Não é de hoje que Brasil e Portugal alimentam uma típica relação de irmãos briguentos nas redes sociais, um toma-lá-dá-cá cheio de implicâncias humoradas e piadas criativas, por vezes ofensivas.
Uma nova onda de memes entre brasileiros e portugueses tomou conta da internet. Se você costuma navegar pelas redes sociais com frequência, deve ter se deparado, nos últimos tempos, com a tal Guiana Brasileira ou suas variantes, como Pernambuco em Pé, Mato Grosso do Norte, Rio Grande de Fora, entre outras.
Na nova brincadeira, internautas brasileiros rebatem provocações lusitanas sobre o período colonial com uma inversão sarcástica, na qual o Brasil coloniza Portugal. A piada viralizou, ganhou força no TikTok e no X, e se tornou o mais novo capítulo da implicância transatlântica entre as nações irmãs.
Essa disputa bem-humorada — que oscila entre a provocação leve e o deboche afiado — é mais do que uma simples guerra de memes. Ela revela camadas profundas da relação histórica entre Brasil e Portugal: a herança da colonização, os traumas silenciados, os complexos de superioridade e inferioridade que ainda permeiam o imaginário coletivo de ambos os lados.
Vídeos viralizados no Tiktok
No centro dessa nova leva de piadas está uma espécie de revanche simbólica. Ao transformar Portugal em uma suposta “colônia brasileira”, os memes da Guiana Brasileira subvertem a lógica do passado e colocam o Brasil no papel de potência dominante.
A brincadeira, apesar de cômica, carrega uma crítica embutida. O POVO+ conversou com especialistas para entender até que ponto o humor online reflete ou mascara tensões culturais mais profundas, e se as brincadeiras com os portugueses na internet não passam disso: apenas brincadeiras.
As relações Brasil-Portugal hoje, mas desde sempre, se dão das mais variadas formas. Culturalmente, são países de trocas mútuas, uma vez que não só o Brasil absorveu muito da cultura portuguesa pelo passado colonial, como também Portugal consome muito daquilo que é produzido no Brasil, ainda mais atualmente.
Uma matéria publicada em 2021 pelo jornal português Diário de Notícias, um dos mais tradicionais veículos impressos de Portugal, traduziu os impactos da presença brasileira ao afirmar que há crianças portuguesas que “só falam brasileiro”.
O motivo apontado pela publicação seria a influência de youtubers do Brasil, os mais assistidos pelos “miúdos” portugueses, que estariam mudando a forma de falar das crianças.
O tema transformou-se em um dos assuntos mais debatidos nas redes sociais no Brasil. Os usuários se polarizaram entre os que ironizaram a questão, ao passo que outros questionaram o viés xenófobo da publicação, por se referir ao português falado no Brasil como “brasileiro”, embora o idioma seja um só.
Crescimento do número de estudantes brasileiros em Portugal (2007 a 2024)
Além do entretenimento humorístico, a música, a gastronomia, a literatura e outras expressões culturais são criações e elaborações que ambos os países trocam desde muito tempo. A educação, especialmente a superior, também faz parte disso, tendo em vista a quantidade de estudantes e professores que estão em constante movimento entre os dois territórios.
Econômica e politicamente, assim como Portugal é portão de entrada para os interesses brasileiros na Europa, o Brasil é um importante parceiro diplomático e comercial de Portugal na América do Sul.
Ainda, a migração e o turismo são temas frequentes na relação entre os países, exemplo do quanto os países têm a contribuir entre si em diversas dinâmicas.
Mas essa relação nem sempre foi de proximidade. A professora do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Maria Erica de Oliveira Lima, explica que entre os anos 1980 e o início dos anos 2000, a relação com Portugal não chamava tanta atenção dos brasileiros.
“Essa dinâmica começou a mudar de forma mais ampla entre 2008 e 2010, quando Portugal passou a atrair a atenção dos brasileiros para o turismo em massa. Com o tempo, os brasileiros não apenas passaram a conhecer o país, mas também a imigrar para lá, a ponto de formarem, hoje, a maior comunidade de imigrantes em Portugal”, comenta.
A professora explica que essa imigração contribuiu para suprir a demanda por mão de obra em Portugal. O país enfrentava escassez em alguns setores de serviços, por possuir uma população idosa significativa — o que impacta a produção e a força de trabalho — e baixa taxa de natalidade.
Para Maria Erica, a chegada de imigrantes “oxigena” a sociedade portuguesa, melhora setores como serviços e promove trocas culturais, mas certamente incomoda parte dos portugueses, especialmente os mais tradicionalistas.
