Desde o retorno de Donald Trump à Casa Branca, em 2025, o governo americano tem protagonizado uma ofensiva sem precedentes contra o ensino superior.
Universidades de prestígio como Harvard, MIT, Columbia e Yale se tornaram alvos diretos de uma estratégia que mistura repressão política, cortes bilionários de verbas e ameaças de interferência na autonomia institucional.
Sob o argumento de combater o antissemitismo e a “ideologia de esquerda” que, segundo Trump, dominam os campi universitários, a administração republicana congelou ou revogou mais de US$ 11 bilhões em financiamento federal — uma quantia que atinge desde bolsas de pesquisa até contratos com agências federais.
Harvard, por exemplo, teve US$ 2,2 bilhões suspensos após se recusar a implementar medidas exigidas pelo governo, como auditorias sobre opiniões de alunos e professores, fim de programas de diversidade e mudanças curriculares em departamentos como os Estudos do Oriente Médio.
O presidente chamou a universidade de "instituição antissemita de extrema-esquerda", "piada" e "um desastre liberal". A fala desencadeou uma reação em cadeia na comunidade acadêmica, que considera o cerne da questão como uma tentativa de intimidação política e censura.
Fato é que, com um movimento ofensivo, Trump coloca na mesa as cartas de um novo jogo, no qual a banca dita regras incontestáveis. E entre blefes e estratégias ousadas, nem todos estão dispostos a ceder.
Ao contrário do modelo brasileiro, centralizado em universidades públicas e gratuitas mantidas pelo Governo Federal, o sistema de educação superior dos Estados Unidos é majoritariamente particular.
Descentralizado, competitivo e financiado por múltiplas fontes, o arranjo histórico e a primeira emenda da Constituição Americana garantem liberdade administrativa e pedagógica.
As poucas universidades públicas são parcialmente financiadas pelos governos estaduais, como a Universidade da Califórnia (UC) - uma das melhores instituições de ensino do país - e a Universidade do Texas (TU). Mesmo assim, a gestão é feita por um conselho curador, indicado pelo governador, mas com garantia de independência. Não é, porém, o que tem acontecido.
Isso porque o que Donald Trump tem feito desde o começo do segundo mandato já havia sido engatilhado por outras figuras conservadoras do Partido Republicano.
Em 2023, o governador da Flórida, Ron DeSantis, anunciou que faria seis novas nomeações para o Conselho de Curadores de uma das principais universidades públicas da região, a New College.
Semanas depois, o Conselho do Governador da Flórida nomeou um sétimo membro, o que deu à nova leva de indicados de DeSantis uma maioria imediata no conselho.
James Uthmeier, chefe de gabinete de DeSantis, disse à revista National Review que esperava que o New College se tornasse uma “Hillsdale do Sul” — uma referência à faculdade cristã conservadora privada localizada em Michigan.
Logo depois, Christopher Rufo, ativista conservador e uma das novas nomeações de DeSantis para o conselho do New College, deu uma entrevista à jornalista Michelle Goldberg, do New York Times, ainda mais incisiva: ele falou sobre uma “reestruturação de cima para baixo” do currículo e da cultura da escola, e sugeriu que, se professores e alunos não concordassem com as mudanças, poderiam sair.
O projeto, continuou Rufo, poderia servir como modelo para intervenções semelhantes em todo o país. “Se conseguirmos transformar essa jogada de alto risco e alta recompensa em uma vitória, veremos legisladores estaduais conservadores começando a reconquistar instituições públicas em todos os Estados Unidos”, afirmou.
Como mostrado pelo O POVO+ em uma reportagem de 18 de fevereiro de 2025, Trump partiu com toda a força para tornar o serviço público americano sua imagem e semelhança.
Nos seus 100 primeiros dias de mandato, ele aprovou mais decretos e reformas administrativas do que todos os seus antecessores, somados, nos últimos 50 anos.
Os presidentes anteriores somaram 150 atos administrativos, enquanto Trump assinou 185.
A principal marca da gestão Trump é o fim de políticas afirmativas garantidas há mais de cinco décadas, encerramento de programas de diversidade e inclusão e de programas federais que garantiam o acesso de grupos minoritários a serviços essenciais.
