O Ceará já emplacou dois ex-governadores como ministros da Educação, Cid Gomes, em 2015, e Camilo Santana, em 2023. Camilo, aliás, levou a também ex-governadora Izolda Cela para ser sua secretária-executiva. No governo Elmano, o Estado tem sido laboratório para a implementação de novos programas e projetos voltados para a educação e receberá o primeiro campus do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) fora de São Paulo.
Por aqui, há seis municípios entre os 10 com maiores notas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2023 na categoria de anos iniciais do ensino fundamental, do 1º ao 5º ano. Já do 6º ao 9º, nos anos finais, sete municípios cearenses estão entre as melhores taxas do Brasil.
Pires Ferreira, na microrregião de Ipu, é a cidade com maior nota do Ideb do País nos anos iniciais do Ensino Fundamental. O município de 10.606 habitantes cravou a nota 10, a máxima do índice.
Veja no mapa a pontuação de cada município no Ideb.
Mas o sistema público de ensino não foi sempre foi assim. Os atuais resultados do Ceará são frutos de mais de três décadas de políticas públicas e, claro, do trabalho de professoras e professores que levam para a sala de aula a ação que, verdadeiramente, gera resultados.
A partir de hoje, O POVO+ te convida a voltar aos tempos de escola e entender o percurso das mudanças da educação do Ceará e quais os impactos que elas tiveram na vida de milhares de professores e estudantes.
Neste primeiro episódio, vamos dar um mergulho na história do Ceará. Dos coronéis da Ditadura à democracia moderna, entenda como as decisões políticas ao longo das décadas levaram o Ceará de recordista em analfabetismo à referência internacional em educação pública.
Quem hoje vê a pluralidade de pensamentos no cenário político cearense nem imagina como as coisas eram nos anos 1960. O cenário não era de polarização, afinal, quem não estivesse aderente à hegemonia, era inimigo público e declarado.
A sobrevivência, e não estamos falando só da vida pública, dependia do quanto você concordava com o status-quo. E concordar com o sistema, era aderir ao que mandava o coronel. Para o professor de história da rede estadual e mestre em história do Ceará pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) Roberto Araújo, algumas particularidades históricas não podem ser desconsideradas quando da análise de seus ciclos políticos.
Uma delas seria a colonização tardia em relação ao restante do Nordeste, e que também se deu "em sentido inverso", pois enquanto em estados como Pernambuco e na Bahia, o movimento foi do litoral para o sertão, no Ceará, foi o caminho contrário, indo do sertão para o litoral.
"Se o Brasil é um país do capitalismo tardio, periférico, o Ceará, dentro do Brasil, vai ter essas características", defende. "E isso ajudou a criar uma marca própria nas nossas relações sociais, uma marca própria nas nossas relações sociais, uma cultura política autoritária, vocalista e fragmentada".
Autoritarismo e fragmentação, duas características intrínsecas à era dos coronéis, - Virgílio Távora, César Cals e Adauto Bezerra - que representou para o Ceará um período de péssimos indicadores sociais. Reflexo da política estabelecida pelo governo militar, o Estado chegou a registrar uma taxa de reprovação de mais de 17% nos anos 1970.
Os três
Foi governador do Ceará de 1963 a 1966 e de 1979 a 1982
Foi governador do Ceará de 1971 a 1975 e senador de 1979 a 1987
Foi governador do Ceará de 1975 a 1978 e vice-governador de 1983 a 1987
Não que interesasse muito a um governo ditatorial educar o povo e lhes dar ferramentas para entender que viviam sob vigilância, mas junto à saúde e segurança social, educação sempre foi uma pauta pela qual grupos estiveram dispostos a lutar.
Então, nesse cenário, uma das tentativas impositivas de contornar a crise educacional, à época, foi a contratação imediata de professores sem a realização de concurso público. A medida, implantada pelo então governador Virgílio Távora até aumentou o efetivo de servidores, mas não foi suficiente para alterar os índices de analfabetismo, evasão e reprovação.
O cenário só começou a se transformar no “governo das mudanças”. É assim que, até hoje, muita gente se refere à gestão do tucano Tasso Jereissati. Encabeçando o movimento político-econômico do “mudancismo”, Tasso quebrou o ciclo de coronéis em meados da década de 1980, ao derrotar o Coronel Adauto Bezerra, que à época ocupava a vice-governadoria na gestão Gonzaga Mota. O fim do ciclo dos coronéis coincidiu, também, com o fim da ditadura.
