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Eduardo Coutinho: Uma década sem o cineasta da palavra
Reportagem Seriada

Eduardo Coutinho: Uma década sem o cineasta da palavra

Falecido em fevereiro de 2014, Coutinho produziu filmes fundamentais do cinema nacional. Apaixonado pelo sertão nordestino, fez da palavra o elemento basilar de seu projeto ético e artístico
Episódio 1

Eduardo Coutinho: Uma década sem o cineasta da palavra

Falecido em fevereiro de 2014, Coutinho produziu filmes fundamentais do cinema nacional. Apaixonado pelo sertão nordestino, fez da palavra o elemento basilar de seu projeto ético e artístico
Episódio 1
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No cinema de Eduardo Coutinho, documentarista paulistano falecido há exatos dez anos, nada importa mais que os encontros. Limitam-se o espaço e o tempo, reduzidos ao elementar, ao indispensável, para que se dilatem as trocas, os diálogos. Fundador de um projeto ético e estético que renovou a abordagem documental na sétima arte, Coutinho fez de sua trajetória uma homenagem às potencialidades da conversa.

Foi longo e cheio de desvios o caminho que escolheu trilhar. Começou, nos anos 1960, no universo infinito da ficção. Dirigiu "O pacto" (1966), "O homem que comprou o mundo" (1968) e "Faustão" (1971). O primeiro, um filme de conquistas amorosas; o segundo, com Flávio Migliaccio, uma sátira política influenciada pelo que Glauber Rocha vinha fazendo em seu cinema; o último, uma tragédia shakespeariana ajustada ao cangaço.

"Mas ele viu que não tinha vocação para esse tipo de cinema que envolvia grandes equipes e muito dinheiro. Então, foi abrindo mão, foi se desiludindo com o cinema de ficção", explica o jornalista Carlos Alberto Mattos, autor de "Eduardo Coutinho: O homem que caiu na real" (2003). O título do livro brinca com as decisões do cineasta: Coutinho “caiu na real” porque, casado e com um filho, admitiu que precisava de um emprego que os sustentasse.

Coutinho faleceu há dez anos, no dia 2 de fevereiro de 2014(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Coutinho faleceu há dez anos, no dia 2 de fevereiro de 2014

Esse “real” indica ainda outro movimento de abandono e renovação. Afastando-se da fantasia da ficção, Coutinho “cai” nos domínios concretos da realidade: em 1975 é convidado a trabalhar produzindo documentários para o Globo Repórter, cargo que, apesar da desconfiança do cineasta em relação às ligações da emissora com a Ditadura Militar, acaba aceitando.

É para o Globo Repórter que Coutinho dirige “Theodorico, o imperador do Sertão” (1978), documentário no qual começaria a experimentar com as subversões narrativas que se transformariam em uma de suas marcas. No filme, um coronel latifundiário do Rio Grande do Norte assume as rédeas da filmagem para exibir, sem pudores, sua estrutura de exploração econômica e social.

O que Coutinho começa a fazer depois da bem sucedida parceria com o Globo Repórter marca, de certa forma, o retorno ao projeto ético que ele havia começado a colocar em prática em 1964 e que foi interrompido pelo golpe militar em 31 de março do mesmo ano. “Cabra marcado para morrer”, sua obra mais conhecida e peça fundamental para a história do cinema nacional, com sua estrutura baseada no diálogo, dava indícios da depuração da palavra que Coutinho executaria a partir da segunda metade dos anos 1990.

Cena do filme "Theodorico, o imperador do sertão", de 1978, realizado para o Globo Repórter(Foto: Globo/Reprodução)
Foto: Globo/Reprodução Cena do filme "Theodorico, o imperador do sertão", de 1978, realizado para o Globo Repórter

 

 

Para Coutinho, 'o som mais bonito que existe é o da voz humana'

“Fora o ‘Cabra marcado para morrer’, é a essa fase que as pessoas mais associam o Coutinho. É uma fase caracterizada pela palavra, pela interação, pela conversa — ele chamava de ‘conversa’, e não de ‘entrevista’”, afirma o jornalista Carlos Alberto Mattos. Hoje, fala-se de Coutinho como um “cineasta de conversa”, e de sua produção como “cinema de palavra”, reconhecendo nesse contato o elemento central de sua obra.

