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Visita filosófica e etnográfica: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir já vieram ao Ceará
Reportagem Especial

Visita filosófica e etnográfica: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir já vieram ao Ceará

Casal de filósofos franceses desembarcou no Ceará em 26 de setembro de 1960, foi recebido por intelectuais na UFC, deu palestra na ACI, visitou o Centro de Fortaleza e viajou para o Interior. Da passagem, porém, poucas lembranças ficaram. O POVO+ mostra detalhes da agenda intelectual e política dos dois

Visita filosófica e etnográfica: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir já vieram ao Ceará

Casal de filósofos franceses desembarcou no Ceará em 26 de setembro de 1960, foi recebido por intelectuais na UFC, deu palestra na ACI, visitou o Centro de Fortaleza e viajou para o Interior. Da passagem, porém, poucas lembranças ficaram. O POVO+ mostra detalhes da agenda intelectual e política dos dois
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Quase ninguém lembra — e certamente pouca gente sabe —, mas o filósofo Jean-Paul Sartre e a escritora Simone de Beauvoir já vieram ao Ceará.

Foi há 65 anos, em setembro de 1960, numa curta temporada de agenda intelectual e política a convite do professor Antônio Martins Filho, criador e primeiro reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC).

O encontro e o aceno para conhecer a instituição cearense aconteceram no Recife, onde o casal de filósofos participava do I Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

 

Teses apresentadas no I Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, em Recife (1960)

 

Sartre e Beauvoir estavam no Brasil para uma extensa programação de quase três meses: começou em 12 de agosto e terminou no dia 1º de novembro de 1960.

Autor de obras como A Náusea (1938), O Ser e o Nada (1943) e A Idade da Razão (1945), Sartre tinha acabado de lançar Crítica da Razão Dialética (1960) quando chegou ao País.

Conhecido como papa do existencialismo, era um influente representante do movimento através da ideia de que a “existência precede a essência”.

O criador e primeiro reitor da UFC, Antônio Martins Filho; Jean-Paul Sartre; Simone de Beauvoir; e os escritores Milton Dias e Fran Martins na Reitoria em setembro de 1960(Foto: Acervo Memorial UFC)
Foto: Acervo Memorial UFC O criador e primeiro reitor da UFC, Antônio Martins Filho; Jean-Paul Sartre; Simone de Beauvoir; e os escritores Milton Dias e Fran Martins na Reitoria em setembro de 1960

Já Simone de Beauvoir era reconhecida como uma das figuras mais influentes da sua geração, principalmente após a publicação de O Segundo Sexo em 1949.

Além de ser uma figura central do existencialismo, ela participava ativamente da vida intelectual e política, com publicação de obras que abordavam a condição feminina no mundo.

Na época, embora fossem conhecidos internacionalmente, a cobertura da visita ao Ceará não recebeu tanta atenção — o que resultou na existência de poucos registros dos momentos.

Registros da visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ao Ceará em 1960 no acervo do Memorial da UFC, que fica na área 3 do Centro de Humanidades, no campus do Benfica(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Registros da visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ao Ceará em 1960 no acervo do Memorial da UFC, que fica na área 3 do Centro de Humanidades, no campus do Benfica

O Memorial da UFC guarda imagens e textos que ajudam a relembrar detalhes sobre o fato. Os documentos indicam que a Universidade recém-criada realizou expressivas homenagens aos filósofos, incluindo um coquetel nos jardins da Reitoria, um recital do Coral do Conservatório de Música e apresentação de números variados do folclore nordestino.

Sartre e Beauvoir chegaram num voo da Vasp nas primeiras horas do dia 26 de setembro de 1960, recepcionados pelo reitor Martins Filho, o romancista Fran Martins, o professor Ailton Gondim Lóssio e o cronista Milton Dias, que foi intérprete do casal durante a passagem.

De lá, foram para o San Pedro Hotel, no Centro, onde ficaram hospedados. O POVO de 30 de setembro de 1960 registrou que o casal concedeu, lá mesmo no hotel, “uma entrevista coletiva à imprensa de Fortaleza, quando responderam a perguntas sobre filosofia, literatura, política e outros assuntos”.

Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre visitaram a reitoria da UFC e conheceram as instalações da Universidade(Foto: Reprodução/Arquivo do professor Antônio Martins Filho)
Foto: Reprodução/Arquivo do professor Antônio Martins Filho Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre visitaram a reitoria da UFC e conheceram as instalações da Universidade

Um coquetel foi preparado nos jardins da Reitoria para homenagear o casal. O POVO noticiou, em 27 de setembro de 1960, quem esteve presente na homenagem.

“O governador e a sra. Parsifal Barroso, o vice-reitor Renato Braga, o secretário da educação, deputado Figueirêdo Corrêia, o dr. e sra. Joaquim Eduardo de Alencar, o romancista Fran Martins, o poeta Antônio Girão Barroso, presidente do Sindicato dos Jornalistas, jornalistas Perboyre e Silva, presidente da ACI, dr. Raimundo Girão, secretário de Urbanismo, dr. Newton Gonçalves, o jornalista J. C. Alencar Araripe, diretor de O POVO, funcionários da Reitoria, professores universitários e numerosos jornalistas, entre outros.”

Após o coquetel, o madrigal do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, regido pelo professor Orlando Leite, interpretou números que muito agradaram ao casal de escritores e provocaram aplausos.

O filósofo Jean-Paul Sartre deu palestra sobre literatura popular na Associação Cearense de Imprensa(Foto: Arquivo OPOVODOC)
Foto: Arquivo OPOVODOC O filósofo Jean-Paul Sartre deu palestra sobre literatura popular na Associação Cearense de Imprensa

Antes de se retirarem, Sartre e Beauvoir visitaram as instalações da Reitoria, tendo se demorado na Concha Acústica, onde tiraram fotografias na companhia do reitor e anfitrião Antônio Martins Filho e outras personalidades.

Também participou de atividades do Diretório Acadêmico Clóvis Beviláqua, no auditório da Faculdade de Direito da UFC, quando abordou questões que mexiam com o mundo na época.

À noite, no salão nobre da Associação Cearense de Imprensa (ACI), Sartre ministrou uma conferência sobre literatura popular para um público composto por figuras de destaque da intelectualidade cearense, jornalistas e estudantes.

Registro da visita do filósofo Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir à Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza. Os arquivos integram o acervo do Memorial  da UFC(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Registro da visita do filósofo Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir à Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza. Os arquivos integram o acervo do Memorial da UFC

Mas a viagem não se limitou aos coquetéis, conferências e debates. Na Capital, o casal procurou um contato mais direto com o povo cearense e visitou, inclusive, bairros periféricos como o chamado Arraial Moura Brasil.

Nas outras capitais por onde passaram, os dois escritores franceses fizeram o mesmo: o objetivo era colher o máximo de informações sobre a vida do povo brasileiro.

O acervo do Memorial da UFC é utilizado como fonte de consulta para pesquisadores. Além de organizar e armazenar arquivos importantes, o centro de referência em preservação e pesquisa da memória e história da Universidade promove ações educativas e culturais para conectar o público com a rica trajetória da instituição(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS O acervo do Memorial da UFC é utilizado como fonte de consulta para pesquisadores. Além de organizar e armazenar arquivos importantes, o centro de referência em preservação e pesquisa da memória e história da Universidade promove ações educativas e culturais para conectar o público com a rica trajetória da instituição

De Fortaleza, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir seguiram para Canindé a fim de fazerem uma visita de observação à zona da seca e verem de perto a vida e os costumes da população camponesa.

Retornaram no mesmo dia e partiram para Belém, em seguida Manaus e voltaram para Recife — de onde regressaram a Paris.

“Eles ficaram encantados e deram até um depoimento sobre o trabalho da Universidade”, lembrou o reitor Martins Filho em entrevista publicada na edição do O POVO de 23 de setembro de 1995. 


