Quando começamos esta reportagem, a ideia era produzir um perfil do professor cearense, com base nos dados do Censo Escolar. Conforme a apuração seguia, mais camadas dessa jornada apareciam e era preciso contemplá-las na abordagem desta série de reportagens do O POVO+. Vamos chegar ao perfil do professor, antes, porém, um pouco de bastidores dessa construção.
Passamos mais de um mês fazendo entrevistas, análise de dados e pesquisas. Finalizado o trabalho, publicamos o primeiro episódio e logo um comentário nos chamou a atenção. Nosso editor de Política e colunista, Érico Firmo, pontuou que havia nuances e pontos fora da curva em todos os processos políticos que envolveram as decisões educacionais do Ceará.
Dentre as muitas anedotas políticas e histórias de bastidores, selecionamos dois momentos que se destacam nessa história: um governo coronelista, nos tempos da ditadura, que contratou professores ligados à Paulo Freire para trabalhar e, mais à frente, os embates que a primeira experiência de ensino à distância do Ceará.
Algumas décadas atrás, o Ceará dependia do consórcio algodão-gado, de uma agricultura de subsistência e de atividades extrativistas, ou seja, de uma economia extremamente dependente do setor rural em uma região semiárida em que, de cada dez anos, sete tinham chuvas irregulares, com a prevalência de relações pré-capitalistas no setor rural.
Quando chegou ao governo, Virgílio Távora imaginou que a modernização do Ceará se daria com uma forte intervenção do Estado, de forma planejada, para construir a infraestrutura necessária à industrialização e fortalecer o empresariado local.
O projeto de industrialização do Estado implicaria envolver a estrutura política vigente, da qual Virgílio e seu grupo político participavam, como forma de ter acesso aos recursos do governo federal que dependiam de negociações no Executivo federal e no Congresso Nacional.
O coronel parecia ter plena consciência de que apenas um grupo não teria poder de barganha para negociar projetos estratégicos em um ambiente dominado pelos interesses dos grandes Estados.
Portanto, era preciso cautela, costurar apoios importantes e estabelecer um curso de ação. Surgia, então, o Plano de Metas do Governo, o Plameg.
A experiência foi totalmente inovadora e pode-se dizer que inaugurou uma tradição cearense de pensar em políticas de estado. Tanto é que, em 2023, o governador Elmano de Freitas decidiu comemorar os 60 anos do Plameg como um marco para o planejamento e o desenvolvimento do Estado.
“O Ceará é a prova concreta da importância do planejamento. Se olharmos o que era o Ceará em 1963 para o que vemos hoje, nós podemos comparar claramente o padrão e a qualidade de vida daquela época com o que se tem atualmente. O Ceará é uma prova viva de que o planejar faz diferença na vida das pessoas”, disse na ocasião o governador Elmano.
Para elaboração do Plameg, foi constituído um Grupo de Planejamento, sob a coordenação de Hélio Beltrão. Este era um dos principais articuladores civis, junto aos empresários, da conspiração contra João Goulart.
Beltrão era um dos mais articulados tecnocratas do País, com ligações diretas a industriais nacionais e executivos multinacionais, e larga experiência anterior na elaboração de outros planos.
Assim como ele, os principais membros da equipe eram de um posicionamento político conservador e mais à direita, à exceção de Edgar Linhares, de orientação esquerdista.
Para a equipe da Secretaria da Educação, apesar de ter nomeado Hugo Gouveia, de origem política e posições conservadoras, Virgílio indicou técnicos com explícita militância de esquerda, justificando a possível contradição e riscos, por serem os melhores quadros existentes à época no Ceará.
Em uma entrevista concedida Jorge Henrique Cartaxo e publicada no O POVO em junho de 1988, ele recordou as críticas que sofreu com a decisão.
"Recordo-me que, quando falei no nome da Luíza Teodoro, me disseram que eu estava louco. 'Aquilo é uma comuna, é uma subversiva. Você está louco'. Foi assim que reagiram, mas convidei a Luíza para o meu governo. Faziam parte da equipe o Lauro de Oliveira Lima, os irmãos Evaristo e Edgar Linhares, o seu pai, o Luiz Edgar Cartaxo de Arruda, Iracema Santos e tantos outros. Eles fizeram uma revolução. Trouxeram o Paulo Freire a Fortaleza".
Dentre as ações desenvolvidas pela Secretaria da Educação, destacou-se a vinda de uma equipe da Universidade Federal de Pernambuco, liderada por Paulo Freire, para adoção em escala experimental do método deste pesquisador na periferia de Fortaleza.
