Na quadra, cadeiras deslizam rapidamente, criando uma coreografia marcada por precisão e harmonia. O som intenso das rodas no piso e o quicar da bola laranja ecoam como uma sinfonia de confiança. Uma certeza, em movimentos, de um ambiente que não busca o título de “lugar de superações”, mas sim reconhecimento pelos resultados esportivos e a potencialização dos novos investimentos recebidos.
Mesmo com apenas um clube profissional funcionando de forma ativa no Estado, o basquete em cadeira de rodas cearense tem se tornado um destaque nacional no paradesporto, especialmente no cenário feminino, no qual três atletas foram recentemente convocadas para o Sul-Americano da modalidade, com mais duas jogadoras sendo frequentemente chamadas nas categorias de base.
Ao O POVO, os treinadores Lídio Andrade, do Fortaleza, e Tony Pulga, da seleção brasileira, discorreram sobre o diferencial técnico das atletas cearenses, comentando também o crescimento do esporte no Estado e a dificuldade para arrecadar investimentos a nível nacional. Jogadoras cearenses da seleção brasileira também relataram o sucesso esportivo, indicando os pontos de melhoria e o que mudou desde que iniciaram no basquete.
No próximo ano, o esporte — que também é referência em reabilitação médica — tende a ganhar novos investimentos, posto que, após 25 anos, o Brasil enfim receberá um Mundial do primeiro paradesporto a ter registros oficiais de sua prática no país.
Marcada para junho de 2025, a Copa do Mundo de Basquete em Cadeira de Rodas, confirmada no dia 25 de setembro pela
O basquete está presente desde a primeira edição dos Jogos Paralímpicos. Mesmo que o Brasil nunca tenha conquistado medalhas e tenha ficado de fora, por pouco, de Paris-2024, o esporte está crescendo no país. O Adesul BCR – que utiliza Adesul BCR/Fortaleza em parte das competições – é o representante cearense nos torneios e costuma voltar com grandes resultados, ainda que dependa de vaquinhas para realizar as viagens.
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A Associação D'Eficiência Superando Limites (Adesul) é um projeto em que o time de basquete (Adesul BCR) é filiado à Confederação Brasileira de Basquete em Cadeira de Rodas, mantendo parcerias frequentes com o Fortaleza Esporte Clube, que fornece equipamentos e uniformes para a disputa de campeonatos.
Além disso, a associação está incluída no projeto de fomento ao paradesporto e modalidades coletivas, incluído na Lei de Incentivo ao Esporte (LIE) do Ceará, de responsabilidade da Secretaria do Esporte do Estado do Ceará (Sesporte), que direciona incentivos fiscais para fomentar projetos de caráter esportivo e paradesportivo, mediante patrocínio e doação de contribuintes do ICMS.
“Eu sempre digo que aqui no nosso país existem dois esportes: o futebol e o restante. Então imagina isso no esporte paralímpico. Mas as coisas estão evoluindo”, declara Lídio, técnico da equipe Fortaleza Basquete Cearense Adesul, para iniciar seu destaque para o apoio ao paradesporto em geral. Para ele, houve aumento no investimento, mas ainda falta bastante para acompanhar o alto potencial da modalidade no Estado.
“O investimento é pouco. A gente ainda tem que ficar correndo atrás. Vamos para uma competição agora em dezembro e eu estou fazendo rifa para pagar passagem de atletas que, hoje, estão na seleção Brasileira. A gente tem uma parceria de investimento da Adesul (Associação D’Eficiência Superando Limites). Por muito tempo, eu trabalhei de graça com basquete, agora a gente consegue lidar, viver um pouco mais”, afirmou.
Embora o sucesso cearense seja inegável, a trajetória até a seleção brasileira não tem sido fácil. Os atletas, ainda que reforcem preferir distância da temática “superação", enfrentam dificuldades financeiras significativas para participarem de competições e manterem suas atividades. A falta de patrocínios altos e apoio público contínuo — embora esteja num momento de crescimento — agrava o cenário.
