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BBB no Congresso Nacional: como votam as bancadas mais fortes da casa
Reportagem Seriada

BBB no Congresso Nacional: como votam as bancadas mais fortes da casa

O que o alinhamento com o executivo das bancadas da bala, do boi e da bíblia nas votações da Câmara dos Deputados em 2023 diz sobre a governabilidade de Lula
Episódio 1

BBB no Congresso Nacional: como votam as bancadas mais fortes da casa

O que o alinhamento com o executivo das bancadas da bala, do boi e da bíblia nas votações da Câmara dos Deputados em 2023 diz sobre a governabilidade de Lula
Episódio 1
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Uma das dimensões fundamentais para o cálculo do que é chamado, na ciência política, de “governabilidade”, é o percentual de parlamentares que seguem ou não a orientação do governo em votações pautadas no Congresso Nacional. Votos em confluência são indício de uma relação azeitada entre executivo e legislativo, assim como resultados dissonantes podem sinalizar para a existência de conflitos (tácitos ou declarados) entre os poderes.

Poucas vezes em nossa história recente essa diferença foi tão bem incorporada quanto na forma como se relacionaram com os congressistas os então presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff em seus respectivos mandatos. Enquanto Lula se firmou politicamente como negociador hábil, Dilma nunca escondeu sua resistência a participar ativamente desse processo melindroso de recusas e concessões.

Um dos elementos fundamentais para a governabilidade de um presidente no Brasil é sua capacidade de diálogo com os membros do legislativo(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Um dos elementos fundamentais para a governabilidade de um presidente no Brasil é sua capacidade de diálogo com os membros do legislativo

A demonstração cabal das habilidades de Lula na manutenção desse diálogo veio na consolidação de uma base governista que, reestruturada a partir da cisão quase absoluta operada no Congresso nos anos de Jair Bolsonaro como chefe do Executivo, garantiu ao governo uma impressionante trajetória de êxitos no âmbito do Legislativo durante todo o primeiro ano deste novo mandato.

Sua capacidade conciliatória se torna ainda mais patente quando são considerados os votos dados pelos deputados federais integrantes das chamadas bancadas BBB (Bala, Boi e Bíblia), nome popular das frentes parlamentares da Segurança Pública, da Agropecuária e Evangélica. Historicamente associadas à direita, as bancadas seguiram a orientação governista em mais da metade das votações nominais realizadas no ano passado.

Negociador hábil, Lula (na foto com o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira) conseguiu importantes vitórias no legislativo em 2023(Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República)
Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República Negociador hábil, Lula (na foto com o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira) conseguiu importantes vitórias no legislativo em 2023


 

Um alinhamento triunfante

 

Em 2023, 9.250 votações foram realizadas na Câmara dos Deputados. Desse total, 1.072 ocorreram no plenário da casa. Apenas 294 delas foram nominais, com o Governo orientando posição em 233 delas. Visto que somente nestas últimas é possível ter certeza sobre o voto dos parlamentares, são nelas que nos baseamos para a elaboração das estatísticas que conduzem esta reportagem. Os dados brutos foram obtidos no serviço Dados Abertos da Câmara.

Nas 233 votações nominais realizadas no plenário da Câmara dos Deputados no ano passado consideradas para esta análise, 73% dos votos dados pelos 513 deputados seguiram a orientação governista. O número impressiona e, na avaliação do cientista político Rodrigo Prando, professor ligado ao Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), pode ser explicado pela retomada da busca de diálogos por parte de Lula.

“Mesmo que agora a gente tenha um governo mais progressista, de esquerda, e um Congresso preponderantemente conservador, acredito que o fato de Bolsonaro não estar mais tensionando — fazendo o que chamo de ‘presidencialismo de confrontação’ —, e do Lula estar buscando estabelecer diálogos, acaba arrefecendo um pouco os ânimos”, avalia Prando.

