradicionais querem se distanciar simbolicamente(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram Virgínia Fonseca e Zé Felipe são um exemplo dos novos-ricos, dos quais os herdeiros de fortunas tradicionais querem se distanciar simbolicamente

A atitude considerada "deslumbrada" é o que alimenta os feeds de vídeos rápidos. O público passa horas com os narizes grudados na vitrine digital enquanto os influencers exibem seus carros, suas roupas de grife e os closets de suas mansões dedicados a dezenas de bolsas Hermès Birkin.

Para os que estão acostumados com o acesso à tudo quanto é possível, o verdadeiro privilégio passa a ser o distanciamento da necessidade de postar, compartilhar e engajar, e apenas experimentar o momento, a viagem ou a refeição.


 

Viver para comprar ou comprar para viver?

O professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp, Renato Ortiz, em seu livro "O Mercado do Luxo", descreve um "mundo dos ricos", onde a materialidade dos bens é essencial para a manutenção da distinção social.

Ou seja, é preciso haver sempre algum item que expresse a ideia do “eu posso, você não”.

Essa construção simbólica do luxo se dá por meio do trabalho de especialistas, designers e profissionais de marketing que garantem autenticidade e singularidade aos bens e serviços. 

Vilas de Luxo e resorts fazem parte do nicho "hotelaria on-demand", muito procurado para experiências exclusivas(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Vilas de Luxo e resorts fazem parte do nicho "hotelaria on-demand", muito procurado para experiências exclusivas

A relação entre luxo e arte também é um ponto central nesse mercado, com as as marcas frequentemente promovendo seus produtos ao status de objeto de contemplação.

Mas, como destaca Renato Ortiz, esse preceito é constantemente ameaçado pelas falsificações, que representam um "flagelo" para a indústria.

Para manter sua autoridade, as marcas de luxo investem fortemente na construção de uma imagem de exclusividade e tradição, ao mesmo tempo em que combatem ativamente a pirataria e a produção de réplicas.

Cena do filme Casa Gucci em que a família descobre as réplicas das bolsas Gucci vendidas ilegalmente (Foto: MGM / Reprodução)
Foto: MGM / Reprodução Cena do filme Casa Gucci em que a família descobre as réplicas das bolsas Gucci vendidas ilegalmente

Na cultura popular, uma cena ilustra bem essa situação. No filme “Casa Gucci”, a personagem Patrizia Gucci se desespera quando vê a empregada usando uma bolsa igual à sua, e descobre que há produtos falsificados sendo vendidos no mercado ilegal.

A protagonista expressa um medo de que o nome da família - e da marca -  seja vulgarizado. E se na década de 1980 o problema das réplicas já preocupava as grifes, hoje é uma situação quase incontornável

Made with Flourish

 

A própria rede de varejo WallMart lançou sua própria versão da Hermès Birkin, fazendo com que a exclusividade - princial valor agregado do produto - fosse reduzida.

Assim, para se distanciar cada vez mais do comportamento das massas, os super-ricos passam a adotar comportamentos de luxo, que são praticamente impossíveis de copiar a não ser que você esteja realmente perto do 1%.


 

Os valores que importam

Foi o sociólogo francês Piérre Bourdieu que estruturou a divisão do capital em quatro tipos: financeiro, cultural, social e simbólico. Estudos recentes apontam para uma mudança na ideologia do luxo, cujo cerne migra do capital financeiro e cultural para o social e simbólico.

De acordo com o artigo "Novas Ideologias de Luxo", publicado na revista Fashion Theory, as marcas de luxo agora buscam se alinhar com os valores e crenças de seus consumidores, criando um senso de pertencimento e engajamento.

Essa mudança se reflete em três eixos principais das marcas que constroem capital social: valores e visão; comunicação e co-criação e autenticidade e transparência.

 

A nova ideologia do luxo tem três pilares


Ou seja, o que antes era sobre distinção e prestígio agora está mais relacionado a conexões, valores compartilhados e impacto social. "O luxo como conceito ideológico tem passado por um período de transição, levando alguns a argumentar que tem experimentado uma crise de identidade", aponta o estudo.

Isso se deve, entre outros fatores, à ascensão das redes sociais, ao streetwear "Basicamente, o streetwear é um estilo que representa a essência urbana e cultural de cada comunidade ou tribo ao redor do mundo" e à crescente demanda dos consumidores para que marcas assumam posições sobre questões sociais e políticas.