“É complicado [participar de eventos], a gente vive fazendo rifa para viajar, mas elas são guerreiras, são exemplos e querem estar na seleção. Eu sempre digo que o mais difícil não é entrar, é se manter”, desabafou Lídio, que também é fundador da Associação Desportiva dos Deficientes do Estado do Ceará (Addece), revelando uma frustração que o acompanha no constante esforço de arrecadação de fundos.
Entre as melhorias recentes, que começam a acontecer para a prática do paradesporto, Lídio destaca a valorização dos treinadores que estão presentes em diferentes modalidades. As bolsas, antes destinadas apenas para atletas, agora são voltadas também para os técnicos.
“O técnico abdica de muita coisa para estar ali com os seus atletas treinando e, hoje, a gente tem uma bolsa da Prefeitura. Não é para todo mundo, mas boa parte consegue pleitear, eu faço parte dessa bolsa. As coisas estão melhorando, está tendo mais valorização, mas ainda falta muito”, continuou.
Lídio reforça o trabalho da Adesul, que vem aumentando os investimentos em parceria com o Governo, na implementação de projetos. Entre 2020 e 2023, de acordo com os balanços financeiros da associação, projetos como o Esportes Sem Limites e investimentos direcionados a paradesportos individuais e coletivos têm sido criados.
“A Adesul, da qual faço parte hoje, possui 22 modalidades paralímpicas e, dentro de cada modalidade, nós temos atletas em suas seleções principais, pelo menos um em cada. Precisamos de mais apoio do poder público, do privado também, o pessoal acreditar no esporte. Mas o Ceará tem uma das maiores associações do Brasil. Tem uma grande estrutura de profissionais. Temos fisioterapeutas, psicologia e nutricionista”, completou.
Para Carla Samya, coordenadora do Centro de Referência Paralímpico do Ceará, embora o Estado esteja em um bom caminho, há muito a ser feito para que o Ceará se torne uma referência no paradesporto: “Alguns projetos estão diretamente ligados às associações paradesportivas, mas o ‘Esporte em 3 Tempos’ atende crianças e adolescentes, incluindo os com deficiência. Ainda temos um caminho para trilhar no paradesporto, mas o Ceará está no caminho certo para, a médio prazo, se tornar uma potência no esporte para pessoas com deficiência,”, concluiu.
O “Esporte em 3 tempos”, citado por Carla, trabalha a difusão do esporte nos municípios do Ceará, com valores que visam “a democratização e garantia de acesso, aliadas à formação da cidadania, qualidade de vida, socialização do conhecimento e estímulo à convivência social, contribuindo para o desenvolvimento integral das crianças e dos adolescentes”.
"... a evolução do esporte, do basquete em cadeira de rodas, na região Nordeste é sempre muito produtiva, porque é um volume muito grande de atletas jovens"
A educação e o esporte desempenham papéis cruciais na formação social. Além dos casos de Sobral e outras regiões presentes na competição, a inclusão de pessoas com deficiência no universo esportivo é uma meta importante, estadual e nacionalmente, de grande impacto em diferentes modalidades.
Para Tony Pulga, atual treinador da seleção brasileira de basquete em cadeira de rodas, o desenvolvimento segue um fluxo diferente, mas importante, no Nordeste. “Nós sabemos que existem diferenças de investimentos governamentais em determinadas áreas e regiões. Isso realmente é o que, às vezes, complica um pouco em determinadas situações. Mas a evolução do esporte, do basquete em cadeira de rodas na região Nordeste, ela é sempre muito produtiva, porque é um volume muito grande de atletas jovens. No feminino, a [jogadora] mais jovem vem do Ceará”, conta.
