Sexta-feira, pouco depois das 18h30min. Dentro da sala da central telefônica da unidade militar, um soldado e um cabo comem uma pizza quando um recruta, assustado, chega chorando e gritando. "Rapaz, tá tendo alteração lá no posto 14. Os meninos lá no NI-14". Alteração significaria algum possível ataque ao local, incluindo disparos.
Os estampidos, pelo menos três, teriam sido ouvidos por quem fazia a ronda nas proximidades. NI é Norte Interno, um posto avançado dentro da Base Aérea de Fortaleza (BAFz). Fica colado ao muro do sítio aeroportuário. É distante do Corpo da Guarda, o prédio de movimentação dos plantonistas.
É o ponto onde estão os soldados Francisco Cleoman Fontenele Filho, 19 e Robson Mendonça Cunha, 18. É o primeiro serviço deles juntos como sentinelas, 24/48h. Deixariam o expediente na manhã seguinte, teriam o fim de semana de folga. Cleoman combinara de ir para uma festa de forró com a namorada, Gabriella Wanderley, e um grupo de amigos. Robson prometeu que, tão logo chegasse no sábado, sairia com a tia, irmã de sua mãe, para resolver demandas da família.
No NI-14, uma aparelhagem do Departamento de Proteção de Vôo (DPV). O sistema repassa informações ao controle do tráfego aéreo local. Os dois soldados portam suas pistolas 9mm. Por volta das 17h40min, uma viatura do rancho, a cozinha do quartel, passa no NI-14 e são entregues as marmitas com as refeições dos recrutas. Menos de uma hora depois, os dois seriam assassinados. E 20 anos depois, ninguém foi punido pelo crime.
O relato detalhado é de um ex-militar, cabo na época, testemunha dos fatos daquele 10/9/2004 e dos dias seguintes. Seu nome não será revelado. A testemunha ouvida pelo O POVO foi ao NI-14 naquela noite. O duplo homicídio, até hoje sem autor ou autores descobertos, chegou a ser tratado inicialmente como homicídio seguido de suicídio. A tese de peritos federais foi desconstruída poucos dias adiante e a Justiça Militar considerou como assassinato.
No alvoroço das primeiras informações, um episódio quase piora a tragédia. A notícia da possível invasão deixa o ambiente tenso. O oficial de dia, um aspirante que passava perto do Posto 14 com outro soldado, ouve os tiros e retorna às pressas. Teria decidido não permanecer nem deixar alguém no local ou avisar por rádio. Optou por buscar reforços. Sua arma teria voltado desengatilhada e, quando a tropa é chamada para entrar em formação de emergência, acontece um disparo acidental. Vários soldados enfileirados em frente ao Corpo da Guarda e, por sorte, ninguém sai baleado.
Pelo menos duas picapes, com dois militares cada, partem logo para o Posto 14, numa certa distância entre elas. Os primeiros que chegam encontram os corpos ainda sangrando. O de Robson caído, braços para trás, atravessado numa diagonal sobre o de Cleoman. Um tiro em cada, altura da testa. Suas armas caídas bem perto das mãos. Incomum, um cadeado trava o acesso ao alojamento. "Acho que não foram eles (que fecharam). Não tinha porque ficarem trancados depois das seis da noite", descreve.
Com um alicate turquesa, o soldado (era um dos corneteiros da turma) corta a tranca. Ele e o cabo constatam as mortes. Evitam tocar nas vítimas. “Tinha acabado de acontecer o crime. Eles jantaram, tanto que estava lá a marmita amassadinha no lixo”. Havia mais dúvidas que certezas. Mesmo o terreno iluminado, teme-se por alguém ainda à espreita na mata alta ao redor ou até dentro do posto. O cabo e o corneteiro ficam de pistola em punho.
Hoje trabalhando como motorista, ele interrompe a entrevista, põe as duas mãos no rosto e começa a chorar. "P*q*p*, eu senti a cena agora, senti a cena. Parecia um filme. Faz 20 anos e não sabia que iria me emocionar assim". Após tomar um pouco de água, recompõe-se e se dispõe a continuar contando. "Fico arrepiado de me lembrar e falar. Me senti muito mal".