 

Confira entrevista do reitor Martins Filho sobre a visita de Sarte e Simone de Beuavoir

O POVO — Como foi a visita do filósofo francês Jean-Paul Sartre e a romancista Simone de Beauvoir ao Ceará?

Antônio Martins Filho — Participei do I Congresso de Crítica e História da Literatura, em Recife, no qual eles eram conferencistas. Lá, o escritor Jorge Amado, meu amigo, me aproximou do casal e sugeriu que eu trouxesse os dois ao Ceará. Aceitei a ideia e formalizei o convite, que foi prontamente aceito.

OP — Quantos dias eles passaram aqui?

MF — Três ou quatro dias. Eles ficaram encantados e deram até um depoimento sobre o trabalho da Universidade. Eu até o reproduzi num livro.

OP — O senhor os hospedou em sua residência?

MF — Não. Reservei dois apartamentos no Hotel São Pedro, porém eles utilizaram só um. Parece que havia uma amizade colorida.

OP — Além das palestras, a programação também incluiu passeios turísticos?

MF — Indiquei o José Milton Dias para anfitrioná-los. Não lembro se eles conheceram outras praias fora da orla de Fortaleza. Jean-Paul Sartre pronunciou uma conferência sobre “Problemas da Literatura Popular”, na Associação Cearense de Imprensa, perante grande auditório, na noite de 27 de setembro de 1960. A convite do Diretório Acadêmico Clóvis Beviláqua, da Faculdade de Direito e da União Estadual dos Estudantes, ele participou de movimentado debate com estudantes universitários, quando foram tratados temas da atualidade, como problemas de política internacional e questões de filosofia.

Um depoimento detalhado sobre essa passagem foi escrito pelo cronista Milton Dias, que atuou como intérprete do casal e testemunhou-os desde a chegada até a partida.

O professor relata que conheceu os dois em Recife, no congresso “que reunia altos nomes da literatura do Brasil e alguns de Portugal”. A ocasião, no entanto, restringiu-se a uma apresentação formal e acompanhamento de “seus luminosos pronunciamentos no congresso”.

“Na noite da chegada, por obra do acaso, fui intérprete de Simone de Beauvoir, numa entrevista que concedia ao Diário de Pernambuco, no salão do Grande Hotel”, descreve Dias.

E continua: “Em boa hora, o então reitor Antônio Martins Filho teve a ideia feliz de convidá-los a uma visita à nossa Universidade — convite que aceitaram de coração leve, imediatamente — e aqui, do momento da sua chegada ao da sua partida, os acompanhei durante quatro dias, servindo de intérprete junto ao público, nas entrevistas à imprensa, nas conferências que o mestre do existencialismo proferiu nesta cidade e nas homenagens várias que recebeu”.

Milton Dias revela que pôde constatar de perto “a confirmação da sua preocupação com a verdade, em todas as frases, em todas as atitudes, em todos os gestos, sua vivacidade extraordinária, a rapidez do processo mental, seu interesse por tudo, revelado nas frequentes perguntas sobre a nossa cidade, nosso Estado, nosso povo, nosso modo de viver, de sentir, de reagir diante da vida”.

“E como estavam sempre festejados em salões faustosos — dos restaurantes elegantes aos salões nobres da Reitoria — achei que deveria mostrar-lhes que Fortaleza não se limitava aos intelectuais, professores e estudantes que o cercavam (diga-se de passagem que o contato que Sartre mais apreciou foi com os alunos da Faculdade de Direito, nos debates que provocou, nas questões que suscitou) que a nossa cidade não era apenas esta quentura humana de gente bem-posta.

O San Pedro Hotel funcionava no Centro de Fortaleza e foi desativado em 1990. Seu prédio abriga a sede do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea-CE)(Foto: Biblioteca IBGE)
Foto: Biblioteca IBGE O San Pedro Hotel funcionava no Centro de Fortaleza e foi desativado em 1990. Seu prédio abriga a sede do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea-CE)

Nas palavras do cronista, “não era lícito esconder que aqui havia miséria, como em toda parte”.