 

Percentual de deputados que seguiram a orientação governista em votações nominais

 

A bancada mais alinhada ao governo foi a do boi. 65% dos votos nominais dados por deputados ligados à Frente Parlamentar da Agropecuária estiveram alinhados ao governo. O percentual é cinco pontos percentuais inferior quando são considerados os votos dos deputados integrantes da bancada da bala. Nesse caso, 60% dos votos seguiram a orientação governista.

A bancada da bíblia foi a que mais divergiu das orientações do governo em votações nominais na Câmara. Mesmo assim, mais da metade (58%) dos seus deputados votou de acordo com a orientação governista. “Há sempre uma votação menor da bancada evangélica”, observa Prando a partir da análise dos dados levantados por O POVO+. Segundo ele, o nível de convergência de votos depende, mais do que da bancada, do teor da pauta que está sendo analisada.

“A depender do tipo de votação, pode haver uma convergência maior ou menor. Pautas que sejam de caráter econômico geralmente fazem com que a bancada do agro entregue o voto. Já uma pauta de costumes deve receber poucos votos da bancada evangélica. Por outro lado, a questão da Reforma Tributária, por exemplo, deve ter recebido voto das três (bancadas)”, analisa.

Reeleito ao cargo de deputado federal em 2022, o pastor Marco Feliciano é um dos integrantes mais belicosos da Frente Parlamentar Evangélica(Foto: Agência Brasil)
Foto: Agência Brasil Reeleito ao cargo de deputado federal em 2022, o pastor Marco Feliciano é um dos integrantes mais belicosos da Frente Parlamentar Evangélica

 

 

Acordo no desacordo

 

Essa convergência se torna ainda mais evidente quando são levados em conta, dentro desse universo das 294 votações nominais de 2023, aquelas que partiram de orientações distintas de governo e oposição, o que aconteceu em 197 casos. Os dados obtidos a partir desse recorte específico apontam que, apesar do desacordo, 70% dos votos dados pela Câmara de Deputados estiveram alinhados ao governo.

A frente parlamentar mais alinhada ao governo, apesar das orientações contrárias de seus partidos integrantes, foi a da Agropecuária: 60% dos votos nominais dados pelos deputados da bancada do boi seguiram a indicação governista, mesmo com disposição partidária contrária. Na bancada da bala, 54% dos votos dados pelos seus deputados também estiveram alinhados à orientação governista.

Outra vez foi a Frente Parlamentar Evangélica a que mais divergiu do governo. Mesmo assim, seus deputados só acataram a orientação dos seus partidos de oposição em 48% dos votos — os outros 52% seguiram a base governista.

 

Percentual de deputados que seguiram a orientação governista apesar da indicação contrária da oposição 

 

Para o analista político Vladimir Feijó, doutor em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), uma leitura acurada desses dados passa, necessariamente, pela observação da evolução dessa convergência ao longo do ano, que começou com a oposição tentando barrar, via decreto legislativo, os esforços de reversão de algumas políticas por parte do governo Lula, como a proposta de revogação do novo decreto sobre o controle de armas.

“Nesses primeiros meses, deve ter ocorrido uma concentração maior de rejeição. Mas, ao longo do ano, com as pautas econômicas como a Reforma Tributária e a questão das verbas para financiamento da agricultura, essa convergência aumentou. O governo conseguiu costurar essa governabilidade formando alianças com habilidade política e escolhendo quais temas tratar no primeiro ano”, avalia Feijó.

No início de 2023, parlamentares tentaram barrar os esforços de Lula para reverter a flexibilização da compra de armas assinada por Bolsonaro (foto) em seu governo(Foto: Evaristo Sá/AFP)
Foto: Evaristo Sá/AFP No início de 2023, parlamentares tentaram barrar os esforços de Lula para reverter a flexibilização da compra de armas assinada por Bolsonaro (foto) em seu governo

O analista faz eco à opinião de Rodrigo Prando de que Lula e seus aliados fizeram uma seleção criteriosa dos projetos que levariam ao plenário durante esse primeiro ano, preferindo se manter afastados de pautas que agitaram o governo Bolsonaro e alimentaram a polarização política, como assuntos ligados às alçadas do direito civil e dos direitos humanos.

