A vastidão matizada em muitos tons de verde da Serra da Ibiapaba se perde no horizonte de quem chega à região em procura de resposta a uma pergunta que tem tirado o sono de muita gente moradora de lá: afinal, irão continuar vivendo no Ceará ou, de agora em diante, passarão ao vizinho Piauí, caso o estado vença a disputa pelas terras travada na barra do Supremo Tribunal Federal?
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Não é questão trivial, de fácil resolução nem política, econômica ou cultural. A bem da verdade, é coisa que incomode a quase todo mundo nesse recorte geográfico dotado de abastança sem par, dos mais velhos aos mais jovens, agricultor, empresário, produtor, estudante ou professor.
No espinhaço da serra ou a seu pé, na zona rural ou na urbana, entre cearenses de coração piauiense ou o inverso, o tema é assunto corrente, tratado ora como urgência, ora com pilhéria e molecagem, ora como uma dessas histórias que os antigos fabulavam, visagens criadas para entreter os pequenos em dia de lua.
Luíza Jacó Ribeiro, 60 anos, é uma dessas viventes mais apreensivas. Quem a surpreende escorada no alpendre no distrito de Casa de Pedra, um aglomerado de edificações mal assentadas entre Carnaubal e Guaraciaba do Norte, nem imagina que seja um problema que a sobressalte no meio da noite. Mas é. “Qual é o interesse mesmo do Piauí em tirar esse pedaço da gente?”, pergunta. Ao que ela mesma entrega: “É pertinho da serra, o clima é bom e tem riqueza”.
Se depender unicamente dela, contudo, fica “no Ceará”, já que nunca precisou “sair daqui pra nada”. Afinal, escola tem perto, posto de saúde também. Se o corpo fraquejar e calhar de ir ao médico, conforme diz em voz melodiosa, há um carro disponível para levar à sede do município ou para Sobral, cujo hospital é mais robusto e atende a todo tipo de necessidade.
Até cemitério há por ali, uma construção modesta de muro ainda sem reboco, no máximo uma dúzia de lápides erguidas desordenadamente num terreno na entrada do povoado, guardado por portão de ferro, sem cadeado, acima do qual se lê: “Cemitério da saudade, comunidade Casa de Pedra”.
Também habitante do lugarejo, Antônio Carlos Viana da Silva, 51, vai nessa toada: não vê futuro na mudança de estado, com essa arenga jurídica que opôs governos das duas unidades federativas cujo desenvolvimento se entrelaça.
A exemplo de dona Luíza, porém, ele se assombra com que, de uma hora para outra, vá se deitar em solo cearense e acorde em chão piauiense. É um risco que lhe tolda o juízo.
“Não sou a favor, não. Melhor o Ceará mesmo, tudo é mais perto. Imagina sair daqui pra ir numa consulta em Teresina? Chega já morto lá”, brinca o comerciante, que trabalha “vendendo umas cachacinhas pra melhorar a saúde”. Para ele, se houver troca, assegura que o Ceará sai perdendo porque “tem muita coisa aqui, tem escola, tem poço, tem hospital”.
“Se preciso fazer compras, vou em Carnaubal. Eu não sei nem para onde vai o Piauí”, diz, atinando com o tempo como se procurasse acertar a direção da estrada que leva ao município mais próximo, Domingos Mourão, já em terras do vizinho.
Apesar dos gracejos e da bebidinha gargarejada cedo do dia, Viana está de olho aberto para a briga entre os estados. Segundo ele, tem coisa por baixo desse angu que não se limita a divergência fundiária, tampouco a ambição por pé de planta ou algo parecido. É fome graúda, dessas de querer o que o outro tem a todo preço.
“É por causa dos investimentos, da terra boa, do sol, do vento pras torres eólicas”, conta baixinho, como se segredo fosse e por trás de algum mato se escondesse um interessado.
Em seguida, revela que, ali do outro lado do monte mais chegado, “estão tudo comprando terrenos” para instalar as “torres de ventilador gigante”, como se costuma falar. Mas Viana promete: não arreda pé. E diz mais: “Tem que ficar cada qual nos seus cantos. Todo mundo concorda que não querem ir pro Piauí. Vai ter briga”.
Já tem, e não é de hoje. Vem de século essa cizânia, reacendida pelo Piauí em 2011, quando o governo estadual ingressou com ação no STF questionando a partilha e a configuração atual das divisas, e agora está prestes a desatar, de um jeito ou de outro. É essa indefinição que semeia desassossego no povo da serra que não quer saber de alterar documentos para se mudar.
