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"Nossa vida, roubada de nós": o abandono e alastramento de uma fumaça que se aproxima
Reportagem Seriada

"Nossa vida, roubada de nós": o abandono e alastramento de uma fumaça que se aproxima

Céu escuro e fumaça intensa. Eis o relato corre o país nos últimos meses. Queimadas da Amazônia afetam o Brasil e o mundo inteiro
Episódio 1

"Nossa vida, roubada de nós": o abandono e alastramento de uma fumaça que se aproxima

Céu escuro e fumaça intensa. Eis o relato corre o país nos últimos meses. Queimadas da Amazônia afetam o Brasil e o mundo inteiro
Episódio 1
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A cientista e ambientalista Ana Lúcia Tourinho define os últimos três meses na cidade de Sinop, no meio norte do Mato Grosso, como um “inferno”. A descrição se refere não apenas aos relatos de náuseas, dores de cabeça, alergias, eczema, tontura, e até desmaios que ela e os alunos vivenciam todos os dias, mas ao próprio cenário. Rodeados de Amazônia e Cerrado em chamas, eles olham para cima e encontram céu escuro e fumaça impregnante.

Dois anos após o fim oficial da pandemia de Covid-19, a professora de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) relata “semanas e mais semanas, que as pessoas passam em casa, fechadas”. “Nossa vida sendo roubada de nós. Trancados em casa passando mal, sem poder sair, ou mesmo deitar na rede na nossa varanda por mais de quatro- cinco meses. [Será assim] enquanto a seca durar e a fumaça também”, diz.

Aos que não seguem a quarentena, o sentimento de Ana é o de “angústia”. Segundo a percepção dela, alguns “aceitaram que o normal no Norte é fumaça”, mas outros não estariam sequer cientes dos efeitos do ar contaminado. “Seguem praticando esportes aspirando fumaças nas praças, pais e mães com as crianças, os bares nas calçadas, abertos, cheios. Sem saber que respiram morte”, afirma.

 

A realidade de Sinop não é isolada. Fumaça e céu escuro cobrem, há meses, estados da Região Norte, como Amazonas, Acre, Rondônia e Pará, além da região Centro-Oeste como o próprio Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

"As queimadas este ano começaram muito mais cedo", diz Karla Longo, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), nas áreas de qualidade do ar e fumaças. Ela aponta o mês de julho como marco do aumento das fumaças, que se estenderam pelos dois meses seguintes.

No fim de agosto, fumaça também pôde ser vista em Goiás, no Distrito Federal, além de estados no Sudeste e no Sul, como São Paulo, Minas Gerais, o oeste do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em Brasília, o sol brilhou vermelho e uma névoa escura circulou prédios como o do Congresso Nacional. No meio de setembro, escolas foram autorizadas a suspender aulas presenciais na capital brasileira.

Brasília, em 25 de agosto, amanheceu encoberta por fumaça de queimadas (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Brasília, em 25 de agosto, amanheceu encoberta por fumaça de queimadas

O famoso pôr do sol de Fortaleza, no Ceará, contou com uma coloração dividida entre o azul e um tom de cinza, no fim de agosto. O mesmo fenômeno foi testemunhado por moradores da Região Metropolitana, em cidades como Horizonte, Pacajus e Maracanaú.

Os relatos e os registros alastram-se pelo Brasil, testemunhas do fogo e da fumaça. O POVO coletou alguns, do Pará, Mato Grosso, Distrito Federal, São Paulo e Ceará.

 

Passe o mouse pelos pontos vermelhos e leia relatos da fumaça e do fogo pelo Brasil

A forte fumaça afeta a qualidade do ar no território brasileiro. Um dos aparelhos de monitoramento deste índice é o Sistema Eletrônico de Vigilância Ambiental (Selva), idealizado na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). O foco inicial do projeto era a medição no território amazônico, mas hoje, o mapa já mede a qualidade do ar em centenas de pontos do Brasil e de outros países da América do Sul.

A qualidade do ar é classificada em categorias, conforme a concentração de MP2.5 (µg/m3), um tipo de poluente atmosférico inalável. Para se ter noção, são considerados “péssimos” índices acima de 160 PM2.5. Na terça-feira, 24 de setembro, diversos pontos do Mato Grosso, ultrapassavam o marco de 3000 PM2.5. Um deles, Sinop, cidade de Ana Tourinho.