Documentários como “Santo forte” (1999), “Edifício Master” (2002) e “Peões” (2004) são desse período. A partir de então, filme após filme, numa experimentação progressiva, Coutinho faz desaparecer o aparato do cinema, seu espetáculo, seus adornos, direcionando as atenções para o que há de essencial naqueles encontros. O também cineasta João Moreira Salles chamou essa estrutura espartana de “gramática mínima de Eduardo Coutinho".

Em certa ocasião, Coutinho afirmou que “o som mais bonito que existe é o da voz humana”. Reduzindo o supérfluo, acentuava o essencial: o outro, a pessoa, os donos dessas vozes. “Ele tinha a noção de que quanto mais você escava num único lugar, mais fundo você vai, e acaba alcançando alguma coisa profunda”, afirma Mattos. Coutinho, em seus espaços reduzidos geográfica e temporalmente, sondava as profundezas de seus interlocutores.

Cena de "Cabra marcado para morrer", de 1984, mostra Coutinho conversando com as personagens da história(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Cena de "Cabra marcado para morrer", de 1984, mostra Coutinho conversando com as personagens da história

É por isso que também desprezava ensaios e roteiros, preferindo a eles as palavras de improviso. O que contava, para ele, para seu filme, era a primeira história, a primeira fala de seus personagens. “Ele participava como instigador, era sua própria ferramenta de trabalho. Provocava, puxava a memória e a imaginação dos interlocutores. Era essa força que está ali pra fazer com que a conversa evolua e aconteça na frente da câmera”, argumenta Mattos.

Na disposição dos cenários, sua cadeira estava sempre a poucos metros da cadeira do outro. Queria olhar nos olhos. E ser olhado. Todos são personagens, inclusive ele. Não era a verdade que ele buscava, pois a sabia inatingível, incapturável pelas lentes da câmera. O que estava por trás, o não dito, o impronunciável, os gestos, sabia Coutinho, eram tão importantes quanto as revelações declaradas.

“A entrevista vira uma cena de cinema. Não é só uma ferramenta, é uma cena em si. Tem um humor, uma vivacidade que vem na expressão das pessoas, no gestual, na maneira de olhar, de conduzir o corpo na cadeira. Para que isso aconteça, Coutinho tem que estar presente, sem disfarçar, sem dissimular, sem fingir que ali não tem ninguém”, analisa Mattos, acrescentando que o documentarista não acreditava em um cinema construído apenas a partir da observação.

A chegada de Coutinho e sua equipe ao edifício de Copacabana no qual passariam uma semana conversando com moradores para o filme "Edifício Master", de 2002(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução A chegada de Coutinho e sua equipe ao edifício de Copacabana no qual passariam uma semana conversando com moradores para o filme "Edifício Master", de 2002

Coutinho subvertia o documentário tradicional e os tradicionais documentaristas. Enquanto aqueles costumavam impor sua própria voz, ou sua tese, como instância condutora da narrativa, Coutinho deixava que a trama fosse levada pelos que aceitavam conversar com ele. Ninguém estava ali “como representante de alguma categoria sociológica”, escreveu João Moreira Salles. No cinema de Coutinho, não havia uma tese a ser provada.

 

 

Política do indivíduo

Por mais que tenha feito, com “Cabra marcado para morrer”, lançado apenas em 1984, um dos filme seminais da redemocratização, Eduardo Coutinho recusava, por sua conduta e pela forma de sua arte, categorizações que, não muito tempo depois de sua morte, impulsionadas pelo fortalecimento das políticas identitárias, se tornaram fundamentais para a arte e compulsórias para os artistas.

Os entrevistados de Coutinho — e o tratamento que o autor dava para a captação de suas histórias — escapavam dos esforços de classificação e rotulagem tão caros à sociologia. Tratando as pessoas como representantes delas mesmas, Coutinho dava “rasteiras nas nossas convicções”, como escreveu João Moreira Salles. Sua investigação de escuta e fala impedia que a singularidade de seus interlocutores fosse surrupiada por teses generalizantes.