A imigração é outro ponto de tensão entre as nações irmãs. Um relatório da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial, de 2022, apontou que as denúncias de xenofobia contra brasileiros em Portugal aumentaram 505% em cinco anos.
Conforme dados de 2023 do Itamaraty, há 513 mil brasileiros vivendo em Portugal, o segundo maior contingente de expatriados no mundo, atrás somente dos Estados Unidos.
Brasileiros residentes em Portugal (1999 a 2023)
O presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) chegou a se manifestar publicamente pedindo que brasileiros não fossem alvos de racismo e xenofobia em Portugal. Em resposta, o chefe do governo português prometeu “tolerância zero” para os autores de crimes relacionados ao preconceito de origem ou raça.
Tiago Cavalcante, professor do Departamento de Geografia da UFC, explica que a imigração é um tema global, impulsionado pela facilidade de mobilidade. Pesquisador em geografia política, ele também acredita que as implicâncias não sejam impulsionadas por rivalidade.
“É, talvez, ressentimento. É parte da história que Portugal colonizou o Brasil e, infelizmente, da pior maneira, tomando o nosso país como colônia de exploração. Mas há tempo que isso aconteceu e, apesar de cicatrizes dessa exploração ainda existirem, eu diria que não há maiores rivalidades”, comenta.
A relação complexa, na qual a imigração em larga escala reativou e exacerbou tensões históricas oriundas da colonização, levou a incômodos culturais e sociais no cotidiano, amplificados no ambiente digital.
Para Tiago, todos os povos usam o humor como forma de lidar com temas e situações difíceis. É exatamente isto que caracteriza o humor: a coragem em tratar com galhofa assuntos velados.
“Assim como todos nós conhecemos piadas, muitas de mau gosto, sobre portugueses, duvido que eles também não façam piada conosco. Se forem, de fato, engraçadas, por que não rirmos todos juntos?”, comenta.
Cristiano Ronaldo sendo confundido como brasileiro do Japão
Ao ser homenageado em um programa japonês, o português Cristiano Ronaldo foi surpreendido com uma apresentação de samba e Carnaval. A cena virou piada entre os brasileiros e é um dos exemplos da confusão identitária que estrangeiros têm com o Brasil e Portugal
O pesquisador também aponta que, como tudo que surge na internet, o meme é passageiro, assim como piadas. Alguns persistem por mais tempo, mas logo outra novidade, intriga ou questão aparece e substitui o meme já sem sentido.
“Não acredito que tais memes possam gerar maiores tensões culturais. No máximo, podem gerar reflexões sobre a história e a geografia relacionada aos dois países e isto, de alguma forma, pode até ser positivo”.
Para Joyce Oliveira dos Santos, formada em Letras-Português pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o humor online tanto reflete, quanto mascara tensões culturais mais profundas.
Por um lado, ele revela percepções e críticas sociais, além de ressaltar ressentimentos históricos relacionados ao passado colonial. Por outro, o uso do riso pode suavizar conflitos, disfarçando ou tornando palatável um embate simbólico que expõe disputas de identidade e poder.
“O humor permite expressar desacordos de forma socialmente aceitável, mas não elimina a existência de tensões subjacentes. Os memes funcionam como espaço de crítica e reinterpretação de identidades linguísticas e históricas compartilhadas”, diz.
Segundo ela, as chamadas “guerras de memes” entre brasileiros e portugueses escancaram, de maneira cômica, as diferenças culturais entre os dois povos. Elas geram humor e engajamento nas redes, mas quando os limites do riso são ultrapassados por ofensas diretas ou manifestações preconceituosas, o que era brincadeira pode, sim, se transformar em uma tensão mais séria.
Ainda assim, Joyce tranquiliza: “Essas disputas funcionam mais como um jogo simbólico de afirmação cultural do que como um conflito real. O contexto digital favorece uma interação baseada na criatividade, não na agressividade explícita.”
No fim, as brincadeiras entre brasileiros e portugueses na internet não passam disso: brincadeiras. O influencer português, Rafael Bailão, entrou na onda da piada e gravou vídeos mostrando como era feliz morando na “Guiana Brasileira”.
Outros lusitanos também entraram na bagunça e passaram a chamar o Brasil de Groenlândia Portuguesa. No fim das contas, entre piadas e memes, o que prevalece é uma troca cultural divertida dos dois lados do Atlântico.
Outras implicâncias entre Brasil e Portugal