Os pontos “roxos” - equivalentes à categoria ‘péssimo’ - preenchem quase todo o território do Mato Grosso. Em Rondônia, três pontos com mais de 170 PM2.5 aglomeram-se na capital Porto Velho e outros três na divisa com a Bolívia. Níveis péssimos de qualidade de ar também aparecem em cidades do Acre, do Amazonas e de Mato Grosso do Sul.

 

Ou seja, os piores índices de qualidade do ar acumulam-se na região Norte e em uma parte do Centro-Oeste, no bioma Amazônico. Os estados são os mesmos com os maiores focos de fogo identificados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

No mesmo recorte (de 23 a 24 de setembro), foram identificados no Pará 334 focos de fogo, mesmo montante do Tocantins. Na sequência, o Acre amucula 315 F. A tendência no Norte e Centro-Oeste também se encontra no recorte de janeiro a setembro de 2024. O Mato Grosso acumulou 44.142 focos de fogo, o Pará, 35.468 F; e o Amazonas, 21.363 F.

 

Focos de fogo no Brasil, de 01 de janeiro a 24 de setembro de 2024

Apesar dos focos de fogo espalhados pelo país, em imagens de satélite é possível ver a fumaça se dispersando a partir da Amazônia. Em um intervalo de uma semana, a fumaça se alastra da Região Norte e parte da Bolívia e alcança o Centro-Oeste, o Sul e o Sudeste do Brasil. Países como o Paraguai são cobertos em sua totalidade por uma mancha vermelha, que simboliza altos níveis de emissões.

O monitoramento é disponibilizado pelo Copernicus Atmosphere Monitoring Service (Cams). Os focos vermelhos representam níveis mais graves de profundidade óptica do aerossol (AOD) a 550 nanômetros (nm), ou seja, maiores concentrações de aerossóis espalhados ou absorvidos na atmosfera.

 

Clique no mapa e veja o prologamento da fumaça na semana de 23 a 27 de setembro de 2024

 

No mapa-mundi, o Cams revela focos amarelos em áreas como a Índia, assim como países do Sudoeste da África e ilhas no Sul da Ásia. No entanto, o foco é na América do Sul, que se destaca como uma grande mancha vermelha no centro da representação cartográfica.

Conforme Karla Longo, as queimadas na Amazônia já são mais intensas devido à vegetação local, de troncos grossos de madeira, que, se queimados, jogam uma quantidade maior de fumaça a altos níveis na atmosfera. Somado a isso, há o fator da localização geográfica do bioma. A fumaça da Amazônia sofre influência dos ventos alísios, que vêm do sudeste e a empurram em direção ao oeste, onde está a cordilheira dos Andes.

"A coordilheira funciona como uma barreira e a fumaça desce para o sul. Mais abaixo, a fumaça encontra uma frente fria, que a desvia e ela passa a ir para o Atlântico. Na região Sul e Sudeste do Brasil, o nível de fumaça depende da posição desta frente fria. Ela varia. Já barreira dos Andes é fixa, a fumaça produzida no Pará e no Amazonas afetará muito lá", explica a pesquisadora.

 

Fumaça na Amazônia a transforma em uma mancha vermelha no mapa-mundi

Fumaça transforma o Brasil em uma grande mancha vermelha em representação cartográfica de 22 a 23 de setembro(Foto: Copernicus Atmosphere Monitoring Service (Cams).)
Foto: Copernicus Atmosphere Monitoring Service (Cams). Fumaça transforma o Brasil em uma grande mancha vermelha em representação cartográfica de 22 a 23 de setembro

O cenário ocorre em um ano com as temperaturas mais altas registradas. Conforme explica o climatologista Carlos Nobre, um dos cientistas brasileiros mais conhecidos mundialmente, principalmente pelos estudos sobre aquecimento global, o planeta está 1,5º mais quente do que o registrado entre 1850-1900, início da Revolução Industrial. A realidade consiste em 0,2º a mais do que o projetado para 2023.

“A ciência ainda está buscando explicação para isso”, diz Carlos Nobre. “Se acreditava que poderíamos atingir 1,5º, permanentemente, lá para 2033. Já a primeira vez que se previa que poderia atingir o índice seria em 2028, mas não, atingimos em 2023 e seguimos em 1,5º neste ano.”

A elevação da temperatura leva diretamente ao aumento dos chamados eventos extremos, que incluem ondas de calor, secas, chuvas muito fortes, fogo na vegetação, dentre outros. A expansão, neste caso, ocorre de forma exponencial. “O número de eventos extremos, em 1,5º, é mais que o dobro do que o número de eventos quando estávamos 1º acima”, explica o cientista.