Uma das personagens de "Jogo de cena", de 2007, no qual o cineasta brinca com as ideias de verdade e ficção(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Uma das personagens de "Jogo de cena", de 2007, no qual o cineasta brinca com as ideias de verdade e ficção

“As categorias aparecem a partir do discurso das pessoas, vão sendo trazidas pela subjetividade de cada um, e não o contrário”, afirma pesquisadora e roteirista do Núcleo de Audiovisual do OP+, Luana Sampaio, autora de estudo sobre os elementos de arquivo, memória e política na construção da narrativa do filme “Peões” (2004), sobre a classe operária do ABC paulista e sua participação nos movimentos sindicais da década de 1980.

“Não é um filme sobre as greves, mas ele chega às greves por meio da experiência de cada pessoa”, argumenta Sampaio. A pesquisadora ainda chama atenção para outro aspecto dessa construção afetiva realizada por Coutinho: no filme, o diretor resgata fotografias dos operários nas manifestações do passado e as apresenta a eles, vinte anos depois. “Ele diz que o crime do documentário é roubar a imagem da pessoa, então é um gesto ético muito forte ele devolver essa imagem”, analisa.

Em "Peões", de 2004, Coutinho devolve a antigos operários do ABC paulista suas fotos em atos do movimento sindical dos anos 80(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Em "Peões", de 2004, Coutinho devolve a antigos operários do ABC paulista suas fotos em atos do movimento sindical dos anos 80

O cineasta também fugia de qualquer pretensão de pureza ou perfeição. Não havia, para ele, quem fosse puramente infeliz, aquele que se mostrasse perfeitamente miserável. Coutinho estava interessado nas pequenas epifanias pessoais que retiram seus personagens do enfado das rotinas (como uma música de Frank Sinatra tocada nas alturas, em “Edifício Máster”) e das angústias da história (como a menção emocionada à peixinha de uma animação da Disney, em “Jogo de cena”).

Em uma entrevista da década de 1990, declarou: “O filme não termina com uma resposta-síntese. Eu não faço cinema para militantes”. Mas se recusava respostas, Coutinho defendia, em seu cinema, uma espécie de contágio revelador. Dizia que era preciso “se contaminar”, e que dessa contaminação nasceria a verdadeira troca — ou, pelo menos, uma troca menos falsa.

 

 

O Nordeste como identidade

Eduardo Coutinho dizia que o “absurdo de filmar pessoas falando” era o que o mantinha vivo. E, para ele, poucos lugares conjugavam tão bem as possibilidades desse absurdo quanto o sertão nordestino. “Porque lá a invenção verbal é muito forte. O lugar no Brasil onde se inventa melhor é no sertão”, argumentou o diretor em conversa com a pesquisadora Consuelo Lins em 2004.

Apesar de nascido em São Paulo, Coutinho produziu boa parte de sua filmografia no Nordeste. Segundo a pesquisadora Kamilla Medeiros, é a partir de “Cabra marcado para morrer”, no início da década de 1960, que se estabelece a relação do diretor com a região: a ideia para o filme, que se desenrola no município paraibano de Sapé, surgiu quando Coutinho, integrando uma caravana da União Nacional dos Estudantes, a UNE Volante, viajava pelos estados da região.

Créditos iniciais de "Cabra marcado para morrer", filme que teve suas filmagens interrompidas em 1964 pelo golpe militar e só foi retomado em 1984(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Créditos iniciais de "Cabra marcado para morrer", filme que teve suas filmagens interrompidas em 1964 pelo golpe militar e só foi retomado em 1984

Medeiros, que é autora da pesquisa “O fim e o princípio: O reencontro de Eduardo Coutinho com o Nordeste”, destaca que o fascínio do cineasta pela região — sobretudo pelo sertão do interior da Paraíba e do Pernambuco — passava pelo reconhecimento de uma oralidade particular. “O que ele mais admirava era a força fabulatória do nordestino, a forma como as pessoas contavam suas histórias, uma espécie de poética do sertanejo. E não só a fala, mas também a forma como o corpo reverbera essa fala”, argumenta.

É desse interesse vital pela fala e pelos gestos, marca essencial de sua filmografia, que, segundo a pesquisadora Luana Sampaio, se compõe o legado do cineasta. "Ele está em todo mundo e a história do Brasil está naqueles filmes. Várias pessoas vieram dessa escola, dessa busca por uma linguagem documental que não é jornalística. São valores que bebem no Coutinho, não dá pra não passar por ele. Ele está sempre ali", resume.