Pulga, treinou o time brasileiro no Sul-Americano da modalidade, disputado em Lima (Peru), no qual conquistaram a medalha de prata — garantindo vaga na Copa América. O técnico enxerga o Ceará e o Nordeste como um celeiro de muitos atletas, não só de sua área, mas na formação de atletas paralímpicos como um todo.
"Os nordestinos são atletas muito determinados, que tiveram como a maior evolução, nos últimos anos, exatamente seu maior investimento no esporte paralímpico, a modernidade nas academias, o investimento propriamente dito em equipamentos, e isso fez crescer, já que tinha muito material humano", opina.
A expectativa do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), segundo relatado ao O POVO, é que a seleção brasileira conquiste medalhas dentro dos próximos três Jogos, tanto no feminino, no qual ganhou bronze nos Jogos Pan-Americanos de 2019, quanto no masculino.
Destaque em convocações à seleção brasileira, o Adesul Fortaleza BC vem acumulando boas participações em torneios nacionais, em especial com a equipe feminina. No início de setembro, o clube conquistou a 3ª colocação no Campeonato Brasileiro Feminino de Basquete em Cadeira de Rodas 2024. Ao todo, são quatro atletas que vêm vestindo a amarelinha da seleção brasileira principal com frequência, além das que integram as categorias de base.
O trio Ana Kelvia, Oara Ochoa e Lia Santos defende a seleção desde que o esporte começou a se profissionalizar no Estado, com ouro conquistado na amarelinha já em 2021, no Sul-Americano daquele ano. Ao O POVO, Kelvia e Oara destacaram o surgimento de uma nova leva de atletas com potencial paralímpico e contaram suas visões sobre o basquete em cadeira de rodas no Ceará.
A ala Ana Kélvia, aos 30 anos, pratica o esporte desde 2014 e carrega o mesmo sonho de suas colegas de disputar uma Paralimpíada. Pela experiência internacional, Kelvia já conhece bem as dificuldades que cercam o esporte paralímpico. Sabendo ser inspiração para as mais jovens —as quais rasgou elogios —, a paratleta não hesitou em tecer críticas sobre a infraestrutura e apoios que recebem.
"O cenário é precário, pois os lugares em que treinamos poderiam, sim, ser melhores, tanto as quadras quanto o acesso até elas", reflete.
Contudo, reconhece que a prática esportiva mudou sua vida: "O esporte me fez voltar a viver novamente, trouxe a minha independência".
Ana sofreu uma lesão medular em 2007, após um disparo de arma de fogo. O esporte paralímpico surgiu em sua reabilitação — assim como ocorreu com diversos paratletas — e lhe encantou desde o primeiro momento.
Oara Uchoa, por sua vez, também se tornou um espelho para os novos atletas. Ela lembra que sua paixão pelo esporte também começou com uma referência. Quando era criança, a versátil ala-pivô já sonhava em vestir a amarelinha, mas a do futebol, e tinha Marta, jogadora brasileira seis vezes melhor do mundo, como sua referência. Hoje, Oara é quem tenta se tornar referência, também pela seleção canarinho, mas na quadra, com a bola laranja.
"Vestir a camisa da seleção é uma sensação muito emocionante, e sempre vai parecer a primeira vez. Levo muita bagagem; experiência mental e física. Retornei ao Brasil e apliquei tudo no treino com minhas companheiras de equipe, sempre passando o melhor que sei", conta com orgulho.
Na infância, Oara já jogava no meio dos garotos. Hoje, além do destaque no cenário feminino, também disputa torneios pelo time masculino da Adesul, posto que as competições costumam permitir até duas mulheres na equipe. Normalmente, o treinador Lídio leva Oara e Lia.
Oara diz ter reencontrado, no esporte, sua felicidade. Após o osteosarcoma, ficou dois anos fora da escola por conta do tratamento. Depois, mais dois anos insegura com os julgamentos de outros alunos.
Antes do basquete, Oara conheceu a natação e também foi destaque. Com apenas dois meses de prática, foi medalha de ouro no revezamento 4x50m, prata nos 50m livres e bronze nos 100m livres do Cearense.