Em quatro dias de viagem por 10 municípios e quase 700 km rodados de carro por toda a Ibiapaba no último mês de dezembro de 2023, O POVO ouviu gente que quer ficar no Ceará – a maioria – e gente que prefere ir de mala e cuia para o Piauí. Entre uns e outros, quase ninguém permanece em cima do muro. Todo mundo tem lado nessa pendência.
Foi muito chão andado: Poranga, Ipueiras, Carnaubal, Ibiapina, Croatá, São Benedito, Guaraciaba do Norte, Ubajara e Tianguá, além de Domingos Mourão e Pedro II, ambos no Piauí, cujo território a equipe de reportagem cruzou de passagem para alcançar localidades cearenses de acesso mais difícil.
Estrada de terra, asfalto, carroçal, lajedo, piçarra e terreno alagado, com início da viagem em Poranga, cidade com maior percentual dentro da área de litígio (66%), e encerrando em Tianguá, município com grande potencial turístico. Nesse percurso de chuva e sol, a tônica é uma só: o cearense quer seguir no seu estado natal.
Longe de Carnaubal, por exemplo, já pertinho da quina da Serra Grande, como a Ibiapaba é conhecida, o comerciante Aguinaldo Lima, 51, admite: “Por mim, continua no Ceará”.
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Natural de Tianguá, onde fez a vida e trabalha ao lado da esposa, Fernanda Luana Lima, o empreendedor estima que a alteração do mapa regional seria “um problema, já que nossa história é toda direcionada ao estado”.
“Nascemos cearenses. Como vamos pertencer a outro território, se estamos enraizados na cultura do Ceará? É muito difícil passar a ser parte do Piauí”, aponta Lima, dando a ver que o cálculo não envolve apenas variáveis de natureza econômica ou política, mas também de pertencimento.
Questionado se tem algum vínculo de identidade com o Piauí que facilitasse a adaptação na hipótese de haver um redesenho nesse traçado que é também afetivo, o cearense cisma, respondendo ligeiro: não. “Nunca precisei ir pra lá, tem tudo aqui perto. Até praia tem”, assinala.
Lima não exagera. Ali do lado, ainda na serra, descortina-se uma faixa larga de areia muito alva e fina, vento forte e ondas de altura moderada, pontilhada por barracas de sol, em tudo semelhante à Praia do Futuro ou à de Iracema: é a praia do açude do Jaburu, que abastece toda a região da Ibiapaba e se localiza parte em Ubajara (70%), parte em Tianguá (30%), ou seja, está no coração da corrida pela terra que envolve os dois estados.
Aquele era um dia movimentado por causa de uma excursão (de piauienses) recém-desembarcada no restaurante onde Hiago Pereira bate o ponto já há tempos, mas o jovem de 22 anos fez questão de estancar a rotina para fincar sua bandeira.
“Quero ser cearense, já é parte da serra, é nossa cultura. Não tem como mudar de uma hora pra outra, é complicado”, avisa, equilibrando uma bandeja enquanto clientes acenam, o cheiro de peixe frito espalhado pelo ar.
De acordo com ele, no entanto, a avidez é grande quando se trata da serra, cuja economia tem se destacado cada vez mais no cenário nordestino. “Tá cheio de parque eólico, tem parque federal, nacional. Querendo ou não, é algo a mais. É a riqueza da terra da Ibiapaba”, sintetiza, acrescentando que, “particularmente, não quero dar essa riqueza pro Piauí”.
Se a serra não vai ao estado vizinho, todavia, os piauienses vão até a serra. Hiago afirma que cerca de 60% dos consumidores do restaurante são do Piauí, especialmente da capital Teresina, que também injetam recursos no setor de hotelaria e de bares não somente da localidade.
“Eles vêm pra cá e gostam do clima, inclusive tem muito piauiense comprando terra aqui pra se mudar pra cá por causa disso”, narra o garçom, mostrando que, na prática, o interesse do vizinho na geografia cearense não figura apenas nas querelas jurídicas – está no dia a dia.
Sem se conhecerem, José e João representam os dois lados de uma peleja que arrasta moradores do Piauí e do Ceará através dos tempos. Ambos “piauizeiros”, como se referem aos nascidos no estado vizinho, assumem posições diferentes quando se trata de decidir se querem ou não que as terras da zona de litígio fiquem com um ou outro estado.
Seu José é José Wellington de Oliveira, 46 anos, agricultor e vaqueiro, casado e pai de cinco filhos, todos matriculados em escolas de Domingos Mourão (PI), município vizinho a São Benedito (CE). Ele mesmo vota e elege o prefeito de lá, faz compras e frequenta as rodas da cidade ao lado, já território piauiense. Se carece de algo para a urgência do cotidiano, parte no rumo do outro estado.