 

 

“Ele tinha essa paixão pela forma de falar”

O cineasta que, com perguntas de uma sagacidade desconcertante, mergulhava na intimidade de seus interlocutores, foi um homem discreto e introspectivo quando afastado de seu ofício. Nas palavras de Pedro Coutinho, filho do diretor, foi esse homem “fechado, muito distante” que conheceu em casa. Levou tempo até que ele percebesse a intensidade do que o pai criava quando estava no comando de uma câmera.

Coutinho, o filho, que é promotor de justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), conversou com O POVO+ sobre sua experiência familiar e sobre a descoberta que teve, já adolescente, da importância do pai no panorama do cinema nacional. Transitando entre passado e futuro, reflete sobre qual filme teria sido seu favorito e especula sobre o que o cineasta estaria produzindo caso estivesse vivo.

Eduardo Coutinho em Paris, em 1959, quando frequentou o Institut des Hautes Études Cinématographiques(Foto: Acervo familiar)
Foto: Acervo familiar Eduardo Coutinho em Paris, em 1959, quando frequentou o Institut des Hautes Études Cinématographiques

O POVO+: Um tópico constante das entrevistas que tenho feito pra essa reportagem é a especulação sobre o que o Coutinho estaria filmando hoje. Todo mundo se propõe a pensar nisso. Algumas pessoas apostam que ele estaria indo em direção a um cinema mais experimental. Outras, que ele estaria voltado para outras figuras, como as crianças. O que você acha? Ele compartilhou ideias nesse sentido, sobre novos projetos ou novas ideias?

Pedro Coutinho: Do ponto de vista da saúde, é muito difícil que ele ainda estivesse filmando. A saúde dele com 80 anos já era muito ruim. Ele tinha um enfisema pulmonar. Mas esse exercício de imaginar o que ele estaria filmando é muito interessante, muita gente fala disso comigo. A questão das crianças, era uma vontade muito grande que ele tinha de filmar, conversar com crianças, pelo tipo de resposta que elas dão. Mas isso é um trabalho muito difícil. Ele tinha comentado muito sobre esse tema, mas sabia que era muito difícil pela questão da autorização, da fiscalização da Justiça da Infância e da Juventude.

Em relação ao trabalho experimental, eu acho difícil. Eu acho que ele tentou seguir por caminho com o “Moscou” e com “Um dia na vida” e acho que não deu o resultado que ele esperava. E aí ele volta, com “As canções” e com o filme que acabou resultando no “Últimas Conversas”, para um sistema mais tradicional de entrevista. Então, eu acho difícil que ele fosse, entre os 80 e os 90 anos, de novo para uma área mais experimental.

O POVO+: Dos filmes que ele dirigiu, qual foi para ele o mais marcante, ou o favorito, aquele para o qual ele mais retornava?

Pedro Coutinho: Sem dúvida o “Cabra marcado para morrer”, que é o filme da vida dele. É basicamente o filme que ele deixou inacabado em 1964 e ao qual ele volta de 81 a 84 para terminar, porque ele sentia como um dever, uma responsabilidade que tinha com as pessoas que filmou, que sofreram muito pela questão da ditadura. Então, eu acho que esse é um filme no qual, quando ele volta, ele resgata uma dívida moral que sentia. E é o filme que também resgata ele para o cinema, que ele tinha largado. Então eu acho que foi o mais marcante na vida do meu pai.

Eduardo e o filho, Pedro Coutinho, em 2010(Foto: Acervo familiar)
Foto: Acervo familiar Eduardo e o filho, Pedro Coutinho, em 2010

O POVO+: Em que ponto de sua vida familiar você percebeu que seu pai era um nome fundamental para o cinema brasileiro? Quando “caiu essa ficha”?

Pedro Coutinho: Comecei a entender quando ele volta para terminar o “Cabra”, em 1984. Eu tinha de 12 para 13 anos, não tinha como assimilar. Mas ali, ele se torna realmente relevante. Até então a participação dele no cinema era muito discreta, e então, quando eu tinha 13 anos, ele ganha uma importância muito grande, com muitos festivais, viagens, etc.

Mas depois, isso meio que desaparece. Ele vai trabalhar com vídeo e não consegue mais ter o mesmo sucesso. Acho que é só na segunda retomada, que é com “Santo forte”, principalmente com “Edifício Master”, quando ele ganha muitos prêmios, que eu tenho realmente a noção de que ele é um sentido próprio, que tem um caminho próprio para o documentário e para o cinema brasileiro. Eu já era bem mais velho.