Sobre os novos investimentos no basquete adaptado no Estado, Oara comentou: "Estamos caminhando e fomentando a modalidade no Estado para que isso aconteça um dia da maneira que merecemos. Não só no Ceará. No Brasil, o esporte paralímpico, em especial o basquete, vem evoluindo com entrega de materiais de trabalho como cadeira de jogos, rodas, cintos e, muitas das vezes, ajuda de custo".
Ainda assim, ela enxerga o futuro com cautela, sabendo que a luta por mais visibilidade ainda é constante: "Enxergo que, com mais visibilidade, iremos fazer mais pela representação do Estado".
Apesar dos recentes resultados históricos, o paradesporto no país ainda é um tema de pouco reconhecimento e investimentos se comparado ao seu potencial social, especialmente fora das capitais e grandes cidades brasileiras. Em contato com O POVO, Lídio Andrade comentou que, ainda que veja de perto o crescimento, ainda avalia o investimento fora da Capital como muito baixo.
“Hoje, com a Adesul, a gente tá conseguindo chegar em algumas cidades, como Sobral, Juazeiro (do Norte) e Maracanaú, mas ainda é muito pequeno frente ao que temos aqui em Fortaleza, que tem o projeto Esportes Sem Limites (este que não abrange o basquete, mas outras modalidades), da Prefeitura, em parceria com a Adesul, que desenvolve várias modalidades paralímpicas. A tendência é que as outras cidades possam copiar os projetos, mas é um investimento ainda muito pequeno”, afirma Lídio.
Para Carla Samya, o paradesporto do Ceará vive um cenário em consolidação, por isso, descreve como algo natural o crescimento também fora da Capital.
“O paradesporto do Ceará está se consolidando no Brasil com diversos paratletas que representam nosso estado em várias competições. As principais ações são a implantação do Centro de Referência Paralímpico e possíveis ampliações, formações e cursos direcionados ao movimento paralímpico; festival paralímpico nas Regiões Metropolitanas e no Interior, além da bolsa atleta e bolsa rendimento”, disse Carla.
“A Adesul trabalha com esse processo de observação e captação não somente em eventos competitivos como o Parasesc, mas também por ações externas. A gente vai nas escolas, vai nas instituições, vai em hospitais, vai em todos os locais para tentar fazer essa captação de novos atletas”, destaca.
Para se ter ideia do crescimento do paradesporto no país, o Brasil alcançou a melhor marca de sua história nas Paralimpíadas de Paris 2024. Pela primeira vez, a delegação encerrou uma edição dos Jogos entre as cinco maiores potências do mundo. Com direito a recordes históricos, conquistou 89 medalhas no total, sendo 25 de ouro.
No Ceará, o avanço não tem ficado para trás. O Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) realizou uma vistoria nos equipamentos de paradesporto no território alencarino e definiu, em fala exclusiva à reportagem, como “uma situação de grande evolução, percebida desde a primeira visita, em abril deste ano”, garantindo que “o trabalho vem sendo muito bem executado, desde a captação de atletas até a entrega de resultados”, ainda que sejam identificadas carências que precisam melhorar, com a expansão de projetos fora da capital.
O comitê confirmou a avaliação de que a projeção é se tornar uma potência até a disputa na China, em 2030, buscando um quadro de medalhas ainda mais marcante. Como destaque, o Time Brasil apontou que o Ceará vai bem no trabalho de base, em especial o de basquete em cadeira de rodas, que já tem quatro jovens cearenses na seleção brasileira principal, além de mais três nas categorias de base.
Além disso, o Ceará tem alguns nomes consolidados no nível mais elevado das competições de alto rendimento do paradesporto mundial. Nos Jogos Paralímpicos de Paris, a título de comparação, quatro atletas representaram a bandeira do Estado nos mais diversos palcos de disputa da Capital francesa.