Os jovens da geração Z e da geração alpha lidam com o dinheiro, consumo e finanças de outra forma(Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO)
Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO Os jovens da geração Z e da geração alpha lidam com o dinheiro, consumo e finanças de outra forma

As novas gerações de consumidores, especialmente a pós-millennial, esperam que as marcas não apenas reflitam seu estilo, mas também seus valores.

"O consumo sinaliza aos outros valores e gostos compartilhados. Os consumidores frequentemente têm relacionamentos pessoais com as marcas e esperam que elas compartilhem e promovam seus valores e crenças", destaca o estudo.

Então quanto mais a opinião pública passa a valorizar debates como inclusão, pertencimento e sustentabilidade, marcas que deixam a discussão para trás passam a perder valor agregado aos olhos dos consumidores.

A campanha da Calvin Klein usando uma modelo plus-size e negra é um exemplo do tipo de posicionamento de marca que importa para os pioneiros culturais (Foto: AFP)
Foto: AFP A campanha da Calvin Klein usando uma modelo plus-size e negra é um exemplo do tipo de posicionamento de marca que importa para os pioneiros culturais

E uma figura chave nesse relacionamento marca-consumidor é o "pioneiro cultural", perfil do cliente que está disposto a gastar mais, valorizando a criatividade, a experimentação e a conexão com comunidades autênticas.

O pioneiro cultural é também a pessoa que influencia diretamente suas redes, tanto a que ele construiu por meio do acesso ao capital social, quanto pelo engajamento que tem nas mídias sociais, gerando um efeito multiplicador no desejo por determinadas marcas e produtos que estão alinhadas aos valores e conceitos do momento.

A economia da influência e da atenção também é um fator que conta muito para propagar as ideias dos pioneiros culturais (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS A economia da influência e da atenção também é um fator que conta muito para propagar as ideias dos pioneiros culturais

Esses apontamentos também estão presentes no relatório "O Novo Luxo" publicado em 2023 pela plataforma Highsnobiety, destacando que os consumidores modernos, especialmente os mais jovens - entre 16 e 34 anos -, estão mais interessados em conhecimento, valores e experiências do que em status e exclusividade.

Dados do relatório revelam que 85% dos consumidores acreditam que o que suas roupas representam é tão importante quanto sua qualidade ou design.  Além disso, 87% afirmam estar dispostos a pagar mais por marcas que apoiam causas em que acreditam.

É por isso que um novo nicho de mercado está surgindo: o da experiência de luxo. A nova característica do 1% mais rico é ter a oportunidade de escolher como passar seu tempo livre. 

A empresária Fernanda Semler foi quem conceituou o pós-luxo, movimento que vê as experiências autênticas como o verdadeiro privilégio(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal A empresária Fernanda Semler foi quem conceituou o pós-luxo, movimento que vê as experiências autênticas como o verdadeiro privilégio

A classe alta desfrutando de seu tempo de lazer contrasta fortemente com muitos trabalhadores da classe média que mantêm vários empregos ao mesmo tempo. Levar uma rotina sem esforço sinaliza que os ricos não têm as mesmas restrições financeiras de outros.

Foi a oportunidade perfeita para os negócios da empresária Fernanda Semler, que se dedica ao público que, ao acordar, não tem a preocupação de uma rotina com a casa, filhos ou bater o ponto no trabalho.

No “Triângulo das Serras”, próximo a Campos do Jordão (SP), Fernanda opera o Hotel Spa Botanique, com atividades e terapias exclusivas com base na biodiversidade brasileira.

Ao falar do seu público, Fernanda é enfática. "São pessoas que escolhem, por exemplo, visitar vinícolas na Borgonha ou Bordeaux, não apenas porque desejam comprar ou provar vinhos de quatro ou mais dígitos, mas porque querem aprender a produzi-los ou criar seu próprio blend, com a expertise de um renomado enólogo, em uma experiência que os transformará", diz.

“Existe um jeito muito mais inovador, inteligente e digno de se consumir e olhar o luxo. O pós-luxo é um movimento e uma vontade de fazer com que o luxo do nosso tempo tenha uma razão de ser”, pontua Fernanda.

Ela aponta que o conceito ainda não chegou a todos, mesmo que no segmento mais rico, e que ainda há espaço para o luxo tradicional, das grifes e marcas.

Enquanto para muitos o sinônimo de prosperidade é o acúmulo de bens, os mais próximos do topo já entenderam o que está por trás de um comentário simples, de uma situação que quase todo mundo já viu.

- Fazendo academia no meio da semana, às 9h30? Que chique! 

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