Agora, a Casa Branca partiu para as instituições privadas, como Harvard, Yale, Princeton e Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
Apesar de não terem qualquer vínculo administrativo com o governo e serem mantidas por meio de mensalidades (chamadas de tuitions, doações filantrópicas, fundos de investimento (os chamados endowments) e receitas provenientes de pesquisas e serviços, Washington não poupou esforços para impor sua vontade política.
E se pela via institucional não haveria muito o que fazer, o jeito foi apelar para o orçamento. Mesmo as universidades públicas cobram taxas de matrícula relativamente altas, especialmente para alunos de fora do estado. Nas privadas, os valores podem ultrapassar os 60 mil dólares por ano.
Veja no gráfico a média anual de custo nas universidades americanas
Mesmo assim, o financiamento federal tem papel estratégico: em 2023, mais de US$ 60 bilhões foram destinados a projetos universitários. Harvard, por exemplo, financiou 45% de seus projetos de pesquisa com verbas federais; no MIT, esse índice passa de 60%.
A relação entre o Estado e a academia é parceria antiga, e desde a Segunda Guerra Mundial, universidades americanas têm sido aliadas estratégicas do governo em áreas como defesa, medicina, tecnologia e ciência espacial. A aliança, historicamente baseada em confiança mútua e autonomia, agora está sob risco.
O plano orçamentário aprovado recentemente por Trump propõe cortes de US$ 163 bilhões em áreas não-militares e eleva os gastos com defesa e segurança em até 65%.
Ao mesmo tempo, medidas administrativas têm desmantelado estruturas como a Fundação Nacional de Ciências (NSF) e a NOAA (Administração Oceânica e Atmosférica), sob a justificativa de combater “alarmismo climático” e “ideologia de gênero”.
Tão incerto quanto o resultado de uma roleta de cassino. É assim que começa o dia de milhares de pesquisadores e cientistas espalhados pelos cinquenta estados. A qualquer momento, o anúncio do corte de verbas pode colocar em risco anos de trabalho e dedicação.
Diante do cenário, a resposta do setor acadêmico veio em diferentes tons. Apesar de afirmar que não aceitará interferências que comprometam sua independência, Columbia cedeu às exigências para tentar recuperar os recursos perdidos.
Após o corte de US$ 400 milhões em verbas, a instituição anunciou reformas drásticas, incluindo mudanças curriculares, endurecimento dos protocolos disciplinares e até a autorização de agentes de segurança armados no campus.
Harvard, por sua vez, rejeitou categoricamente as exigências governamentais e entrou com ação judicial pedindo que sejam declarados ilegais tanto o congelamento de fundos quanto as novas condições impostas a instituições que recebem verbas públicas. “Harvard não renunciará à sua independência, nem aos direitos garantidos pela Constituição”, declarou o reitor Alan Garber.
A reação incisiva da universidade levou outras instituições a tomar posições mais firmes. Mais de 100 organizações, entre universidades e centros de pesquisa, assinaram uma carta condenando o que classificam como “interferência política sem precedentes”.
O documento alerta, ainda, que “o uso coercitivo de recursos públicos para controlar o ensino e a pesquisa compromete o futuro do conhecimento no país”.
Além das perdas financeiras, a repressão já afeta intercambistas e pós-doutorandos. Apenas na última semana de março, nove alunos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) tiveram seus vistos revogados.
Em reposta ao processo, em 29 de março, Harvard divulgou dois relatórios que revelaram um ambiente universitário marcado por preconceitos enraizados, especialmente contra estudantes muçulmanos, árabes, judeus e israelenses.
As investigações, conduzidas entre maio e agosto de 2024, apontam um clima de medo, exclusão e insegurança no campus.
A maioria dos muçulmanos (56%) e uma parcela significativa dos judeus (26%) relataram sentir-se inseguros, e muitos temem represálias por expressarem suas opiniões políticas ou religiosas. O objetivo da publicização dos relatos foi minar a narrativa de favorecimento da comunidade árabe e o suposto antissemitismo.
Alan Garber destacou em carta à comunidade universitária que os relatos fazem emergir interações marcadas por desdém e intolerância, e reforçou o compromisso de Harvard com a promoção de um ambiente mais acolhedor e respeitoso para todos os grupos.