“Quando eram aguardados, num certo fim de tarde, para um coquetel na Reitoria, fui apanhá-los no Hotel San Pedro — e enquanto autoridades os esperavam — governador, secretários de Estado, o mundo oficial e o mundo universitário, achei que não devia negligenciar aquela oportunidade única que poderia abrir forçando a agenda cheia”, evidencia.

Dias não hesitou em fazer descer o carro até a antiga “Cinza” e lá lhes mostrou as “respeitosas” — como eram chamadas as prostitutas: “Lhes falei um pouco do problema da prostituição na nossa terra”.

“Soube depois que no dia seguinte, tendo parte da manhã livre, foram os dois até a Cinza e pessoalmente fizeram pesquisas, indagações e observações.”

Dias acrescenta que “assim era o interesse de ambos pela humanidade em todos os planos. E ainda foram a Canindé, o que lhes deu oportunidade de conhecer um pouco do sertão cearense”.

No O POVO de 19 de junho de 2005, a renomada educadora e historiadora Luiza de Teodoro, uma das fundadoras do departamento de História da UFC, comentou sobre o que lembrava da visita. Ela fez parte do madrigal "O madrigal é um gênero musical vocal secular e também uma forma poética, popular durante o Renascimento (séculos XV-XVI). Como música, é caracterizado por ser para múltiplas vozes, a cappella (sem acompanhamento instrumental), e usar a técnica da "pintura de palavras" para expressar a poesia. Como poema, o madrigal é lírico, geralmente sobre temas amorosos, pastoris ou bucólicos, e estruturalmente curto, com versos alternados de diferentes métricas." que cantou para o casal francês no dia 27 de setembro de 1960, durante a festa preparada pelo reitor Martins Filho.

Estavam presentes intelectuais e professores cearenses, o governador Parsifal Barroso e outras autoridades.

“Só lembro que cantei umas duas músicas e depois saímos. Mais nada. Aliás, lembro também que ele era muito feio”, recordou a professora, que naquela época já tinha contato com a obra do filósofo francês.

No gabinete do reitor, Sartre escreve depoimento sobre visita ao Ceará(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS No gabinete do reitor, Sartre escreve depoimento sobre visita ao Ceará

O livreiro Manoel Raposo narrou o susto que tomou quando viu entrar em sua livraria — a Feira do Livro, no Centro, Floriano Peixoto com Liberato Barroso — o filósofo francês Jean-Paul Sartre e a escritora Simone de Beauvoir.

“Foi tudo muito rápido, porque ele estava com pressa. A visita aconteceu à tarde. Ele muito educado, cumprimentou algumas pessoas e saiu. Troquei com ele algumas palavras com a ajuda de um intérprete que estava na companhia deles. Dizem que ele foi também à livraria Renascença, que pertencia a um livreiro chamado Luiz Maia. Lamento até hoje não ter uma câmera fotográfica para registrar a visita”, descreveu Raposo ao jornal, na época.

Como menciona o professor Paulo Elpídio Menezes Neto, ex-reitor da Universidade e genro de Martins Filho: “tanto tempo decorrido, a memória da visita perdeu-se, salvo registros esparsos”.

A arquivista Marcela Gonçalves é diretora do Memorial da UFC, equipamento cultural que se dedica a preservar e difundir a memória, a história e o patrimônio da Universidade Federal do Ceará e comunidade acadêmica(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS A arquivista Marcela Gonçalves é diretora do Memorial da UFC, equipamento cultural que se dedica a preservar e difundir a memória, a história e o patrimônio da Universidade Federal do Ceará e comunidade acadêmica

Das memórias familiares e institucionais do encontro, Elpídio destaca “a companhia do general José Goes de Campos Barros, secretário de polícia do governo Parsifal Barroso, na visita a alguns municípios próximos a Fortaleza”.

“General Goes era um intelectual com conhecimentos reconhecidos na literatura francesa, presidente da Alliance Française do Ceará”, conta ao O POVO+.