Na sequência, descreve que outras viaturas chegaram. Entre elas a da Polícia da Aeronáutica (PA). Um sargento perguntou "tem mais alguém aí dentro (do posto)?", e ele ainda não tinha a resposta. "O comandante da patrulha entrou. Pra ver se não tinha mais ninguém nas outras salas. ‘Algum de vocês tocou em alguma arma?’. Não, senhor. Chegamos nem a ver pulsação. O local foi isolado em seguida.
Quem matou? “Acho que foi mais de uma pessoa. E lá de dentro mesmo. É gente que conhece. Quem vai pular para dentro do muro de um quartel com os caras armados lá? Por mais que fosse um assassino de primeira, não iria fazer isso. Foi gente lá de dentro”, considera.
O ex-militar confirma que houve uma ordem na época, para que não comentassem sobre o caso. Nem dentro ou fora da Base. Havia cerca de 70 pessoas de serviço naquela noite. “A ordem foi ninguém dizer nada para ninguém por telefone. E ficar sobreaviso dentro do quartel para, no dia seguinte, fazer o exame de parafina (detecção de pólvora). Todo mundo fez, inclusive quem trabalhava no hospital e na cozinha”. O silêncio mandado daquele tempo dura na tropa até hoje.
Gabriella Wanderley saiu da aula às 18 horas e, da sala da coordenação do colégio, pediu para ligar para o namorado Cleoman Filho. Estavam juntos desde janeiro daquele 2004. O soldado estava de serviço na Base Aérea e ela queria combinar sobre a festa que iriam na folga dele, no sábado, 11 de setembro.
Na ligação, de repente, a estudante, à época com 17 anos, ouviu o som de um tiro. Depois a voz dele, o barulho de uma possível briga, um outro tiro, um som ofegante próximo ao aparelho e a ligação interrompida.
Em casa, foi avisada que o algo grave que suspeitava havia sido a morte de seu namorado e de outro soldado. Gabriella, hoje advogada e professora universitária, diz que o caso influenciou sua vida acadêmica e profissional. A seguir, os principais trechos da entrevista:
O POVO - Como foi aquele dia?
Gabriella - Infelizmente a lembrança ainda é muito viva, apesar do tempo que já se passou. Naquele dia eu estava em aula. Fazia o ensino médio. A aula acabava 18 horas. Assim que a aula acabou eu me dirigi à coordenação e pedi para fazer uma ligação. (Na Base Aérea) a gente passava por uma central. Liguei e pedi para me direcionarem ao Posto 14.
OP - Não tinha celular na época?
Gabriella - Tinha, mas eu não estava com celular. Eu sabia onde ele estava porque ele me passava as escalas onde cumpriria serviço. Conversamos brevemente sobre planos que a gente tinha para o fim de semana. Ele tinha acabado de retornar de uma viagem para São Paulo, pela FAB. Passou alguns dias com uma folga e esse seria o primeiro dia que ele retornou ao trabalho após essa viagem.
Liguei para combinarmos o dia da folga, que iríamos a uma festa de forró. Eu ia contratar um carro para nos levar, porque ele não bebia dirigindo. Aí, quando eu estava falando o horário que o carro iria nos buscar, dizendo quem poderia ir com a gente no carro, escutei o primeiro estampido. Até então eu não sabia que era um tiro, não conhecia o som de um tiro. Para mim parecia uma explosão, de tão alto que estava, próximo ao telefone.
OP- Você ouviu só um tiro primeiro?
Gabriella - Primeiro um tiro. Aí ele ficou em silêncio junto comigo ao telefone. Os dois em silêncio após esse estampido. Passamos alguns segundos em silêncio, não consigo precisar quantos segundos. Mas logo após escutei ele falar com uma pessoa. Ele disse "ei, mah", expressão bem nordestina, abreviação de "macho". Como se ele estivesse falando com alguém conhecido. Não era uma pessoa desconhecida. E aí escutei sons que pareciam pessoas brigando. Eram urros, aquele som de voz que não sai direito, pancadas, porradas.
OP - Luta corporal?
