“Eu não sei em que país que eu vivo e qual o país que você está vivendo porque eu vejo um tipo de informação e você vê outra”, responde um dos entrevistados, de forma educada e sincera, solicitando que aquele contato termine. Do outro lado da chamada de vídeo está Sandra Kogut, cineasta em atividade desde os anos 1980 e autora de obras como Campo Grande e Três Verões.
Ao longo de 2022, ela assumiu um dos desafios mais espinhosos da carreira: entrevistar eleitores de Bolsonaro e Lula para entender a cisão política do Brasil.
Em entrevista ao O POVO+, ela conta sobre os bastidores de No Céu da Pátria Nesse Instante, documentário que estreia nesta quinta-feira, 14 de agosto de 2025, em plena efervescência da crise política que sequestrou o Brasil.
Ao longo de 100 minutos, acompanhamos manifestações, reuniões e entrevistas com pessoas comuns durante a eleição presidencial de 2022, que deu vitória a Lula contra Jair Bolsonaro, captando ainda imagens exclusivas do ataque ao Congresso Nacional no dia 8 de janeiro.
“Seria um abuso do meu poder de diretora ficar brigando com os personagens”, Sandra comenta ao explicar como conseguiu se aproximar de eleitores bolsonaristas, de forma transparente, mesmo sendo notoriamente uma cineasta de esquerda.
Para além dessas imagens mais recorrentes, o filme também revela ações do Tribunal Superior Eleitoral, acompanhando treinamentos e condução de urnas para áreas remotas do país, como em comunidades ribeirinhas no Pará: “A gente teve um acesso que jamais teríamos em tempos normais porque o TSE estava tão sob ataque, que acho que eles perceberam que era bom alguém estar querendo fazer um filme”
Confira a entrevista que se segue.
O POVO - O timing em que seu documentário chega aos cinemas soa o mais oportuno possível, diante da prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, investigado justamente por induzir eventos retratados no filme. Como você acha que o filme será percebido nesse contexto?
Sandra Kogut - Eu espero que o filme ofereça um espaço de reflexão, de debate, para uma coisa que está muito aguda, muito presente na vida da gente. Ao mesmo tempo, a eleição de 2022 já está mais longe, mas é bom relembrar porque algumas coisas as pessoas tinham esquecido. E a eleição de 2026 está na porta, na esquina, já dominou o debate público, então acho que é um ótimo momento onde o filme pode ajudar na reflexão.
O POVO - Vendo o seu filme, senti que ele termina com alguma felicidade, celebrando a “saída do Jair”. Mas ver o filme hoje é outro contexto. Essas pessoas que seu documentário filma ainda estão na ativa, e estarão de volta. Você sente que há alguma espécie de presságio?
Sandra Kogut - Eu não usaria essa palavra, mas eu lembro de pensar que as pessoas estavam virando a página muito rápido, achando que tudo aquilo tinha acabado. E não tinha. Essas pessoas continuam aí, todas essas ideias continuam aí. Naquele momento, no final da eleição, houve uma empolgação e um otimismo super justificado, mas não se pode esquecer que essas pessoas não sumiram e nem essas ideias.
Em 2022 a democracia venceu e em 2026 pode vencer de novo. Também pode ser um presságio disso.
Não é um filme frio, de análise, que tá olhando de longe, de fora. Você mergulha com os personagens e eu percebo que cada pessoa vive o seu próprio filme, vai lembrando onde estava naquele dia, como viveu aquilo ali. Então ele fica num lugar muito humano. E eu também acho que esse é o único lugar possível para tentar recuperar algum tipo de lugar comum, de diálogo.
O POVO - Por falar em diálogo, como foi essa aproximação com famílias bolsonaristas? Suponho que você teve que construir uma relação de confiança, então como foi esse processo?
Sandra Kogut - Esse era um filme impossível de ser feito, e não é à toa que ele começa com aquela mulher falando aquilo [que não daria entrevista para uma cineasta de esquerda]. Ao mesmo tempo que eu queria falar dessa impossibilidade de dialogar, eu precisava dialogar. O tempo todo foi preciso ficar inventando um jeito de fazer o filme.
Foi difícil, muitas pessoas não aceitaram, outras abandonaram no meio e sumiram. Você tem que construir uma relação de confiança. Eu sempre fui muito transparente, eles sempre souberam o que eu pensava. Eu sempre falava que não estava ali para convencer eles de nada. Eu tinha uma curiosidade genuína. Tinha horas que era difícil, teve momento de embate, mas sempre num lugar respeitoso de ambas as partes.
Eu achei que era muito importante eu só falar e entrar com algum tipo de embate na hora que fosse realmente impossível não fazer isso. Eu não queria fazer um filme, e acho que seria um abuso do meu poder de diretora, ficar brigando com os personagens. Muita gente vê o filme e diz que “pô, eu achei aquele cara legal, fiquei meio assim…”.
Eu acho que a ideia era essa, tentar olhar para as pessoas pelo lado humano porque tanta gente tem alguém da família, um pai, um tio, que não consegue mais conversar. Que momento isso aconteceu? Eu tinha todos esses desejos.