O POVO+: Quais são suas primeiras memórias com o seu pai em relação ao cinema? E as últimas?

Pedro Coutinho: Eu tenho, de novo, a questão do “Cabra”, porque eu participei minimamente, fazendo uma dublagem de uma cena em que a Elizabeth Teixeira e a família cantam uma música, um coco, para não ficarem intimidados pela presença dos jagunços em volta da casa dela. Eu participei da dublagem com meu irmão. Ali é a primeira memória que tenho de meu pai com o cinema. Até então ele estava na Globo, no Globo Repórter.

E as últimas memórias são do trabalho que ele vinha desenvolvendo no “Últimas conversas”, que seria um filme bem diferente do que o João (João Moreira Salles) e a Jordana Berg acabaram fazendo, que mudaram um pouco o ângulo do filme. E também algumas ideias que ele tinha de fazer um filme com citações, o mais esdrúxulas possíveis. Citações de receitas antigas, de manuais para as mulheres se comportarem nos séculos XVIII e XIX.

Ele mesmo achava que talvez não desse para fazer um longa-metragem, mas tinha a ideia de filmar alguma coisa assim. Ele sempre tinha que discutir novas ideias porque sentia essa necessidade de continuar filmando, até porque tinha que sustentar a família, minha mãe e o meu irmão. Então, ele tinha que pensar em projetos novos. Mas, realmente, ele estava numa fase muito difícil, com 80 anos e a saúde muito ruim.

Com a neta, Maria Eduarda, filha de Pedro(Foto: Acervo familiar)
Foto: Acervo familiar Com a neta, Maria Eduarda, filha de Pedro

O POVO+: Quando penso no quão acurada era a sensibilidade do Coutinho, no quão disposto a ouvir as histórias dos outros ele parecia ser, fico pensando em como era a convivência doméstica com o ele. O Coutinho que fazia e aparecia nos documentários era o mesmo Coutinho com quem vocês dividiam seus dias? Ou descobrir o cinema do seu pai foi descobrir um lado dele que você não conhecia?

Pedro Coutinho: Na convivência doméstica, meu pai era muito diferente daquele que aparece no cinema. Ele não era essa pessoa curiosa que senta e pergunta sobre a sua vida. Era uma pessoa mais fechada, muito distante. O cinema e a televisão acabavam afastando ele da nossa presença cotidiana. Durante muito tempo ele filmou fora de casa, e isso afastava um pouco. Eu e meu irmão sentimos muito isso, essa falta dele, da presença. Não era a mesma relação que ele tinha de sentar e estar aberto para a pessoa contar a sua vida. Realmente era bem diferente.

Mas por isso mesmo, como você bem colocou, ver os filmes, principalmente ler as críticas, entender a visão que a academia tem sobre o trabalho dele, é muito importante para descobrir outras facetas do meu pai que eu mesmo não conhecia. O trabalho dele é parte da vida dele, então isso para mim também é muito importante.

O POVO+: Apesar de paulista, seu pai demonstrou um interesse forte e duradouro pelo Nordeste, em especial, me parece, pelo sertão nordestino. Um antigo colega de trabalho dele disse, em certa ocasião, que a vida interior do Coutinho estava no Nordeste, que era com aquilo que ele mais se identificava. Havia, de fato, essa identificação íntima?

Pedro Coutinho: Com certeza havia uma identificação muito grande com a forma de falar do nordestino. Não o da zona da mata, mas o do interior, do agreste e do sertão. Era uma forma de falar que o agradava muito e que ele dizia que o Sul do país não tinha. Ele tinha essa paixão pela forma de falar. “O fim e o princípio”, um filme mais recente, mostra bem isso: a forma de se comunicar, de se representar, de falar das coisas. Mesmo pessoas que não eram alfabetizadas tinham uma forma de falar muito rebuscada, se comparamos com pessoas do Sul e do Sudeste. Ele tinha essa identificação, não é à toa que se casou com a minha mãe, uma mulher nordestina, pernambucana. Então, acho que ele tinha realmente essa identificação muito forte, embora tenha feito filmes na região do Rio e São Paulo também.

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