A redemocratização trouxe para o Ceará reformas administrativas, fiscais, de saúde, de infraestrutura, privatizações e, especialmente, reformas educacionais entre os anos de 1995 e 2000.
Estereotipado enquanto um lugar árido e pobre, durante a fase do mudancismo o Ceará viveu uma fase de industrialização, com a instalação de mais de 400 empresas entre 1991 e 1999. Essa industrialização contribuiu para o crescimento econômico do Estado, que superou a média nacional durante esse período.
O historiador e professor dos programas de pós-gradução em Sociologia e em Políticas Públicas da Uece, Alexandre Barbalho, explica que o movimento também trouxe um contexto econômico e político favorável, incluindo a estabilização das finanças do Estado. Isso resultou em uma maior credibilidade das instituições cearenses, o que facilitou a atração de investimentos e a implementação de políticas públicas.
Para o pesquisador, os governos seguintes - de Ciro Gomes, Lúcio Alcântara e Cid Gomes - também carregaram a ideologia do “mudancismo”.
“A força do discurso que sustenta o grupo em todo esses anos é o da “modernização” da administração pública, do fim do clientelismo e da superação dos baixos índices socioeconômicos no estado"
A gestão Jereissati ficou conhecida com "governo das mudanças"
Durante o período de 1995 a 2000, no segundo mandato de Jereissati, a Secretaria da Educação ficou sob a responsabilidade do sociólogo, mestre em Planejamento Educacional e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Antenor Naspolini. “No segundo mandato do Tasso, ele me convidou para o cargo de secretário da educação. Respondi a ele: ‘não sou seu amigo (não era na época), não sou cearense e não tenho filiação partidária’. Tasso respondeu então: "É por isso que o convidei”, contou Naspolini em entrevista à colunista Estela Benetti.
Ele foi o responsável pelas primeiras mudanças significativas na estrutura educacional do Estado. A reforma da educação básica foi um dos pilares da segunda fase do mudancismo, com foco na melhoria da qualidade do ensino e na inclusão social. A principal meta era democratizar a escola, garantindo vagas para todas as crianças.
“Se tem criança de 7 a 14 anos que não está na escola, alguém tem que estar na cadeia. Então, precisávamos ter a educação como prioridade, inclusive com orçamento garantido. O dinheiro da educação precisava ser sagrado”, completou o ex-secretário.
Outra decisão foi a de normatizar as faixas etárias do ensino público. O Ceará foi o primeiro estado brasileiro a municipalizar toda a educação básica. Todas as crianças de 0 a 6 anos e estudantes de primeira à quarta série passaram a ser uma responsabilidade dos municípios.
Também houve uma mudança na carreira do magistério. A decisão foi de formar e qualificar professores e só admitir novos professores por meio de concurso público unificado, com valorização da carreira do magistério. O percentual de estudantes em sala de aula era de 78% e subiu para 98%.
Com essas medidas, em cinco anos, o Ceará alcançou a universalização do acesso ao ensino fundamental para crianças e adolescentes de 7 a 14 anos, com uma taxa de matrícula de 98%. Além disso, 92% da população de 15 a 17 anos estava matriculada na escola, com 27% no ensino médio.
Houve ainda uma redução significativa no índice de abandono escolar no ensino fundamental, que caiu de 13,2% em 1995 para 10,5% em 1999.
Como forma de combater o analfabetismo e a baixa taxa de escolaridade da população que não teve acesso à educação formal na idade apropriada, o governo também investiu na expansão da Educação de Jovens e Adultos. Entre 1996 e 2000, a modalidade cresceu 232,69% nas matrículas.
A política educacional também focou na inclusão social, promovendo o atendimento integrado de crianças com necessidades especiais nas escolas públicas e a regularização das escolas indígenas.
E a democratização da escola pública foi promovida através da implantação de Conselhos Escolares em todas as escolas estaduais e a realização de eleições para diretores, fortalecendo a gestão democrática e a participação da comunidade escolar.
O ditado popular é certeiro ao afirmar que "uma andorinha só não faz verão". A educação cearense é um exemplo claro de que a continuidade de políticas públicas é fundamental para alcançar resultados duradouros. É o que pontua Cláudio Frischtak, doutor em Economia pela Universidade de Stanford. Com mais de 30 anos de acompanhamento, ele destaca a raridade dessa prática no Brasil.
Frischtak afirma que foi no início dos anos 1990 seu primeiro contato com o Ceará, “quando estive numa reunião do Pacto de Cooperação, uma iniciativa da sociedade civil com o Governo para troca de experiências e informações visando levar prosperidade ao Estado”.
