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Infância negra e os efeitos do racismo no corpo, na mente e no desenvolvimento
Reportagem Seriada

Infância negra e os efeitos do racismo no corpo, na mente e no desenvolvimento

Exposição à violência pode gerar danos na autoestima e identidade, ao provocar estado de alarme e ansiedade nos primeiros anos de vida. Para além do combate ao racismo na esfera criminal, a educação antirracista ajuda a reverter essas consequências na primeira infância
Episódio 1

Infância negra e os efeitos do racismo no corpo, na mente e no desenvolvimento

Exposição à violência pode gerar danos na autoestima e identidade, ao provocar estado de alarme e ansiedade nos primeiros anos de vida. Para além do combate ao racismo na esfera criminal, a educação antirracista ajuda a reverter essas consequências na primeira infância
Episódio 1
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“É feio. A gente tem que se defender.” A frase é de Ísis Flor, de 7 anos, ao ser questionada sobre o que é racismo e relembrar do crime sofrido pela mãe, a professora e atriz Liana Matias, 38, em setembro deste ano. De forma direta e indireta, a discriminação racial ainda é uma violência que atinge todas as fases da vida da pessoa negra, desde a infância.

Um tratamento que cause exposição indevida, humilhação e vergonha em razão de raça e cor são características do racismo que atinge a coletividade. Na infância das pessoas pretas, o crime tem danos de curto e longo prazo. Afeta o corpo, a mente e o desenvolvimento.

Liana Matias e Ísis Flor: luta contra o racismo começa na infância (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Liana Matias e Ísis Flor: luta contra o racismo começa na infância

Estudos sobre racismo na infância da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), divulgado em dezembro passado, e da Universidade de Harvard, de 2020, revelam que a exposição ao crime causa efeitos que variam entre aumento dos níveis de “estresse tóxico” Exposição frequente e contínua da criança a eventos negativos, como brigas e situaçãoes de abuso físico e emocional. , estado de alerta e possibilidade de doenças crônicas na fase adulta.

O estado de alarme provoca ansiedade e sensação de ameaça, como se a criança estivesse a espera da próxima violência, de acordo com a psicóloga e especialista em atendimento ao público infantojuvenil negro, Brenda Magalhães. “A autoestima da criança é afetada, provoca prejuízos no rendimento escolar e dificuldades na aprendizagem, impactando na evasão escolar”, explica.

Liana parou de alisar o cabelo para incentivar a filha a manter os cabelos cacheados (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Liana parou de alisar o cabelo para incentivar a filha a manter os cabelos cacheados

A especialista em psicologia escolar e membro da diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (Abrapee), Cássia Dias, explica que os efeitos a curto prazo mais observados são os não-verbais. As crianças de até 6 anos ainda têm dificuldades de verbalizar o que sentem, então demonstram por meio de ações.

“Mudanças de comportamentos, oscilações de humor, irritabilidade, a criança fica menos falante e introspectiva ou o contrário. Ela pode estar passando por alguma situação traumática. Outras características estão associadas à falta de apetite e sinais de crise emocionais, como choro e isolamento”, alerta a psicóloga.

Alguns desses efeitos foram percebidos no caso de Flor. Liana conta que notou o rendimento escolar da filha cair, além das relações sociais ficarem introspectivas. O assunto voltou a ser dialogado com a menina que, apesar da pouca idade, consegue identificar o grau da violência. “Mamãe, mas racismo é crime!”, afirmou Flor à mãe, na época do caso de racismo sofrido pela mãe.

Liana prepara a filha para casos de racismo na escola (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Liana prepara a filha para casos de racismo na escola

De acordo com Liana, reforçar o diálogo com a filha é importante porque, infelizmente, “é possível que ela passe por situações” como a dela. “Eu preciso educá-la e prepará-la para ela poder lidar com essas situações. Eu converso com ela para ela saber como reagir a situações de racismo”, diz.

Quando tinha 3 anos, Flor relatou que um colega de classe falou sobre a cor de pele dela. “Disse que a pele dela era suja”, conta Liana. Na época, a filha ficou incomodada com o comentário. A mãe conversou sobre os diferentes tipos de pessoas, cores, tipos de cabelos e diversidade. 

O assunto também é trabalhado de forma didática. Livros como “A Menina Bonita do Laço de Fita”, de Ana Maria Machado, e o “Pequeno Manual Antirracista”, de Djamila Ribeiro, estão entre as literaturas que ajudam na educação racial da Flor e reforçam a identidade de Liana e de outras mulheres e crianças negras.