O POVO - O filme teve algumas exibições internacionais. O que você ouviu de públicos estrangeiros e alheios a essa discussão?
Sandra Kogut - Tem muitas coisas específicas, será que as pessoas vão entender? Na verdade foi surpreendente porque em lugares bem diferentes as pessoas mergulharam no filme. Na França, por exemplo, eu lembro de sessões com 600 lugares, debate de mais de uma hora, as pessoas falando como se fosse sobre elas. Porque estavam reconhecendo ali coisas que elas estavam vivendo.
Eu fui pra Coréia do Sul com o filme há dois meses e uma pessoa da plateia falou assim “esse é um filme coreano”. Esse fenômeno é global, não é só no Brasil, essa ascensão da extrema-direita. Acho que é porquê a gente vai vendo através de personagens, de pessoas, tem uma coisa humana que é universal, de alguma maneira.
O POVO - Penso que a grande contribuição do filme, no que diz respeito a imagens mais inéditas, sejam as cenas nos bastidores do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mostrando treinamentos e ações, inclusive no Pará, em regiões distantes. Eles tiveram vontade de falar justamente por estarem sob ataque de tanta fake news em 2022?
Sandra Kogut - A gente teve um acesso que jamais teríamos em tempos normais porque o TSE estava tão sob ataque, que acho que eles perceberam que era bom alguém estar querendo fazer um filme. Isso foi totalmente único e em conexão com os tempos excepcionais de ataques ao processo eleitoral. Eu queria muito fazer isso. Aprendi muito fazendo, fiz até um curso.
Eu acho o nosso processo eleitoral um patrimônio, uma coisa maravilhosa que a gente tem. Quando a gente está falando de democracia, eu queria mostrar esse trabalho de democracia, de um jeito muito concreto, porque sai daquele lugar de narrativa. Não é uma questão de opinião.
Tem um negócio ali do sistema funcionando, aqueles voluntários fazendo aquilo acontecer, um negócio tão bacana, que é uma das coisas que faz da gente um país. Aquilo é para todos. É isso que está sendo ameaçado com essa ascensão da extrema-direita, essa ideia do coletivo.
Confira imagens do documentário No Céu da Pátria Amada Nesse Instante
O POVO - As filmagens do 8 de Janeiro são suas? Houve muita dificuldade de produzir imagens naquele dia, teve gente que perdeu, teve censura de gravação. Isso abre e fecha teu filme, e você não imaginava, quando estava gravando as eleições, que isso iria acontecer. Como foi essa gravação e inserção?
Sandra Kogut - Eu tinha achado que a gente ia filmar até a posse. Foi um dia de muita tensão, a gente passou aquele ano inteiro com esse medo. O 8 de janeiro materializou o medo que pairava. Será que vai ter um golpe? Será que vai ter a eleição? Quando passou a posse achei que tinha acabado a filmagem.
No dia 8 eu pensei: nossa, primeiro domingo depois de tanto tempo, tranquilo, que eu estou em casa. Então uma personagem do filme me liga e me avisa do que estava acontecendo. A gente ligou para um dos nossos parceiros, fotógrafo, que estava em Brasília. Ele era um cara que já estava ali, alinhado com a linguagem do filme, em como eu queria. Ele se fantasiou de verde-e-amarelo e foi.
O filme não tem arquivo, tudo foi feito por nós. Eu percebo hoje que nós somos os únicos a termos imagem de cinema desse dia. A mídia filmou de longe, ninguém tinha como entrar ali, e tinha os celulares dos invasores. Isso me fez repensar o filme inteiro porque a pergunta passou a ser essa: como é que a gente chega aqui? Não é mais para onde o filme vai. Aconteceu isso. Como que isso foi acontecer?
O POVO - O Senado e a Câmara Federal foram ocupados por políticos da extrema-direita que querem pautar a anistia para Bolsonaro e para as pessoas envolvidas no 8 de janeiro. Com o filme estreando nesse contexto, sinto que ele pergunta: “vocês esqueceram disso?”
Sandra Kogut - Exato.
Mulheres filmam a política
Com esse documentário, Sandra Kogut entra para o grupo de mulheres cineastas que vêm documentando o cenário conturbado político do Brasil nos últimos 10 anos. Ela se junta a Petra Costa, autora de “Democracia em Vertigem” (2019) e “Apocalipse nos Trópicos” (2024), Anna Muylaert, de “Alvorada” (2021), e Maria Augusta Ramos de “O Processo” (2018) e “Amigo Secreto” (2022)
Cineasta Brasileira
Com 40 anos de carreira, Sandra Kogut tem longa carreira também na televisão, tendo produzido “Brasil Legal” e “Esquenta”, com Regina Casé. No cinema, vários de seus filmes estrearam em grandes festivais internacionais. “Mutum” (2007), estreou no Festival de Cannes, e “Campo Grande” (2015) no Festival de Toronto
Cearense no Radar
Em “Três Verões” e “Campo Grande”, Sandra Kogut trabalhou com Ivo Lopes Araújo, diretor de fotografia que participou de várias produções cearenses - além de obras do coletivo Alumbramento, como “Os Monstros” e “Com os Punhos Cerrados”, filmes dirigidos por Petrus Cariry e Armando Praça