Ele acrescentou que neste período de pouco mais das últimas três décadas, o Ceará alcançou um “admirável grau de continuidade de políticas responsáveis, o que não é tão comum no Brasil”.
A reforma educacional realizada nos governos da década de 1990 foram importantes, mas foi uma experiência sobralense que chamou a atenção do País.
Ao final dos anos 2000, o município de Sobral, no Ceará, era um dos muitos que enfrentava um grave problema de analfabetismo na rede pública de ensino. Indicadores apontavam que mais de 40% das crianças com oito anos terminavam a segunda série sem saber ler.
Para contornar este problema, a administração municipal apostou em um plano de gestão educacional, com foco na erradicação do analfabetismo, na diminuição da evasão escolar, na valorização do professor e no processo seletivo dos diretores das escolas.
À época, Cid Gomes era o prefeito recém-eleito, e apresentou um plano de gestão com duas metas muito claras. A primeira era alfabetizar todas as crianças até os sete anos. A segunda era a alfabetização das crianças que já haviam passado da idade de alfabetização e cursavam séries mais avançadas, mesmo sem dominar a leitura e a escrita.
Prefeito de Sobral de 1997 a 2005, se elegeu governador do Ceará em 2006, quando exapandiu a política educacional
A metodologia de avaliação externa da aprendizagem foi desenhada e implementada pelo educador Edgar Linhares
Para garantir os resultados esperados, a Secretaria Municipal de Educação de Sobral passou a intervir de forma sistêmica em todas as dimensões na rede educacional do município. Uma das pessoas-chave no processo foi o professor da Universidade Federal do Ceará e presidente do Conselho Estadual de Educação (CEE), Edgar Linhares.
"Meu pai era um educador, foi responsável por criar o plano educacional de Sobral, que se tornou um grande sucesso nacional. Hoje em dia há vários 'pais' desse modelo, mas o verdadeiro responsável foi ele", relembra Paulo Linhares, ex-secretário de Cultura e presidente do Instituto Dragão do Mar de 2012 a 2021.
O papel de Edgar Linhares foi fundamental na construção do plano de alfabetização sobralense. Foi a partir da experiência do educador na Espanha que ele desenvolveu o modelo de avalição externa que permitiu o desenvolvimento do programa de alfabetização.
Os estudos propostos por Linhares descobriram que o desempenho de cada aluno estava relacionado à quantidade de livros lidos: aqueles que haviam lido mais de 50 livros estavam sempre no topo de todas as disciplinas.
A partir do diagnóstico, as estratégias da política de alfabetização se articularam em torno de dois grandes eixos orientadores, direcionados ao fortalecimento da ação pedagógica, objetivando a reorganização do trabalho em sala de aula, e centralizando a figura dos professores alfabetizadores.
O primeiro passo foi a produção de material específico de alfabetização entregue a cada criança individualmente, estimulando, assim, a responsabilidade. Edgar Linhares se inspirou na obra Marcha Global Analítica, de André Inizan para elaborar o novo plano de ação. A rotina da sala de aula foi então reorganizada de modo que várias atividades fossem realizadas de acordo com horários preestabelecidos, norteadas por dez princípios:
O segundo passo foi a promoção de formação continuada para os professores, envolvendo-os como agentes fundamentais deste processo. Além disso, foi oferecido um bônus salarial para os professores que trabalhassem nas salas de aula de alfabetização. O terceiro passo foi uma intervenção na gestão da escola a partir do momento que a Secretaria da Educação rompeu com as indicações políticas para os cargos de diretores das escolas e passou a contratá-los por meio de um processo seletivo. Com isso, os diretores passaram a ter autonomia financeira, pedagógica e administrativa.
A redefinição do funcionamento de toda a Secretaria foi fundamental para o êxito do projeto. Os funcionários foram capacitados para monitorar, acompanhar e fazer avaliações externas nas escolas. As medidas adotadas, visando à integração entre os funcionários envolvidos com o processo de aprendizagem nas escolas e as metas propostas pela Secretaria de Educação, não pararam por aí.
Foi criado um prêmio, com gratificação financeira, destinado às escolas que atingissem suas metas. E, na busca pelo prêmio, uma das ações das escolas foi reduzir o abandono escolar, mantendo um funcionário responsável por buscar os alunos faltantes e dialogar com as famílias quando necessário.