Capa do livro da autora Ana Maria Machado(Foto: DIVULGAÇÃO)
Foto: DIVULGAÇÃO Capa do livro da autora Ana Maria Machado

A psicóloga Brenda Magalhães explica que a infância é a principal fase de aprendizagem e identificação, portanto a educação racial deve ser dialogada desde cedo. “É preciso explicar que existe uma diferença de tratamento. Isso é importante para a construção da identidade de crianças negras, da autoestima e da valorização da representatividade”, comenta.

A especialista ainda ressalta que a violência pode impactar diretamente na forma como as crianças negras se percebem: "Olhar o tom da pele e o cabelo fazem parte dessa percepção e, muitas vezes, pode gerar comparações com outras crianças".

Para enfrentar esses desafios, estratégias como a educação antirracista na infância são necessárias. Os momentos de traumas devem ser acompanhados por atendimento psicológico, orientam as especialistas. 

Em Fortaleza, as crianças podem ser acolhidas de forma gratuita nos 118 postos de saúde do Município. A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) orienta que, em casos de sofrimentos psíquicos severos e prolongados, o paciente deve procurar um dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).

A depender da necessidade, especialmente em casos de transtornos mentais persistentes, crianças e adolescentes de até 17 anos podem receber atendimento em um dos três Caps Infantil da Capital. As unidades funcionam de segunda a sexta-feira, das 8 às 12 horas e das 13 às 17 horas.

Além desse atendimento, as crianças da rede municipal podem ser acolhidas pelos psicólogos escolares, conforme a Secretaria Municipal de Educação (SME). A pasta informa que busca fornecer um ambiente seguro e inclusivo para os estudantes, promovendo a conscientização sobre a importância de combater o racismo e suas consequências na vida de crianças, jovens e adultos.

 


Do crespo ao cacheado:  histórias e valorização da identidade negra

As curvaturas dos cabelos têm forte representatividade étnico-racial e carregam a história ancestral da população negra. Os fios demonstram a importância da valorização da raça dentro de uma sociedade em que, muitas vezes, ressalta apenas a beleza dos cabelos lisos. O nascimento de Maria Laís, hoje com 6 anos, foi essencial para a costureira Brena Mesquita, 28, parar de alisar o cabelo. Ela queria que a filha nascesse com uma referência da valorização da própria identidade. “Era para ela se ver na gente, se ver representada e enaltecer que ela é linda.”

Maria Laís brincando com os cabelos da mãe, Brena Mesquita(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Maria Laís brincando com os cabelos da mãe, Brena Mesquita

Brena acrescenta que o fato de ter sofrido discriminação por causa dos cabelos também foi um dos motivos para enaltecer os fios da filha. “Sempre chamavam a gente de cabelo de 'bombril', e isso irritava muito. Na época, era uma brincadeira que afetava a nossa autoestima, e eu não queria que isso acontecesse com a minha filha”, comenta.

O assunto vai além dos fios, dialogar sobre o tom da pele com a pequena faz parte da educação racial que Brena desenvolve com a filha e é reforçada no Centro de Educação Infantil (CEI) Maristela da Frota Cavalcante, em Fortaleza, onde Laís estuda. “Quanto mais cedo a gente introduzir o assunto nas crianças, mais elas serão empoderadas, vão poder se amar e se tornar adultos com menos traumas e serem o que quiserem”, pontua a mãe.

Brena Mesquita parou de alisar o cabelo para inspirar a filha, Maria Laís, sobre a valorização da sua identidade(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Brena Mesquita parou de alisar o cabelo para inspirar a filha, Maria Laís, sobre a valorização da sua identidade

Encontrar um local onde os fios com curvaturas eram valorizados parecia ser inexistente há um tempo. Os salões sempre existiram, mas nem todos eram para a beleza negra e o cabelo crespo ou cacheado. A especialista em cachos Maysa Rodrigues lembra que o julgamento dos fios em salões tradicionais sempre acontecia com ela, uma mulher negra. “Você chegava aos salões e percebia os olhares de 'eu não vou fazer esse cabelo'. Eu tinha essa dor de não me encaixar nos salões”, conta.

Os sentimentos nunca foram esquecidos e encontrar um local que pudesse ouvir as pessoas de cabelos com curvaturas e valorizá-las moveu a ex-contadora a abrir, em 2021, o Studio Maysa Rodrigues. O salão no bairro Henrique Jorge, em Fortaleza, é especializado em cachos. “A pessoa vem para ser realmente atendida, ela fala sobre as suas dores, e a gente faz o atendimento dela personalizado. Escuto muitas histórias de pessoas que estão aprendendo a se aceitar, que estão em transição capilar e que, além do cabelo, passam pela transição interna com a sociedade para que ela aceite as suas origens”, pontua Maysa. 