A estratégia do governo, na avaliação de Feijó, teve resultados positivos. “Lula e sua equipe mantiveram o foco nos grandes temas presentes nas eleições de 2022, como a perda da qualidade de vida, o desemprego, o controle inflacionário e a busca pelo retorno de investimentos públicos e privados no sentido de fazer a economia crescer”, argumenta.

Na avaliação de analistas, a estratégia de evitar pautas polêmicas no primeiro ano do novo governo Lula ajudou a fortalecer a relação entre os poderes(Foto: Mauro Pimentel/AFP)
Foto: Mauro Pimentel/AFP Na avaliação de analistas, a estratégia de evitar pautas polêmicas no primeiro ano do novo governo Lula ajudou a fortalecer a relação entre os poderes

 

 

Os deputados cearenses

 

A confluência entre o Governo e as bancadas da bala, da bíblia e do boi é ainda mais acentuada quando são considerados os congressistas do Ceará integrantes dessas três frentes parlamentares. Os votos dados pelos deputados cearenses da Frente Parlamentar da Agropecuária estiveram alinhados ao governo em 80% das votações nominais.

Em relação aos votos oriundos da bancada cearense integrante da Frente Parlamentar da Segurança Pública, 74% deles respeitaram a orientação governista. Refletindo o panorama nacional, a maior divergência ocorre quando são considerados os votos da Frente Parlamentar Evangélica: os deputados cearenses ligados a essa bancada deram votos que coincidiram com a disposição do governo em 58% dos casos.

 

Percentual de deputados cearenses que seguiram a orientação governista em votações nominais

 

Há cinco deputados federais cearenses que integram a composição das três bancadas: André Fernandes (PL), Dayany Bittencourt (União), Matheus Noronha (PL), Moses Rodrigues (União) e Yury do Paredão (MDB). Todos eles declararam voto em Bolsonaro durante a campanha eleitoral para Presidente da República em 2022.

Ao nosso pedido de avaliação sobre a convergência dos votos dessas bancadas com a orientação governista, o deputado Matheus Noronha afirmou: “As frentes parlamentares são sub partidárias, não tem isso de partido A ou B. Voto de acordo com o que acho legítimo e correto, independentemente de um lado ou outro. Não faço oposição radical, não sou sempre do contra. Analiso caso a caso”.

O deputado cearense Moses Rodrigues (União) integra as três bancadas mais fortes do Congresso e avalia que o ano foi de fortalecimento do Legislativo(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves O deputado cearense Moses Rodrigues (União) integra as três bancadas mais fortes do Congresso e avalia que o ano foi de fortalecimento do Legislativo

O deputado Moses Rodrigues argumentou que “a convergência dessas votações reflete muito mais um fortalecimento do Poder Legislativo do que propriamente um alinhamento com o Governo”. Também defendeu o estreitamento do diálogo entre os poderes e afirmou: “Em pautas convergentes e necessárias ao País, vamos sempre trabalhar para aprová-las, porém com as alterações que a Casa entender como necessárias”.

O deputado Yury do Paredão, que foi expulso do PL e acabou se filiando ao MDB com o apoio do Ministro da Educação Camilo Santana e do governador do Ceará Elmano de Freitas, afirmou ter seguido, em todas as votações, a orientação do líder do seu atual partido, o deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL). “Defendo a fidelidade partidária e respeito às pautas do partido”, argumentou.

Os deputados André Fernandes e Dayany Bittencourt receberam os mesmos questionamentos enviados aos outros parlamentares cearenses que integram as três bancadas em questão, mas informaram à nossa reportagem, via assessoria de comunicação, que não se pronunciariam sobre os dados levantados.