Quando eleito governador, em 2006, Cid Gomes convocou Izolda Cela para a Secretaria da Educação do Ceará. A psicóloga atuava na execução da política educacional na Prefeitura de Sobral, e no primeiro ano de mandato, a experiência exitosa foi levada ao nível estadual. Surgia, então, o Programa de Aprendizagem na Idade Certa (Paic).
Um pacto entre prefeitos, gestores e entidades da sociedade civil foi estabelecido, com o intuito de assegurar a alfabetização de todas as crianças até o 2º ano do Ensino Fundamental.
O sucesso do programa piloto e a adesão crescente dos municípios levaram à transformação do Paic em política pública em 2008, expandindo-se para os 184 municípios do Ceará. Dessa forma, o programa consolidou-se como uma política de Estado, caracterizada pela colaboração entre diferentes esferas e pelo foco na equidade educacional.
A estrutura do Paic foi organizada em cinco eixos de atuação. O primeiro eixo buscou fortalecer a gestão municipal, proporcionando assessoria técnica às secretarias da educação. O segundo concentrou-se na implementação de propostas didáticas eficazes para a alfabetização, ao passo que o terceiro visou à melhoria da aprendizagem nos anos finais do Ensino Fundamental.
O quarto eixo atuou na ampliação do acesso à Educação Infantil, enquanto o quinto promoveu a formação de leitores desde a primeira infância. Por fim, o sexto eixo consistiu na realização de avaliações diagnósticas anuais, fundamentais para monitorar o aprendizado dos alunos.
Essas avaliações foram concebidas como ferramentas essenciais para a melhoria da qualidade educacional, sendo realizadas por técnicos externos à escola, abrangendo todos os alunos do 2º ano do Ensino Fundamental da rede pública e focadas na identificação das dificuldades de aprendizagem. Para garantir a qualidade, o Paic desenvolveu um protocolo próprio, investindo na capacitação dos profissionais responsáveis pela aplicação e análise dos dados.
Os resultados alcançados pelo Paic foram significativos. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) nos anos iniciais do Ensino Fundamental saltou de 2,8 em 2005 para 6,1 em 2017, superando as metas nacionais.
A taxa de alfabetização no Ceará também apresentou um aumento considerável, alcançando 89% em 2017, comparado aos 39,9% registrados em 2007. Além disso, o programa impactou positivamente o desempenho de alunos em escolas com altos índices de vulnerabilidade social, contribuindo para a redução das desigualdades educacionais no Estado.
A experiência do Paic no Ceará evidencia que a busca pela equidade na educação demanda um esforço conjunto, articulando diversos atores, políticas e estratégias. Com seus eixos integrados, foco na alfabetização, investimento na formação de professores e uso estratégico da avaliação, o PAIC se consolidou como um modelo de política pública educacional.
O sucesso na implementação deste projeto levou a então secretária de Educação, Izolda Cela, a ser vice-governadora nos dois mandatos de Camilo Santana (2016-2022), que era apoiado pelo ex-governador Cid Gomes.
Izolda acabou assumindo o posto de governadora quando Camilo renunciou ao cargo para concorrer ao Senado. No novo Governo Federal, também eleito em 2022, a dupla ficou no comando no Ministério da Educação e, logo no primeiro ano, retomaram ações ligadas ao Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), criado no governo Dilma Roussef e baseado no programa cearense.
Camilo e Izolda Cela recriaram duas secretarias no MEC consideradas fundamentais para o Pnaic: Articulação com os Sistemas de Ensino e Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão. Extintas na gestão de Jair Bolsonaro, as subpastas são responsáveis por mediar as ações que garantem o apoio aos professores que atuam no ciclo de alfabetização, dando suporte para que o planejamento e execução dos progrmas didáticos sejam feitos de modo articulado aos materiais e às referências curriculares e pedagógicas estabelecidas pelo Ministério.
Há, contudo, críticas ao modelo dentro do espectro político de Camilo Santana e Cid Gomes. Embates sobre o modelo de avaliação externa, reajuste salarial de professores e o modelo educacional de Sobral são comuns e não isentam de críticas o resultados, em geral, positivos.
Entre sucessos e desafios, a educação cearense vem se consolidando enquanto um caso bem-sucedido de continuidade de políticas públicas. Essa transformação, porém, depende de um elemento chave: o professor.
Longe de ser um "herói" ou alguém que "trabalha por amor", o professor cearense tem características demográficas bem definidas.
>> Nos próximos episódio desta série, você vai entender quais características são essas e como elas pode se mostrar fundamentais para o modelo de educação que tem sido construído no Ceará.