A ofensiva atinge diretamente os estudantes internacionais, que representam 27,2% da população acadêmica em Harvard, por exemplo. Centenas de vistos foram revogados sob a acusação de envolvimento em protestos considerados “antissemitas” pelo governo.
É o caso da doutoranda turca Rumeysa Ozturk, levada à força sob custódia por agentes federais em plena luz do dia, perto de sua casa em Massachusetts, e teve seu visto revogado. A ação tem sido repudiada pela comunidade acadêmica e ativistas pelos direitos humanos. Veja o vídeo da abordagem a seguir.
Outro símbolo da repressão do governo americano nas universidades é Mahmoud Khalil, ativista palestino e aluno de pós-graduação de Columbia, detido em 8 de março de 2025 em seu apartamento universitário em Manhattan.
Khalil pode ser deportado, mesmo tendo green card e sendo casado com uma cidadã americana – que estava grávida de oito meses na época de sua prisão.
Além deles, pelo menos 133 estudantes de países como Índia, China e Colômbia contestam judicialmente o cancelamento de seus vistos, alegando que cumpriam todos os requisitos legais.
Diante da instabilidade, pesquisadores de ponta e pós-doutorandos já consideram deixar o país. É o caso do filósofo Jason Stanley, autor do livro “Como funciona o fascismo”, publicado no Brasil pela LP&M.
Stanley optou por deixar Yale, uma das instituições de ensino superior das mais prestigiosas do mundo e está indo para a Munk School of Global Affairs and Public Policy, de Toronto, no Canadá.
Em entrevista ao jornal O Globo, o filósofo afirmou que o objetivo da extrema-direita é destruir a autoridade da ciência para concentrar toda a autoridade no líder. “Nos EUA, temos um governo autoritário que está atacando todas as instituições que são os pilares da democracia: as universidades, a mídia e os tribunais”, declarou.
“Se a minha própria universidade e a liberdade de expressão em si estão sob enorme pressão, por que não mudar de instituição se tenho a oportunidade?”, conclui Stanley.
“Vamos perder uma geração inteira de talentos”, alertou nas redes sociais Daniel Sandweiss, professor de ciências climáticas na Universidade do Maine. Países como França e Alemanha já se preparam para acolher esses profissionais com leis que criam a condição de "cientistas refugiados".
Jennifer Jones, diretora do Centro para a Ciência e a Democracia da Union of Concerned Scientists, analisa que há indícios nítidos de que os espaços deixados por estes profissionais sejam preenchidos com "ciência do lixo e pesquisadores desacreditados”.
Jones refere-se a situações como a do ativista anti-vacina David Geier, nomeado para conduzir um estudo que associa vacinas ao transtorno do espectro autista, tese já amplamente refutada pela comunidade científica.
Para ela, o governo segue o roteiro do chamado “Projeto 2025”, que reúne uma série de propostas promovidas pelos conservadores — e adotadas por Trump — para reestruturar ou desmantelar as instituições científicas e acadêmicas importantes.
Reflexos dessa forma de lidar com as instituições científicas já são visíveis fora dos Estados Unidos.
Pesquisadores paulistas lançaram, no início de maio de 2025, um abaixo-assinado contra um projeto de lei (PL) nº 09/2025, protocolado pelo governo Tarcísio na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) em caráter de urgência. O objetivo é alterar as normas e regulamentações da categoria.
Liderada pela Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), a mobilização recolheu mais de 6 mil assinaturas que pedem a retirada imediada do PL da pauta da Alesp. A entidade também enviou uma carta diretamente ao governador criticando a proposta.
Em nota, o governo de São Paulo afirmou que o objetivo da mudança é "garantir mais estabilidade, transparência e valorização do trabalho" dos servidores.
Já para os membros da APqC, a nova estrutura desconsidera a especificidade da categoria. Mudança no regime de trabalho, reestruturação da composição salarial e um novo modelo de avaliação de desempenho dos profissionais, - com menos transparência - estão entre as principais insatisfações.
A tentativa de controle do conteúdo acadêmico por parte de um governo com motivações ideológicas remete a experiências totalitárias.