Gabriella - Isso, luta corporal. E aí eu escutei o segundo tiro. Esse mais próximo ainda. Tão próximo ao ponto de eu achar que tinha explodido a Base Aérea. Que uma bomba tivesse caído ou o local que ele estava tivesse explodido. Aí alguém se direcionou ao telefone que eu estava, escutei a respiração da pessoa, a pessoa fez (imita um suspiro) e me colocou na linha de espera.
Aí voltei para a central. Já comecei a explicar o que achei que fosse. "Olhe, acabou de cair ou de explodir alguma coisa no posto 14. Uma bomba explodiu lá, o barulho foi muito alto. Ele deve estar queimado. Vocês precisam ver o que aconteceu”. Desliguei o telefone e fui pra casa. Falei com o primo dele, que na época tínhamos grande proximidade. "Davi, aconteceu alguma coisa. Falei com o Pêu, ele não me responde mais. O pessoal da Base Aérea não me atende mais, não sei o que está acontecendo".
Davi foi até minha casa. Disse que eu precisava ir até a casa do Pêu, que realmente tinha acontecido alguma coisa. Liguei para minha mãe, eu era menor de idade na época. Pedi que ela me levasse até a casa dele. A mãe dele morava próximo ao meu colégio. Quando eu cheguei, perguntei o que foi que aconteceu, se ele estava bem, se estava muito machucado, se a explosão foi grande. Aí a irmã dele falou comigo, “o Pêu está no IML”. Achei que ele estivesse no hospital, que estivesse vivo. O chão da gente some, a gente fica naquele delay, não consegue explicar quanto tempo passa.
OP - O horário exato foi qual?
Gabriella - A aula acabava 18 horas, eu consegui fazer a ligação entre 18h05 e 18h15. Foi o tempo que eu consegui autorização para ligar do telefone do colégio.
OP - Ele tinha falado alguma coisa estranha de dentro da Base? Confidenciou algo?
Gabriella - Antes da viagem, ele relatava algumas irregularidades dentro da Base Aérea. Uso de drogas, por exemplo. Algumas rivalidades. Ele chegou a mencionar uma vez que furtaram peças da arma dele e ele recebeu uma punição. Não falava de forma muito detalhada. Ele só disse de forma muito expressa que não queria trabalhar com armas. "Não é isso que eu quero. Vou estudar para fazer alguma prova lá dentro e sair dessa turma que estou. E detesto quando tenho que pegar em arma".
Ele contou de um momento que ele teve uma desavença com um rapaz. Isso tudo eu falei para a promotoria na época. Tinha um rapaz que desmontou a arma dele. Porque eles têm que montar a arma num certo período, têm que fazer algumas atividades. Se eles não fazem de acordo com o que determina o superior, acabam recebendo punição. Ele me relatou dessa desavença com esse rapaz.
Na época eu relatei para o promotor Alexandre Saraiva. Ele quis saber se o Pêu tinha alguma rixa com alguém. Foi só essa discussão que me lembro, da época que ele contou. Lembro que ele falava de irregularidades. Fios de cobre que eram furtados de dentro da Base Aérea, venda de pneus e uso de drogas. Não falou em venda, falou em uso dentro da Base.
OP - Você conhecia o Robson?
Gabriella - Não.
OP - Sobre as desavenças com alguém da Base, ele chegou a citar nomes? Chegou a mencionar algum perigo que pudesse estar correndo?
Gabriella - Infelizmente ele só falava que não queria estar com aquela equipe, nem pegar em armas. Mas ele nunca me disse um nome, não deixou clara uma situação que eu pudesse associar a essa morte dele. Na época tentei lembrar tudo, conversei diversas vezes com o doutor Alexandre. Essa proximidade me ensinou muito. Acabei cursando Direito, me formei. Hoje eu sou professora universitária e coordenadora do curso de Direito. Tudo girou em torno dessa minha relação com essa tragédia. Infelizmente, nada que eu lembrava ajudou na solução do caso.
OP - Como testemunha e com sua formação em direito, você tem qual tese para esse caso?