 Maysa Rodrigues, cabeleireira especializada em cabelos de pessoas negras(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Maysa Rodrigues, cabeleireira especializada em cabelos de pessoas negras


 

Representatividade em produções culturais auxilia na autoestima de crianças pretas

 

Um dos fatores que colaboram para a construção da personalidade das crianças, principalmente as mais jovens que ainda experimentam os primeiros contatos com o meio social, são as produções culturais, como cinema e literatura. Para uma criança preta, em especial, se ver representada nos primeiros anos de vida pode trazer benefícios para a autoestima e socialização.

Esse é o pensamento defendido pela mestra em Educação e membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Ayodele Floriano. “Ter essa imagem de personagens pretas e pardas nos livros infantis é fundamental, e não só para as crianças negras. As crianças, principalmente nessa primeira infância, estão criando essa ideia de si, mas também essa ideia do outro”, explica a pedagoga.

Cena do filme "Pantera Negra", ícone cultural da identidade negra(Foto: DIVULGAÇÃO)
Foto: DIVULGAÇÃO Cena do filme "Pantera Negra", ícone cultural da identidade negra

Tal representatividade, no entanto, não fez parte da infância de gerações anteriores, como por exemplo a de Douglas Pereira, 20, que desde pequeno consome cultura geek, mas sentia falta de personagens como ele nas produções. “Querendo ou não falta identidade. Eu não sentia como se eu pudesse me inspirar em um desses caras. Por exemplo, em um Batman ou Flash da vida, eu não conseguia ver identidade neles em relação a mim também”, conta o jovem, que hoje participa de movimentos sobre cultura geek voltada a pessoas pretas.

A presença de personagens negros nas produções tem crescido. Protagonistas como Pantera Negra, Miles Morales e Moana têm se tornado inspirações para crianças pretas e pardas. Esse movimento, no entanto, não é natural das produtoras, mas sim fruto da pressão do público preto por mais representatividade, como afirma a realizadora de filmes com temáticas negras, Grenda Costa. “Quando o mercado entende que essas pessoas são consumidoras, ele começa a devolver. Então, eu acho que tem uma coisa de uma resposta para o público. O público clama uma coisa, e o mercado responde. Porque é isso. O cinema é uma modalidade híbrida entre arte e comércio”, afirma. 

 

Bullying x Racismo: violências não devem ser confundidas

 

 

Ponto de vista
“Garota da Lua”: Por que representatividade importa?

Por Eduarda Porfírio

Lunella Lafayette era apenas uma jovem afro-estadunidense de 13 anos, curiosa e apaixonada por ciências. Um dia, no meio de mais uma criação de uma invenção genial, ela fez um vórtice interdimensional e acabou trazendo o Dinossauro Demônio para a cidade de Nova Iorque por engano. Quando uma vilã passa a ameaçar o Lower East, bairro onde Lunella mora com a família, ela e “D”, como chama carinhosamente o amigo, passam a combater o crime.

Eduarda Porfirio é jornalista e repórter do Vida e Arte(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Eduarda Porfirio é jornalista e repórter do Vida e Arte

O que à primeira vista aparenta ser uma animação infantil, "Garota de Lua" é, na verdade, uma possibilidade de crianças negras poderem se ver de forma positiva. Durante muitos anos, a representação de crianças negras na cultura pop estava ligada a estereótipos, ou seja, não eram vistas como seres humanos. O exemplo mais famoso é Popsi, personagem do clássico “A cabana do pai Tomás”, que é descrita como uma menina travessa, sexualizada e mal educada por Harriet Beecher Stowe, autora da obra.

Já no Brasil, meninos e meninas pretas não são vistos como crianças dentro de obras audiovisuais, como em “Cidade de Deus” (2002). O filme dirigido por Fernando Meirelles acompanha Buscapé (Alexandre Rodrigues), jovem negro e periférico que cresce em um ambiente muito violento. Enquanto Buscapé encontra na fotografia uma forma de não se envolver com o crime, outras crianças que cresceram com ele não tiveram a mesma alternativa, como Zé Pequeno (Douglas Silva).

Apesar de ser uma trama que mostra a realidade brasileira, o longa-metragem de Meirelles acaba usando de estereótipos nesses personagens negros como Zé Pequeno, ao mostrá-los somente como pessoas violentas. Como se não tivessem outras possibilidades. Diferentemente de "Garota da Lua", que mesmo tendo como protagonista uma menina de periferia, foge de estereótipos da família desestruturada, falta de afeto e espírito de coletividade, que faltam na obra de Fernando Meirelles. Dessa forma, mostra a crianças negras que elas podem ser o que quiserem, de onde quer que venham, ainda que o racismo tente nos incapacitar.

Eduarda Porfírio, jornalista do O POVO

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