A repressão ao pensamento crítico e à diversidade de ideias não é novidade nos regimes autoritários. Hitler, Stalin, Mao e outros ditadores buscaram controlar universidades, sufocar vozes dissidentes e moldar o conhecimento de acordo com sua visão de mundo.
Vários funcionários de Trump ecoaram esses sentimentos, incluindo o secretário da Saúde, Robert Kennedy Jr., um cético em relação às vacinas que aproveitou a desconfiança gerada na ciência que se desenvolveu durante a pandemia de Covid-19.
O resultado da adoção completa do negacionismo científico foi o rompimento do acordo tácito que antes vinculava o Estado à produção de conhecimento, disse Sheila Jasanoff, professora de Estudos de Ciências e Tecnologias de Harvard, à agência de notícias France Press.
Na avaliação da docente, o presidente tentou subjugar diversas universidades de prestígio. “Para mim, a raiva contra ciência lembra a raiva religiosa fundamentalista”, comentou.
A atual ofensiva republicana nos EUA é, segundo seus críticos, uma tentativa de usar a máquina pública para reprimir, calar e doutrinar — não a favor do saber, mas do poder.
“A ideia de pegar Harvard é a ideia de calar um sistema que está na base daquilo que se chama de democracia liberal americana”, argumenta, o sociólogo Glauco Arbix, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisador visitante em Columbia.
“Quando ele (Trump) quer calar essas universidades, ele quer evitar que elas falem, que elas se pronunciem, que elas tenham voz, que elas se mobilizem e que elas anunciem que existem outras opções”, afirma Arbix.
“Ele quer chegar a ter o controle e o cancelamento de qualquer tipo de oposição", finalizou.
A secretária da Educação, Linda McMahon, nega que a medida vise a controlar o conteúdo universitário: “Se as universidades recebem dinheiro público, devem obedecer à lei federal”, declarou em comunicado oficial.
Dias depois, o que era para ser mais um severo aviso à Universidade de Harvard, McMahon, pode ter, na verdade, desencadeado uma aula nacional de gramática — direcionada diretamente a ela.
Em uma carta publicada no X, endereçada a Alan Garber, o Departamento de Educação informava a instituição da Ivy League que ela não seria mais elegível para receber subsídios federais, acusando a universidade de violar a legislação federal, padrões éticos e princípios acadêmicos.
Mas não foi o conteúdo que chamou a atenção da internet. Foi a escrita.
Em poucas horas, a internet reagiu com canetas vermelhas digitais. Diversas postagens no X mostraram a carta de três páginas editada no estilo “professor”, com erros de ortografia, frases mal formuladas e uso indevido de letras maiúsculas circulados em vermelho.
our secretary of "education" https://t.co/ds5cwk0uHl pic.twitter.com/4MR4DEydUZ
— daniel (michelle steel hate account) (@danielluo_pi) May 6, 2025
A reação dos internautas é mais um impulso para as Universidades continuarem a mobilização. Em nota, Harvard confirmou o recebimento da carta, declarando que o documento trazia "novas ameaças de reter ilegalmente recursos destinados a pesquisas e inovações que salvam vidas, como retaliação contra Harvard por ter ajuizado sua ação em 21 de abril.”
O comunicado acrescentou: “Harvard continuará a cumprir a lei, promover e incentivar o respeito à diversidade de pontos de vista e combater o antissemitismo em nossa comunidade. Harvard também continuará a se defender contra interferências ilegais do governo que visem sufocar a pesquisa e a inovação que tornam os americanos mais seguros e protegidos.”
Para organizações como a American Association of University Professors, a narrativa oficial da Casa Branca encobre o real objetivo: enfraquecer a autonomia acadêmica e usar a máquina pública como instrumento de coerção política.
Num país onde a liberdade acadêmica sempre foi carta forte, Trump tenta mudar o baralho. Mas se ele acredita que ciência e pensamento crítico são fichas descartáveis, talvez descubra tarde demais que sem elas não se vence uma partida — perde-se o país.
"Olá! Eu sou Mateus Mota, repórter do O POVO+. Gostou da reportagem? O que você acha sobre a interferência do governo no funcionamento das Universidades? Deixe sua opinião nos comentários. Até apróxima!"