Carlos Nobre, cientista brasileiro(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Carlos Nobre, cientista brasileiro

A situação climática provocou um aumento nos focos de fogo em várias partes do mundo. No Canadá, incêndios florestais tornaram o país o quarto maior emissor de CO² do planeta em 2023. Segundo Carlos Nobre, o motivo foram descargas elétricas, que “sempre em milhões e milhões de anos foram as causas de incêndio”.

No entanto, o caso do Brasil é diferente. As mudanças climáticas provocaram uma intensificação das secas em diversos biomas, dentre eles o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia. O período seco estimula a proliferação do fogo pelo território, mas a origem, neste caso, é humana. “A vegetação fica muito mais inflamável, a área queimada aumenta. O total da área tem sim a ver com seca e onda de calor, mas quem iniciou o fogo, praticamente todos foram humanos”, informa Carlos Nobre.

Há particularidades dos biomas. A ecologista do fogo, Isabel Schmidt, da Universidade Federal de Brasília, explica que cada sistema tem suas próprias relações com o fogo. A caatinga, mata atlântica e amazônia contam com vegetações nas quais o fogo não se alastra com facilidade e, portanto, não é um fator que influenciou na evolução das plantas locais.

Isabel Schmidt, professora do Departamento de Ecologia e do Programa de Pós-Graduação em Ecologia na Universidade de Brasília(Foto: Isabel Schmidt/Arquivo Pessoal)
Foto: Isabel Schmidt/Arquivo Pessoal Isabel Schmidt, professora do Departamento de Ecologia e do Programa de Pós-Graduação em Ecologia na Universidade de Brasília

Já no Pampa, Cerrado e Pantanal, a vegetação de gramíneas pode estar seca em períodos não chuvosos, o que leva a um alastramento maior. Assim, as plantas desenvolveram mecanismos para atenuar as queimadas, como cascas grossas e frutos ditos lenhosos, que produzem madeira, utilizada como tecido de suporte para os caules.

A ação humana ultrapassa tudo isso. Mesmo que naturalmente úmida ou com mecanismos de proteção, o fogo pode se alastrar se provocado incessantemente em uma vegetação desmatada. “Não é mais aquela floresta úmida, que impedia naturalmente o fogo. É uma floresta degradada, que tem tronco caído, capim exótica invadindo. Está muito mais simples de ser inflamada e por isso a gente tá tendo muito mais incêndio”, diz Isabel sobre o bioma Amazônico.

Os impactos na Amazônia, em especial, mas também no Cerrado provocaram o cenário de fumaças em diversas cidades no Brasil devido aos chamados “rios voadores”, correntes de ar que transportam vapor d’água do Norte para o Sul e o Sudeste do Brasil. Em um contexto de queimadas, a corrente arrasta a fumaça e a fuligem, que cobrem o céu das cidades brasileiras e são respirados pela população.

 

 

Exposição prolongada à fumaça pode provocar doenças respiratórias e câncer

As fumaças podem conter gases tóxicos como monóxido de carbono, dióxido de enxofre, metais pesados, solventes, além de partículas finas inaladas pelos pulmões. De acordo com a pneumologista Isaura Espínola, do Hospital De Messejana, em Fortaleza, todos estes materiais agravam doenças respiratórias e influenciam o surgimento de outras.

“Acaba piorando os sintomas de asma, rinite, sinusite e enfisema e acaba. Em pessoas que não tenham essas doenças, a inalação vai causar irritação das vias respiratórias e levam à tosse, falta de ar, além de sintomas oculares, irritação dos olhos, na pele e sintomas gastrointestinais”, disse a médica, que ainda pontuou possibilidades de câncer devido a exposições frequentes à fumaça: “Principalmente de pulmão, porque atinge as vias aéreas, respiratórias.”

Como forma de proteção, ela reforçou o uso de máscaras, a limpeza do ambiente e a distância de ambientes contaminados com fumaça.

 

Confira abaixo formas de atenuar os efeitos de exposição a fumaças

As técnicas de prevenção são limitadas para alguns grupos. Pessoas mais pobres sofrem mais com mudanças climáticas, devido a condições precárias nas quais, muitas vezes, vivem. “As pessoas que já vivem em uma situação de pouca higiene, saneamento, não tem casas cobertas, ou vivem em áreas de risco se expõem mais”, explica Isaura.