 

Deputados federais cearenses nas bancadas BBB 

 

 

Partido a partido

 

Apenas o Pros teve os votos de seus deputados federais com alinhamento total em relação à orientação governista. Registraram convergência acima de 90% nos votos nominais PCdoB (97%), PT (97%), PV (97%), PSB (94%) e PDT (92%). Com exceção do PL (33%) e do Novo (20%), todos os demais partidos tiveram percentual de alinhamento com a posição do governo superior a 60%. Acima desses dois, nas últimas posições do ranking, o que registrou menor convergência foi o Patriota (65%).

“Isso faz parte. Tem deputados de partidos da base que não votam com o governo, assim como o oposto. O fundamental é que nós aprovamos tudo, tanto é que a economia brasileira está se recuperando”, afirmou o deputado José Guimarães, líder no governo da Câmara, quando perguntado por nossa reportagem sobre a leitura que ele faria sobre o nível de alinhamento entre os poderes a partir dos dados levantados.

 

Percentual de votos (por partido) que seguem a orientação governista em votações nominais (gráfico abaixo)

 

Considerando a Frente Parlamentar da Agropecuária, deputados de cinco partidos tiveram alinhamento de pelo menos 90% em relação à orientação governista nas votações nominais da Câmara dos Deputados: PT (98%), PV (97%), PCdoB (97%), PSB (94%) e PDT (91%). O PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, esteve alinhado ao atual governo em 32% dos votos dados por membros dessa bancada.

Na Frente Parlamentar da Segurança Pública, representantes de quatro partidos registraram alinhamento ao governo superior aos 90%: PCdoB (98%), PT (97%), PSB (93%) e PDT (92%). Os deputados do PL que integram a chamada bancada da bala tiveram percentual de votos convergentes levemente inferior em relação ao registrado pelos integrantes da bancada do boi, com 31% deles seguindo a orientação governista.

 

Percentual de votos (por partido e frente parlamentar) que seguem a orientação governista em votações nominais 

 

A Frente Parlamentar Evangélica, conhecida popularmente como bancada da bíblia, registrou convergência com o governo superior aos 90% apenas quando são considerados os votos de dois partidos: PT (97%) e PSB (95%). Os parlamentares do PL deram votos convergentes à orientação governista em apenas 31% das pautas. Patriota (30%) e Novo (21%) aparecem nas últimas posições desse ranking.

O deputado Yury do Paredão (MDB) elogiou os esforços de Lula na tentativa de estreitar relações com o legislativo e sua defesa “da democracia e da boa convivência entre as instituições”. Moses Rodrigues (União) celebrou o diálogo que as frentes estabeleceram no Congresso Nacional “apesar de alguns momentos de debates acalorados”.

Para o deputado federal Matheus Noronha (PL), porém, o ano legislativo foi marcado pela intransigência de Lula no que diz respeito à comunicação entre os poderes. “Sobre essa relação, a verdade é que já não é das melhores. Espero que em 2024 tenhamos mais equilíbrio, porque 2023 foi um ano de grande falta de diálogo do executivo para com o legislativo”, afirmou.

Natural de Juazeiro do Norte, o deputado Yury do Paredão (MDB) deixou o PL e se aproximou de Lula ainda no primeiro semestre de 2023(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram Natural de Juazeiro do Norte, o deputado Yury do Paredão (MDB) deixou o PL e se aproximou de Lula ainda no primeiro semestre de 2023

 

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Metodologia

Para este material foram coletadas e analisadas todas as votações nominais que ocorreram no Plenário da Câmara dos Deputados durante o ano de 2023 através do serviço de dados abertos da casa.

Para garantir a integridade e completude dos dados, um script foi desenvolvido para coletar os registros diários, entre 01/02 e 24/12 de 2023, de todas as votações registradas pelo serviço de dados abertos da Câmara. Em seguida foram selecionadas as votações em plenário, com registros de votos nominais dos deputados e deputadas. Por fim, foram destacadas as votações dos membros de três frentes parlamentares no congresso: Frente Parlamentar Evangélica, Frente Parlamentar da Agropecuária e Frente Parlamentar da Segurança Pública.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual periodicamente são publicados códigos, metodologias, visualizações e bases de dados desenvolvidas.

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