Em um segundo momento, ocorreria a sua extensão para o interior do Estado, coordenada pela professora Luiza Teodoro Vieira. Para expandir as vagas do ensino médio, implantou os Anexos do Liceu do Ceará, utilizando a estrutura ociosa de escolas primárias sem a necessidade de formalização de novas escolas de ensino médio, que demandaria maior tempo e em decorrência dos trâmites burocráticos e custos financeiros.
A elaboração do "Livro da Professora", organizado por Luiza Teodoro, tinha por objetivo orientar o professorado primário do Ceará em novas técnicas educacionais, como parte da estratégia de treinamento
dos professores do ensino básico.
Virgílio Távora, apesar de eleito com apoio de forças conservadoras, arriscou-se em nomear uma equipe formada por pessoas com notórias posições de esquerda em um momento tenso e de grandes debates ideológicos.
Essa aparente contradição tinha explicações: Virgílio trazia de sua formação militar a ideia de que o analfabetismo era um empecilho para a modernização do Brasil, e uma das equipes mais competentes nesta área era a liderada por Lauro de Oliveira Lima.
Um segundo elemento a ressaltar é que, do ponto de vista do jogo político, a presença de um grupo de esquerda diminuiria as tensões com os oposicionistas, abrindo possíveis canais de diálogo.
Foi justamente Virgílio Távora quem requereu ao Conselho Nacional de Teleducação – Contel2, a concessão de um canal de televisão educativa para o Estado. A solicitação foi atendida no mês de abril de 1970. Além de requisitar a concessão de um canal de televisão educativa, era necessário também criar, por meio de lei, o órgão que manteria a TV Educativa.
Mas foi outro coronel, César Cals, que em dia 18 de outubro de 1973, sancionou e promulgou a Lei N. 9.753, que concebia a Fundação Educacional do Estado do Ceará – Funeduce.
Conforme publicado no O POVO em maio de 1973, a construção da sede da TVE custaria aos cofres públicos cerca de um milhão de cruzeiros. A estrutura metálica que serviria de antena tinha 95 metros de altura e custou mais 312 mil cruzeiros.
A primeira equipe pedagógica da TVE foi montada pela professora Antonieta Cals, que chamou os professores Ignácio Ribeiro Pessoa Montenegro, José Carneiro da Cunha e Gerardo José Campos que estudaram e conceberam os processos que dariam origem ao sistema de tele ensino do Ceará em 1974.
Mas as críticas vieram. Na década de 90, quando o tele ensino se massificou, uma matéria da Folha de S. Paulo, de 1996 tinha como manchete "A televisão substitui o professor nas escolas públicas do Ceará".
À época, quase 200 mil crianças, de 5ª a 8ª série, da rede estadual e das escolas municipais de Fortaleza, não tinham a presença contínua de um professor em sala de aula. A maioria, de fato, frequentava as escolas, mas o conteúdo aparecia pela TV. As matérias eram transmitidas em flashes de 10 a 15 minutos de duração.
Havia apenas um professor por turma, e seu papel não era o de dar aulas, mas o de orientar a classe na aprendizagem das matérias. Naquela época, as teleaulas não eram exatamente novidade. O modelo se popularizou em meados dos anos 1970 depois do lançamento do "Telecurso 2º Grau", fruto de uma parceria entre a Fundação Padre Anchieta – mantenedora da TV Cultura – e a Fundação Roberto Marinho.
O Ceará, no entanto, virou um fenômeno único por uma decisão tomada em 1993, do então governador Ciro Gomes (PSDB). Ciro impôs o sistema em todas as escolas da rede estadual, mas enfrentou uma forte resistências por parte dos professores da Capital.
A transformação do professor especialista em orientador generalista, de forma obrigatória e sem treinamento adequado, gerou angústia entre os profissionais. A maioria se dizia insegura por não dominar as matérias - sobretudo a matemática para 7ª e 8ª séries.
As críticas se estendiam aos critérios de avaliação dos alunos do tele ensino e se queixa da falta de material didático. Salete Pereira, hoje aposentada, foi professora e diretora escolar naquela época. A pedagoga conta que as escolas viviam "entre a cruz e a espada", tentando aumentar as matrículas e aprovações, ao passo que lidavam com as frustrações dos alunos com dificuldades de aprendizagem.
"O sistema do tele ensino, tal como foi apresentado, não funciona. Ele baixou o índice de reprovação nas escolas, mas os alunos sabiam cada vez menos", diz a educadora.
Ela lembra que no ano de 1992, ainda no regime convencional, a escola que ela dirigia, em Fortaleza registrou um índice de reprovação de 42% nas turmas de 6ª série. No ano seguinte, com o ensino pela TV, o percentual caiu para 18%. Em 1994 e 1995, nenhum aluno da 6ª série foi reprovado.