O professor assinala que, “dadas as circunstâncias, a mídia deu pouca cobertura à visita, tanto que poucas fotos existem. Naquele tempo, como hoje, a censura controlava a vida intelectual e política no Ceará e no Brasil. Sartre e Beauvoir deixaram, entretanto, registros valiosos, ainda que breves, sobre sua passagem”.


 

Visita de Sartre e Beauvoir marcou elo entre filosofia francesa e realidade cearense

Desde as décadas de 1940 e 1950, Fortaleza já cultivava um diálogo intenso com a cultura francesa: literatura, teatro, cinema e filosofia atravessavam a universidade, os clubes de leitura e os centros culturais, “influenciando tanto a elite letrada quanto a juventude acadêmica”.

Quem contextualiza é a professora Eliana Sales Paiva, coordenadora do Grupo de Estudos Sartre (GES), do curso de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

A programação oficial do casal, que não se limitou aos salões da Reitoria, deu corpo “à noção existencialista de engajamento: a liberdade não se cumpre no abstrato, mas em situação, diante dos contextos humanos”.

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir

“No plano político, a visita coincidiu com a efervescência do Brasil pré-1964, quando crescia a consciência crítica sobre desigualdade social e democracia”, explica Paiva.

Já na conferência proferida na Associação Cearense de Imprensa (ACI), Sartre abordou o tema da literatura popular, “defendendo que a escrita só adquire sentido quando é coletiva, quando dá voz aos oprimidos”.

Segundo Eliana, essa formulação refletia a tentativa do filósofo de articular existencialismo e marxismo: “de um lado, a liberdade e a responsabilidade individuais; de outro, a crítica às estruturas econômicas”.

Trecho de texto sobre visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir à UFC em 1960 no Boletim da Universidade(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Trecho de texto sobre visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir à UFC em 1960 no Boletim da Universidade

“Suas ideias encontraram forte ressonância em Fortaleza, que, na virada da década de 1950 para 1960, vivia um momento de efervescência cultural: o movimento estudantil se fortalecia, grupos de teatro político surgiam, a imprensa discutia os desafios da modernização e a literatura popular (o cordel, a cantoria e a xilogravura) conquistava novos espaços”, explana.

Nesse contexto, ouvir Sartre defender a literatura engajada e ver Beauvoir atenta às condições sociais do Nordeste representava um elo direto entre a filosofia francesa e a realidade cearense. O impacto não foi apenas circunstancial: deixou marcas duradouras no pensamento intelectual do período.

Paiva lembra que, em Sob o signo da história, capítulo de A força das coisas (1963), Beauvoir relata a viagem ao Brasil como um confronto entre sua reflexão filosófica e a dureza da desigualdade latino-americana.

Na Cidade, pôde observar diretamente aquilo que sustentara em sua obra maior, O segundo sexo (1949): “Não se nasce mulher, torna-se”.

“Ao ver de perto a vida das sertanejas e das moradoras dos bairros periféricos, Beauvoir percebeu que a emancipação não poderia se limitar a uma revolução nos costumes, mas exigia transformações sociais profundas”, demonstra a professora.

Paiva observa que “essa percepção dialoga com a tradição feminista posterior, sobretudo com a crítica interseccional, que articula gênero, classe e território”.

“Já consolidada como autora de O segundo sexo, Beauvoir ampliava o alcance do feminismo existencialista ao confrontar a opressão das mulheres em contexto de miséria estrutural. O impacto de sua leitura foi duplo: reafirmar que a filosofia tem lugar no coração da vida social e evidenciar que gênero e classe são dimensões inseparáveis da opressão.”

Em relação a Sartre, a coordenadora do GES aponta que, anos depois, no ensaio O povo brasileiro sob o fogo cruzado do capital (1973), o filósofo aprofundaria o diagnóstico — “afirmando que a ditadura de 1964 não foi um acidente democrático, mas expressão da aliança entre a burguesia brasileira e o imperialismo”.