Somado a isso, em cidades do Norte e Centro-Oeste a exposição à fumaça ocorre o tempo todo. Não há ambiente com menos fumaça para onde fugir. Ana Tourinho, do início da reportagem, relata que os casos de alergias e as idas a hospitais são constantes.

Ana fala da poluição como algo constante, ano após ano, governo após governo. Ela cita o Governo Bolsonaro como de “negacionistas, mentiras e fake news” e, ainda que o presidente Lula tenha outro perfil ela afirma que em relação ao “abuso do agro, crimes ambientais, violências contra pessoas, comunidades, fumaça e impunidade não mudou nada. a realidade das pessoas no dia-dia-dia aqui no Norte é a mesma coisa”.

Na região, a sensação é de abandono e negligência. “Os políticos, todos, só foram comentar sobre o ocorrido quando a fumaça e o fogo coordenado e criminoso idêntico ao que ocorre aqui chegou a São Paulo, em Ribeirão Preto. [..] O norte segue abandonado para queimar e morrer sufocado, meses a fio, como se nem existisse, mídia, governo, influencers de costas sem dar um pio, fingindo que não estão vendo a dor do Norte”, diz Ana Tourinho.

 

 

As expectativas de futuro em um Brasil queimado

A previsão é de que a fumaça, nos próximos dias, alcance pontos mais ao sudeste do Brasil. Ainda conforme o Copernicus Atmosphere Monitoring Service (Cams), na sexta-feira, 27, a fumaça deve cobrir todo o Estado do Paraná. No sábado, chega a partes de São Paulo e Rio de Janeiro. No domingo, uma mancha vermelha cobre o sul de Minas Gerais.

"As fumaças entram na circulação global do planeta", diz Karla Longo, do Inpe. "Uma queimada é algo gigantesco, a fumaça sobe mais do que um avião, 3 mil pés. Ela pode atingir 5, 6 km de altura. Para se ter noção, até 3 km, ela pode permanecer uma semana na atmosfera. O impacto é global."

 

Clique no mapa e veja a previsão de alastramento da fumaça até 30/09

 

As queimadas, causadoras da fumaça, devem seguir presentes devido a uma não perspectiva de diminuição da temperatura do planeta. A tendência, segundo Carlos Nobre é de que os eventos climáticos persistam.

Segundo ele, as emissões de carbono precisam cessar imediatamente e, por meio da restauração florestal, uma grande quantidade de gás precisa ser retirada da atmosfera. Caso contrário, o cientista estima que o planeta poderá chegar ao índice de 2,5º até o ano de 2050, provocando uma série de “pontos de não retorno”.

“Um destes é a perda da Amazônia, o solo da Sibéria derretendo. Tudo isso são riscos enormes. Se continuarmos nesta linha, podemos chegar ao fim do século com 3, 4 graus. A ponto de você estar aí em Fortaleza, os seus bisnetos não vão mais sair. O clima fica inabitável para o corpo humano”, diz o cientista.

Região sofre com intensificação de queimadas e estiagem desde meados de agosto(Foto: Mayangdi Inzaulgarat/Ibama)
Foto: Mayangdi Inzaulgarat/Ibama Região sofre com intensificação de queimadas e estiagem desde meados de agosto

Isabel Schmidt volta os olhos para a atuação do Governo Federal, que deve investir na pauta ambiental não apenas de maneira reativa, mas preventiva. “Quem é que vai prevenir que tragédias aconteçam? Quem vai acreditar quando alguém falar ‘aqui tem um risco ambiental’? A gente precisa lidar mais e levar a sério. O Governo em geral precisa entender que meio ambiente não é um gasto é um investimento.”

Ana Tourinho, ainda que envolta dos efeitos constantes da poluição, acredita em um recuo, também citando medidas de prevenção e punição de culpados. “A fiscalização prévia é essencial, e especialmente a polícia precisa estar incluída, é preciso haver investigação, que os criminosos sejam autuados, que as multas sejam vultosas. Esta situação nunca foi tratada com a seriedade e com a firmeza que sempre foi necessária”, diz ela.

Já Karla Longo acredita que a dicussão sobre a propagação das fumaças pode provocar uma percepção sobre o problema, em pessoas do Brasil inteiro. "A população da região norte ela sofre com as queimadas já há muito tempo. Vivem situações bastante dramáticas, existem vários estudos epidemiológicos que mostram o adoecimento de pessoas durante essa época do ano, principalmente crianças e idosos. Então é bom que que a população em geral têm essa percepção."

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