Em vez de ficar orgulhosa com a queda nos índices de reprovação, a ex-diretora disse que era "tudo maquiagem", fruto de uma queda na qualidade dos critérios de avaliação.
"Os mesmos alunos que tiveram notas excelentes na 6ª série estavam cheios de zeros no primeiro bimestre da 7ª série. Era uma catástrofe", afirma.
Naquela época, as notas bimestrais dos alunos do tele ensino eram calculadas com base em um teste aplicado em sala pelo orientador de aprendizagem, por um teste transmitido pela TV e por uma terceira nota, onde entravam tanto a autoavaliação do aluno quanto a avaliação que seus colegas e o orientador faziam dele.
Personagem que também apareceu no nosso episódio anterior, o ex-secretário de Educação do Ceará, Antenor Naspolini, diz que parte das críticas feitas ao sistema de ensino pela TV é "ideológica" e que os criticam e os que defendem o telensino o fazem de forma igualmente apaixonada.
Em entrevista à Folha de S. Paulo depois da repercussão da matéria que mencionamos anteriormente, ele fez declarações em defesa do sistema.
Naspolini rebatia o argumento de que as aulas pela TV criariam um ensino padronizado e acabam com a atividade do professor. "O tele ensino foi desenvolvido no Ceará, por cearenses", rebateu o então secretário.
"O ensino pela TV democratizou a informação, porque os alunos da capital e os do interior recebem o mesmo conhecimento", defendeu.
Segundo ele, os opositores afirmavam que ele desemprega professores e que é uma escola pobre para pobres. "Nenhum professor foi demitido após a implantação do sistema na rede estadual", disse.
De fato, o contingente de docentes não mudou muito, mas a atividade sim. "Você chegava de manhã na sala e quando eles chegavam àquela hora marcada tinha que estar com a televisão ligada para eles assistirem. Aí a televisão passava a mensagem e eles assistiam à aula. Quando terminava a aula, eu fazia questões sobre a aula, durante a aula os meninos iam assistindo e eu ia anotando alguns pontos que eu achava importante", relembra a educadora Lena Maciel.
A professora, hoje aposentada, também conta que as aulas transmitidas pela TV foram aprimoradas com o intuito de chamar a atenção dos estudantes e, consequentemente, poderiam contribuir no processo de aprendizagem.
Segundo ela, um ponto importante foi a inserção de personagens que participavam juntamente com os professores-apresentadores no momento da emissão dos módulos de algumas disciplinas.
"Nessa época, com a reforma das aulas, eles colocavam algo que chamasse bem atenção do aluno. Por exemplo: as aulas, não sei se eram de português, que eram apresentadas por dois bonequinhos,e o professor conversava com eles. Nas aulas de geografia tinha uma espécie de alienígena, era algo bem lúdico", conta rindo.
De acordo com relatórios do Projeto Escola do Novo Milênio (PENM), da Secretaria Estadual da Educação (Seduc), a virada para os anos 2000 iniciou um processo gradativo de substituição do tele ensino pelo ensino convencional.
Assim, a metodologia das TVs em sala de aula foi excluída do PENM em 2007, “devido à insegurança existente quanto ao padrão de qualidade de ensino do programa”, após avaliações realizadas em 2001 e em 2005.
Elas descreveram problemas como a insatisfação da comunidade escolar com a qualidade da metodologia e a falta de capacitação adequada para os orientadores de aprendizagem, além de entenderem que “o programa atendeu à necessidade de expansão da cobertura”.
Embora tenha sido encerrado, o tele ensino encontra ecos nas aulas online e na Educação à Distância (EaD) que foram aprimoradas nos últimos anos, sobretudo durante a pandemia da Covid-19.
Entre coronéis, democratas, televisões e tablets, os capítulos da educação cearense tem sido escritos à muitas mãos. Com metodologias diferentes e abordagens às vezes muito particulares, o objetivo final parece estar sendo cumprido.
"Olá, eu sou Mateus Mota, aqui do O POVO+! Deixa eu te perguntar: o que você achou desse conteúdo? Me conta sua opinião aqui embaixo, nos comentários. Até a próxima! :)"
Série de reportagens se debruça sobre dados do Ministério da Educação que indicam ser a rede pública de Ensino Fundamental cearense a melhor do País. Do modelo sobralense de alfabetização ao ambicioso projeto de educação em tempo integral, são mais de 30 anos de políticas públicas e um trabalho que envolve gestores públicos, professores e famílias. Vamos entender o que faz do Ceará uma referência nacional em educação