Gabriella - A vida é muito curiosa e a Terra é redonda não à toa. A gente vive em círculos e de ciclos. Na minha profissão, acabei conhecendo uma pessoa que trabalhava no dia em que ele foi assassinado dentro da Base Aérea. Essa pessoa me confidenciou que todos que estavam de plantão naquele dia, que eram em torno de 70 servidores, que os 70 sabem o que aconteceu. Claro, ninguém vai falar, ninguém tem coragem de falar. Não quero identificar essa pessoa.
OP - E a motivação para o crime?
Gabriella - Eu fiz de tudo, pesquisei, me formei pensando em vingança, achando que eu iria pegar o assassino. Doce ilusão, virei professora.
OP - Houve quebra de sigilo da sua ligação com o Pêu?
Gabriella - Cheguei a ir na Base Aérea no outro dia para falar que tinha falado com ele, explicar essa situação. Ainda estava na investigação interna. Fui espontaneamente com minha mãe. A pessoa que me recebeu estava com uma folha na mão, lembro nitidamente de um grifo em cima de um número de telefone, com marca-texto. E ele disse "você está equivocada, você nunca ligou pra cá". Eu disse "liguei e vou provar".
E ele falava com toda convicção, olhando nos meus olhos, para uma menina que na época eu era, querendo me convencer que eu tinha inventado tudo aquilo. Era um oficial. Nesse dia, a gente demorou muito lá dentro. Não queriam deixar a gente sair. Minha mãe disse "tem coisa errada aqui, vamos sair". Quando foi contratado um advogado assistente, ele pediu a quebra do sigilo telefônico do colégio para provar que a minha ligação tinha ocorrido naquele horário. Porque até então eles negavam a existência da ligação.
OP - Houve mais algum estranhamento na conversa com os militares?
Gabriella - A reação de tentar me descredibilizar. Só não falaram que eu estava louca, mas davam a entender que eu estava desequilibrada pelo que estava acontecendo, que eu estava sob forte emoção, que eu não tinha falado com ele. A todo momento tentando tirar esse vínculo. O que mais me comoveu com a situação toda é que até então estavam desconfiando. Logo surgiu a tese do padre José Cheregato (ex-capelão da Base, único réu no processo do caso, absolvido em 2008), mas eu não sabia.
Fui ao enterro, que foi no domingo, na própria capela da Base Aérea. Não tinha visto o corpo ainda. Estava realmente abalada, fiquei na última cadeira, até o momento que minha mãe disse "vamos, você virou noite, vamos embora". E eu disse que iria ver o corpo. Quando me levantei, que vi o corpo, acabei sentindo uma fraqueza, me lembro, e quem me amparou foi o próprio padre Cheregato. Ele olhou pra mim e me disse assim: "não fui eu". E eu encontrei ele três anos depois, num dos julgamentos, lá na Auditoria Militar.
Quando terminou o julgamento, ele foi até mim, estendeu a mão. As beatas estavam cantando parabéns pra ele, e ele novamente disse "não fui eu" olhando pra mim. Fez questão de reforçar essa tese. (O POVO tentou falar com o ex-capelão, que mora em Manaus. Os advogados que atuaram em sua defesa, Paulo Quezado e João Marcelo Pedrosa, disseram que ele estaria debilitado, sem condições de ser entrevistado).
OP - Você quer dizer algo para encerrarmos a entrevista?
Gabriella - Vou finalizar com palavras do próprio Pêu. Eu me tornei espírita, num evento que aconteceu após a morte dele. Fui atrás de uma carta do meu pai e dez anos depois do ocorrido recebi uma carta do Pêu. Uma carta que eu li para a mãe dele. Ela teve um AVC na minha frente enquanto eu lia a carta que avisaria que ela teria um problema de saúde.
Foi algo assim que não é fácil fugir quando a evidência é forte. Nessa carta, ele dizia que esse crime não é para ser desvendado nessa vida. Que não era algo que teria solução aqui. Como a mãe dele é muito católica, tem muita fé, a família inteira, eu também acredito que exista uma justiça divina e dessa esse autor não escapa. Ele pode ter escapado da justiça do homem, mas da justiça de Deus ele não vai escapar jamais.
Série especial traz memória de crimes que tiveram grande repercussão e seguem, até hoje, envoltos em mistério, sem autoria conhecida