Na imagem: Simone de Beauvoir, Oscar Niemeyer, Jean-Paul Sartre, Jorge e James Amado, irmão mais novo de Jorge, em Brasília no ano de 1960(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Na imagem: Simone de Beauvoir, Oscar Niemeyer, Jean-Paul Sartre, Jorge e James Amado, irmão mais novo de Jorge, em Brasília no ano de 1960

Para ele, conforme expõe Eliana Sales Paiva, não existia uma “boa” burguesia e política que mudava de posição conforme seus interesses. “Essa análise ecoava diretamente as observações feitas durante sua estadia no País, incluindo sua passagem pelo Ceará.”

Hoje, na análise dela, essas ideias permanecem atuais: “No campo filosófico, o existencialismo de Sartre segue inspirando reflexões sobre liberdade, responsabilidade e engajamento”.

“No campo político, sua crítica à cumplicidade entre as elites nacionais e o capital internacional continua a ser retomada em análises sobre a democracia brasileira, sobretudo em momentos de crise que revelam a persistência das desigualdades sociais e expõem as rachaduras nas instituições democráticas”, verifica.

“Em outras palavras, ao revisitar Sartre, discutimos não apenas o Brasil dos anos 1960, mas também os dilemas democráticos do nosso presente.”

Paiva acredita que os registros da passagem de Sartre e Beauvoir pelo Ceará permanecem fragmentários: “A imprensa local destacou principalmente recepções oficiais e homenagens, relegando a segundo plano o conteúdo das ideias debatidas”.

“Recuperar esses relatos hoje é um exercício de memória e um gesto filosófico para reinscrever o Ceará no mapa da história intelectual do século XX e evidenciar que, mesmo em registros dispersos, ali se inscreveu um momento singular de encontro entre a filosofia existencialista francesa e a realidade latino-americana, em especial no Nordeste brasileiro de 1960”, finaliza.


 

Como foi a visita de Sartre e Beauvoir ao Brasil?

Entre uma palestra e outra, Sartre e Beauvoir visitaram terreiros de candomblé, boates, igrejas, comunidades indígenas e favelas durante a passagem de dois meses pelo Brasil.

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir na boate Maloca, em Belém do Pará, durante a passagem de dois meses pelo Brasil em 1960(Foto: Osvaldo Coimbra)
Foto: Osvaldo Coimbra Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir na boate Maloca, em Belém do Pará, durante a passagem de dois meses pelo Brasil em 1960

A convite do escritor Jorge Amado e sua esposa, Zélia Gattai, o casal também experimentou iguarias brasileiras como churrasco, feijoada, água de coco e suco de caju. Os filósofos provaram ainda batidas de macarujá, limão e hortelã.

Ao longo de 81 dias, Sartre e Beauvoir foram a mais de 20 cidades em sete estados, além da recém-inaugurada Brasília — estreada em pleno desenvolvimento do governo de Juscelino Kubitschek.

Sartre e Beauvoir na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1960(Foto: Getty Images)
Foto: Getty Images Sartre e Beauvoir na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1960

Foi na companhia do arquiteto Oscar Niemeyer que conheceram a capital federal no dia 22 de setembro, período em que os candidatos Jânio Quadros e Henrique Lott disputavam as eleições presidenciais.

No dia 3 de outubro, Jânio foi eleito presidente com 5,6 milhões de votos — a maior votação até então. Renunciou ao cargo em menos de um ano, em 25 de agosto de 1961.

A agenda política e intelectual dos dois também incluiu um encontro com o escritor Rubem Braga.

Sartre e Beauvoir visitam a Ilha do Bananal, terra do povo indígena Karajá no estado do Tocantins(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Sartre e Beauvoir visitam a Ilha do Bananal, terra do povo indígena Karajá no estado do Tocantins

A primeira e única visita do casal de filósofos ao Brasil inspirou livros como A Passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo Brasil em 1960 (2002), de Luís Antônio Contatori Romano, e Sartre no Brasil — Expectativas e Repercussões (2009), de Rodrigo Davi Almeida.


 

Quem foram Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir

 

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