Mas seu José vive no Ceará. Precisamente, num distritozinho já perdido entre lá e cá chamado de Estendeslau, com acesso dificultado até para carro grande. A reportagem o encontrou numa vereda no meio do nada, sem construção à vista, no finalzinho da tarde.
Voltava para casa de moto depois de passar as últimas horas resolvendo coisas da vida prática — lá em Domingos Mourão, e não na sede de São Benedito, como seria de praxe para qualquer cearense morador daquelas bandas.
Sem descer da moto, seu José se apressa em explicar a rotina dúplice de piauiense vivendo no Ceará, mas com o umbigo enterrado nas terras de natalidade.
“Olha, não sei nem se eu posso opinar alguma coisa porque eu sou de Domingos Mourão, vou nem mentir. E moro num distrito de São Benedito, que é quase Piauí”, brinca o agricultor, que logo retoma a fala: “Mas, se está nessa questão, tinha que decidir: o coração tende mais pra onde? Rapaz, como sou ‘piauizeiro’, tende pra lá”.
Embora bote a culpa no coração, seu José elenca razões pragmáticas para desempatar a disputa pela terra da serra da Ibiapaba, que ameaça tomar 13,5% de São Benedito e entregá-lo ao Piauí, engordando o mapa dessa unidade da federação e desidratando o da cearense.
“Aqui, se a gente precisa ir numa cidade, corre pro Piauí. Resolve lá porque é mais perto. Tô vindo de Domingos Mourão só porque fica mais perto mesmo. Não é uma cidade tão grandona, mas tem coisa. São Benedito é maior, mas, pra tudo, é lá”, atalha o agricultor, indicando com a mão a direção que pega na estradinha.
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Daí então que tenha por gosto que a região se torne parte do seu estado de vez, de modo a facilitar a lida e acabar com as divergências nos boletos, com a água encanada com cobrança no Piauí e a energia, no Ceará.
Por ele, portanto, tinha que bater o martelo rápido, como já fez: “Aqui pra mim é Piauí, mas a opinião dos outros ninguém sabe”.
Ocorre que o seu João sabe, ao menos a dele mesmo. João é João Batista Costa, piauiense de Piriri, 72 anos, adotado pelo São Benedito desde menino novo e com resposta na ponta da língua se lhe perguntam se quer que aquele chão passe ao domínio do vizinho: “Não quero voltar”.
Mas esse cearense meio piauiense – ou piauiense meio cearense – também advoga a sua tese a partir de uma dimensão mais concreta. Nada de rivalidade. É comodidade.
“É o seguinte: a gente fica sem um bocado de direito (se o Piauí levar a melhor na Justiça). Temos uma Santa Casa em Sobral que atende uma emergência. Se passar pro Piauí, vamos ficar com Teresina? Aqui tem posto de saúde na comunidade, tem atendimento de 15 em 15 dias, tem escola e tem hospital”, argumenta, o rosto enrubescendo de repente.
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Morador da comunidade de Pau D’arco, não muito distante da Estendeslau de José, seu conterrâneo, João crava posição nesse impasse secular: “Mesmo piauiense, sou contra. Não adianta, aqui é Ceará”.
Ao Piauí, admite “só ir hoje a passeio, porque tenho parente em Piriri”, e olhe lá. Pelo contrário, “eles de lá vêm fazer compra aqui”.
No fundo, contudo, João acredita que “é problema que não vai pra frente”, ficando nessa queda de braço que já remonta desde a época do imperador, segundo as histórias que o povo repete e que passaram de boca em boca, entre gerações de cearenses de nascimento ou não.
E, caso não se chegue a bom termo, seu João tem saída: o Ceará paga, e ficam todos acertados. “O governo nosso aqui pisou na bola”, conclui, referindo-se ao tempo durante o qual o poder público cearense teria estado de costas para a Serra da Ibiapaba, agora objeto da desavença.
“Tem um bocado de riqueza na serra grande. Eles não têm uma serra verde como a nossa, por isso estão querendo. É um clima bom, tem riqueza, tem a plantação. Abriram o olho”, resume.
Foram quatro dias de viagem no período de 18 a 21 de dezembro de 2023
Municípios percorridos: Poranga, Ipueiras, Croatá, Guaraciaba, Carnaubal, São Benedito, Ibiapina, Ubajara, Tianguá e Domingos Mourão (PI)
Cidades: 9 municípios do CE visitados + 1 município do PI (Domingos Mourão) = 10 municípios ao todo
Distância: 700 km de estradas percorridos (maior parte de terra)
Cerca de 15 localidades/distritos, todos no CE
Percorremos a PI 258, já no PI, para chegar até a Tapera dos Vital, na divisa entre os dois estados
32 pessoas entrevistadas ao longo do percurso, entre cearenses e piauienses